Recebe telefonemas do chefe nas férias? Pode ser pago a dobrar

trabalho shutterstock
[Fotografia: Shutterstock]

Os raios de sol a aquecer a pele, as gotas da água do mar que ainda escorrem do corpo e do cabelo ou o livro que está a a ler são subitamente interrompidos por um toque do telemóvel. Tira os óculos de sol, procura uma sombra e vê que é uma mensagem, um email ou mesmo um telefonema do chefe, mesmo ali em plenas férias.

Assunto inadiável, crise em curso ou apenas uma dúvida e lá se vai a ideia de descanso à prova de bala, começa aquela preocupação a crescer no estômago. Estas realidades não serão, seguramente, estranhas a grande parte dos portugueses, que se prepara para gozar o maior período de férias do ano em agosto.

“Mais do que uma punição, não há penas, falamos de uma contraordenação muito grave e dá margem para que exista a possibilidade de pagamento de trabalho suplementar, que se traduz num valor horário com uma majoração a 100%”, explica ao Delas.pt a advogada Rita Garcia Pereira, especialista em assédio moral no trabalho. Portanto, mediante prova do volume de horas trabalhadas em período de ausência – e qualquer meio de prova é aceite -, elas devem ser pagas “em dobro”, reitera a causídica.

Trabalho em Portugal: Horas extra por pagar, burnout e assédio

“Esta prática configura uma violação de um direito constante na Constituição, do artigo 59º”, contextualiza Rita Garcia Pereira. Ao detalhe, no ponto d. deste clausulado pode ler-se que “Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito: (…) Ao repouso e aos fazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas”.

A este postulado junta-se o “Código do Trabalho, que concede o direito ao repouso e a desconectar-se, obrigando também por isso que as pessoas tenham um período mínimo de 11 dias de férias, para permitir o descanso”, acrescenta a advogada.

Violação sem género e sem hierarquia dominante

Rita Garcia Pereira nota que a prática é transversal a todos os géneros e evidente em todas as fases da hierarquia das empresas. “Falamos de pedidos que as pessoas executam, funções que exercem, resolução de problemas e mesmo tomada de decisões e que a maior parte das pessoas acaba por nunca registar”, refere.

Rita Garcia Pereira [Fotografia: Gustavo Bom/Global Imagens]
Rita Garcia Pereira [Fotografia: Gustavo Bom/Global Imagens]
Observa também que os tribunais “estão hoje mais sensíveis para esta matéria do trabalho suplementar em dias de descanso e em feriados do que em período de férias”, mas revela ter patrocinado ações “recentes e antigas” nas quais “o empregador foi condenado ao pagamento por prestações em dias de férias do trabalhadores”.

A advogada sublinha ainda que “as pessoas ainda não estão sensibilizadas para o facto de isto configurar trabalho extraordinário, nem as empresas para o que é trabalho suplementar” e sublinha que estas situações sucedem porque, “muitas vezes, as empresas não acautelam a necessidade de substituir as funções dos trabalhadores no período em que estes estão de férias”.

Na fronteira com o assédio moral?

E se o envio de pedidos laborais durante o período de descanso é sujeito a contraordenações e pagamentos, há margem para considerar tal comportamento um assédio moral? “Pode ser uma das manifestações desse comportamento, mas apenas se houver um objetivo deliberado de perturbar a pessoa”, salvaguarda Rita Garcia Pereira. E se assim for, chegado a tribunal o caso pode ir à exigência de “um pagamento por danos morais”.

Porém, “a falta de regulamentação da portaria que legisla o assédio laboral, que data e outubro de 2017”, pode retardar esta compensação, invoca a causídica.

Assédio no trabalho: Já não há desculpa para desconhecer se é vítima ou se é agressor

A advogada ressalva também que, muitas vezes, “o objetivo não passa pela premeditação, mas acontece”, é comummente um resultado que decorre do facto, reitera, de que “nem trabalhador, nem empresa estão sensibilizados para o que é o descanso, e que arrisca poder resultar em burnout (cansaço extremo).

Trabalho nas férias e o exemplo em família

Demónio ou modelo a seguir? Para o pedagogo e diretor da Clínica da Educação e da Academia de Alto Rendimento Escolar é preciso olhar com cautelas quando o telefone toca a meio da reunião e do espaço da família por excelência.

“É preciso ver qual o exemplo sobre o tipo de prioridades que se está a passar aos mais novos, e pode ser positivo ou negativo, consoante a gravidade e a interferência nesse período de descanso”, refere Renato Paiva. “Quanto à primeira, e se estivermos perante assuntos graves que têm obrigatoriamente de passar pelo pai ou pela mãe pode ser dada uma referência positiva. Já a maneira mais negativa surge quando estes registos passam a ser banais e não se consegue desligar. Neste caso, há perigo para a família e os filhos”, explica, ao detalhe.

Da sua prática profissional, o pedagogo diz receber mais “casos de bom senso e de possibilidade de desligar do trabalho e evitar intromissões”, mas admite também a existência de profissões em que isso é mais fácil acontecer. “As mais liberais registam mais condicionantes a este nível, tendem a ter uma maior ocupação e maior impossibilidade de desligar”, refere Renato Paiva, que pede que “os pais possam, na medida do possível, ter o bom senso e consigam separar os tempos de família e de lazer dos laborais”.

Nove jogos para se divertir na praia (sem raquetes, bolas ou cartas)

O pedagogo deixa ainda uma ferramenta que passa por “avisar desde logo os mais pequenos da possibilidade de ter de ir ao email, ou de ver um relatório, ou mesmo trabalhar, é que uma vez dito isto, há um sobreaviso, há um entendimento e o impacto nas crianças é menor”.

Imagem de destaque: Shutterstock

https://www.delas.pt/etiquetas/assedio-sexual-e-moral-no-local-de-trabalho/