Reino Unido: dividem-se as opiniões sobre crianças retiradas a pais portugueses

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A reportagem que a TVI transmitiu na semana passada voltou a trazer para o debate público a questão dos menores que são retirados a famílias portuguesas residentes no Reino Unido, pelos serviços sociais do país.

Algumas das mães acusam as autoridades de lhes tirarem as crianças, muitas ainda bebés, sem justificação plausível e o Estado português de não as apoiar.

Os seus casos têm sido acompanhados por uma plataforma de advogados portugueses, em conjunto com um escritório londrino, e, mais recentemente, desde a reportagem do canal de televisão português, por outro grupo de juristas nacionais, que entretanto se deslocou a Londres para perceber a situação mais de perto. Mas a opiniões de uns e de outros sobre as leis e atuação dos serviços britânicos, naquelas situações, divergem.

Alarme social e realidade amplificada
Varela de Matos fez parte de um grupo de quatro advogados portugueses que partiu para Londres na sequência da reportagem da TVI para prestar apoio pro-bono às famílias portuguesas que têm visto os filhos serem-lhes retirados pelos serviços sociais britânicos. Permaneceram lá dois dias, durante os quais se depararam com um quadro diferente do que tem chegado a Portugal, segundo conta o próprio na sua página do Facebook.

“Ponto da situação:Regressámos de Londres. Dois dias de intensos contactos com autoridades, consulares, ordem dos advogados, instituições privadas e dezenas de pessoas. Centenas de contactos nas redes sociais com portugueses e ingleses, recebemos centenas de mensagens com informações relativas a este problema. Os objetivos estão atingidos. Perceber se existem motivos para inquietação, receio e mesmo medo para os portugueses residentes no Reino Unido, relativamente à atuação das entidades administrativas e dos Tribunais Ingleses, na vida familiar das pessoas e em particular relativamente às nossas crianças. A resposta é: Não”, começa por dizer o advogado, num texto onde detalha as organizações contactadas e as conclusões a que o grupo chegou depois desses contactos.

Os advogados que se deslocaram ao país fazem parte de um grupo mais alargado de juristas nacionais, que presta serviços e apoio jurídico gratuitos em algumas associações portuguesas e a pessoas singulares com carências económicas. Em Londres, tentaram então perceber o que se estaria a passar com os casos de filhos retirados a progenitores portugueses e, posteriormente, encaminhados para adoção.

“A intenção era contactar o Consulado Geral de Portugal em Londres, a Ordem dos Advogados do Reino Unido, pais de crianças, organizações de defesa de crianças e instituições de defesa social”, explica, enumerando mais à frente quais os contactos que acabaram por fazer durante esses dias. Começaram por “associações de proteção de crianças” e prosseguiram para a “Ordem dos Advogados do Reino Unido em Londres”, onde foram recebidos pelo diretor para as relações internacionais, Cristian Wkirchen. Contactaram também com a Embaixada de Portugal em Londres e reuniram “com a Cônsul Geral de Portugal em Londres, Dra. Joana Gaspar, o Adjunto de embaixada José António Galaz e a assistente social Lina Gonçalves”. Os advogados concluíram que “o Consulado Geral de Portugal tem acompanhado diretamente todos os processo relativos a menores”.

Ao contrário do que alguns testemunhos de mães portuguesas que perderam filhos para o sistema social britânico, Varela de Matos assegura que o acompanhamento é feito “desde a ‘sinalização’ de problemas com menores até à adoção”. “No Consulado de Portugal todos os processos são acompanhados diretamente pela Cônsul, pela assistente social e o adjunto da embaixada. Houve cerca de 60 nos últimos 2 anos. Seis crianças foram entregues para adoção”, especifica.

Os advogados consideraram também não existir muitas diferenças de procedimentos entre os dois países.

“O sistema tutelar de menores funciona de forma muito semelhante ao sistema português e o apoio judiciário é idêntico. As situações de adoção de crianças ocorreram com respeito pelas garantias concedidas por qualquer sistema jurídico europeu. A todas as pessoas que não tinham recursos económicos foram nomeados advogados do sistema de apoio judiciário, o que nestes processos de proteção de menores é obrigatório, algumas tiveram mais do que um advogado, porque recusavam sempre o anterior”, diz Varela de Matos, no mesmo texto.

O advogado refere ainda que “todos os processos envolveram deslocações da assistente social a Portugal e o envolvimento das famílias e avós residentes em Portugal” e que os casos em que as crianças foram para o sistema de adoção “baseiam-se em situações de negligência muito graves de tratamento de menores”.

Para Varela de Matos “não existe qualquer anomalia no procedimento da segurança social ou dos tribunais ingleses”, que, diz, “funcionam exatamente como em Portugal. Com limitações, possibilidades de erro e omissões”. O que considera haver é “um alarme social muito significativo na comunidade”.

Critérios pessoais e subjetivos
Opinião bem diferente é a de Pedro Proença, que investiga e acompanha estes casos há quase um ano. O advogado reagiu às diligências daquele grupo de advogados, referindo, também através da sua página de Facebook, que “o apoio jurídico às famílias portuguesas em Inglaterra está já a ser prestado”, com a ajuda do “escritório londrino Harris da Silva Solicitors”. “Neste momento há já várias famílias a beneficiar deste apoio”, refere Pedro Proença que, num comentário seu ao mesmo post manifesta uma visão muito diferente da de Varela de Matos face ao funcionamento do sistema social britânico.

“Nos 8 meses de investigação e acompanhamentos destes casos tenho-me deparado com os mais variados motivos, quase sempre do critério puramente pessoal e subjetivo do funcionário do SS. Ou porque a mãe está deprimida, ou porque a criança apareceu com uma nódoa negra, ou porque a mãe sofre de epilepsia, ou pura e simplesmente porque está sozinha. Houve mesmo um caso de um casal de outro país a quem retiraram 2 filhos porque não sabiam falar inglês e acharam que isso era um risco para as crianças”, exemplifica o advogado.

Pedro Proença afirma que, além do critério ser o do funcionário, “a lei exige apenas que este ache que há um risco, nem que seja futuro”, o que na sua opinião faz com que “a margem de discricionaridade” seja “enorme”.

Os pais do bebé Santiago, um casal luso-britânico a quem foi retirado o filho e que é um dos que alega essa “discricionaridade” dos serviços sociais, acusa o grupo de advogados nacionais que esteve em Londres de não ter ouvido as famílias. “Nunca contactaram mãe nenhuma. É uma tentativa de silenciar a revolta da opinião pública”, dizem através da página ‘Our Baby was Snatched by the Social Services’

As visões das eurodeputadas Ana Gomes e Mary Honeyball
Ana Gomes, eurodeputada portuguesa no Parlamento Europeu, já acompanhou de perto o caso de uma família portuguesa a quem foi retirada a custódia do filho e defende que nem tudo é a preto-e-branco.

“Fui interpelada por uma das famílias, tentei ajudar essa família, mas ela infelizmente não se deixou ajudar”, disse a eurodeputada do PS ao Delas, à margem da conferência “Mulheres Refugiadas – em trânsito entre discriminações múltiplas”, que decorreu na passada sexta-feira, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, em Lisboa.

Ana Gomes recorda que, na altura, fez muitos contactos e rejeita a perceção de que o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) não tem feito o que lhe é possível.

“O MNE e o Consulado em Londres, em particular, têm-se empenhado e estão ao corrente dos casos. A lei britânica é, de facto, muito rígida, e as pessoas têm de saber que há comportamentos que desencadeiam mecanismos que levam a determinadas atitudes nos termos da lei britânica. Obviamente, que isso não impede que o governo não faça tudo para que as pessoas recuperem os seus filhos, mas é preciso que as pessoas realmente se deixem ser ajudadas”, defende a eurodeputada.

Ana Gomes diz que a família que acompanhou “decidiu entrar numa atitude muito conflitual com as autoridades britânicas, reforçando as perceções que havia de comportamentos indevidos” e que dificultou que a família mais próxima da criança, os avós, “interviesse no caso”, de forma a ficar com a guarda do menor durante o processo, evitando que este pudesse vir a entrar no sistema de adoção.

Mais abrangente, e com conhecimento do panorama britânico nesta matéria, é a visão de Mary Honeyball, eurodeputada do Partido Trabalhista, que também esteve presente na mesma conferência.

Segundo Honeyball, a forma como as leis e os procedimentos ligados à adoção são assimilados e implementados varia, porque “isso é feito pelas autoridades locais”, por isso “a descricionaridade [também] é muito local”, explica ao Delas.

Por se tratar de uma questão que tem originado considerável polémica, Mary Honeyball adianta que, no Parlamento Europeu, se está “a trabalhar na questão da adoção em termos transfronteiriços”.

“Provavelmente será produzida legislação sobre isto, porque é uma situação reconhecida como problemática na União Europeia, por isso acho que a resposta passará por uma lei europeia que uniformizará esta matéria nos estados-membros e tornará mais difícil um país fazer uma coisa e outro país outra”, sustenta.

Caso isso aconteça, não há garantias de que o Reino Unido acompanhe essa uniformização, já que se encontra em processo de saída do espaço comunitário, depois da vitória do Brexit no referendo. Apesar disso, a eurodeputada crê que algumas diretivas comunitárias possam vir a ser integradas no quadro jurídico britânico.

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