Relação entre menores e adultos: qual a fronteira entre o amor e o abuso?

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Há algumas semanas, a cantora Bárbara Bandeira, que está prestes a completar 18 anos, assumiu publicamente o seu namoro com Kasha, 30 anos, membro da banda D.A.M.A. Depois da polémica com os pais da jovem que não apoiaram a relação, devido às diferenças de idades – com 17 anos Bárbara ainda era menor – agora com a maioridade legal à porta, tudo parece estar bem, com todos os membros da família Bandeira a publicar nas redes sociais uma fotografia em conjunto.

A polémica que envolveu esta relação não será, contudo, assim tão invulgar. Afinal, a fronteira legal, e por vezes moral, nos casos de relações entre menores de idade e adultos pode ser ténue. Em França a questão gerou debate e levou a mudanças na legislação. Em finais de 2017, o país não tinha ainda uma lei que previa a condenação por abuso sexual a menores. A situação mudou quando veio a público a história de uma criança de 11 anos que teve relações sexuais com um homem de 28. Não tendo o país uma idade mínima estabelecida para a condenação por abuso de menores, o homem acabou por ser julgado não por violação ou pedofilia, mas sim por atentado ao pudor. O assunto acabou por ser novamente debatido tendo o governo, em 2018, fixado nos 15 anos a idade a idade legal para o consentimento de uma relação.

E em Portugal, a partir de que idade se considera o consentimento para o ato sexual? O Delas.pt falou com o juiz António José Fialho, especialista nas áreas de família e menores, a advogada Leonor Valente Monteiro e a psicóloga Raquel Martins Ferreira para tentar compreender esta temática e a sua complexidade, assim como as fronteiras legais entre o que é uma relação consentida e o que é abuso, em casos que envolvam menores e maiores de idade.

Leis: A idade em que a legislação portuguesa ainda protege os menores

Em Portugal, a idade legal para que um menor possa ter relações com um adulto sem que para isso exista qualquer relevância penal são os 16 anos. “Caso a criança tenha idade igual ou superior a 16 anos, desde que essa relação não tenha ocorrido com fins lucrativos ou o maior não seja a pessoa a quem tenha sido confiada a educação ou assistência da criança, não existe relevância penal”, explica desde logo o juiz António José Fialho.

“Em Portugal é irrelevante o consentimento para uma atividade sexual de uma criança de menos de 14 anos”, diz Leonor Valente Monteiro

Ainda que a lei permita a relação entre menores e adultos a partir dos 16 anos, os adolescentes com mais de 14 anos também podem ter relações sexuais consentidas, ainda que com algumas nuances. Segundo a legislação portuguesa, se a relação entre o menor e o adulto se desenvolver “entre os 14 e 16 anos, é crime apenas se o maior abusar da inexperiência da criança para o levar à prática do acto”, afirma o juiz António José Fialho.

Se o menor tiver menos de 14 anos, então o ato constituí sempre crime. “Em Portugal é irrelevante o consentimento para uma atividade sexual de uma criança de menos de 14 anos, qualquer ele que seja, porque se considera que os atos e comportamentos sexuais até esta idade prejudicam, sem exceção, o desenvolvimento e autodeterminação da criança”, conta a advogada Leonor Valente Monteiro.

Recorde-se que a temática do sexo com ou sem consentimento continua a ser uma discussão atual – seja ou não entre menores de idade e adultos. Em janeiro deste ano, 2019, o parlamento aprovou por unanimidade que o sexo sem consentimento seja sempre considerado crime de violação. Claro está que quando esta situação envolve um menor de idade, as leis que os protegem deverão ser diferentes.

Ainda que não seja crime a partir dos 16 anos, os pais terão uma palavra a dizer

As leis que protegem os menores em situações de envolvimento com adultos preveem que, a partir dos 14 anos de idade, o adolescente seja capaz de, livremente, ter poder sobre a sua liberdade sexual – mas explicar isso à família pode nem sempre ser fácil, afirma a psicóloga Raquel Martins Ferreira. “Acredito que seja muito complicado contar aos pais, porque não é aquilo que eles perspetivaram para os filhos. Querem alguém da mesma idade, que faça as mesmas coisas, que esteja na mesma fase de vida”, conta.

“Estando ainda a jovem sujeita às responsabilidades parentais dos progenitores, estes têm o direito/ dever de orientar a sua educação, formação e desenvolvimento”, refere António José Fialho

Quando um maior de idade se envolve com um adolescente sabe que, à partida, isso pode ter repercussões na sua vida, nomeadamente pelo menor ainda estar ao encargo de alguém – e, para Raquel, esta pode mesmo ser o maior obstáculo nesse envolvimento. “Eu acho que essa é a maior barreira que pode existir e com a qual os pais podem, quando não concordam, jogar um bocadinho”, relata a psicóloga.

O juiz António José Fialho vai mais longe e explica a razão pela qual os pais podem, caso não concordem, fazer algo quanto à relação: “Estando ainda a jovem sujeita às responsabilidades parentais dos progenitores, estes têm o direito/dever de orientar a sua educação, formação e desenvolvimento e, deste modo, podem pedir a aplicação de medidas protetivas”, explica o juiz.

Ainda assim, uma possível denúncia pelos progenitores só pode ser feita “se for demonstrado que essa relação pode pôr em perigo a vida, integridade física, desenvolvimento e educação da jovem“, remata o especialista.

Até aos 14 anos de idade, os crimes contra a autodeterminação e liberdade sexual são de natureza pública, o que quer dizer que qualquer pessoa pode fazer queixa. Já os crimes sexuais contra adolescentes com mais de 14 anos são de natureza semipública, o que significa que dependem de queixa para avançarem. Neste último caso, “o consentimento da pessoa adolescente passa a ter relevância jurídica”, reitera a advogada Leonor Valente Monteiro.

Existirá uma fronteira que delimita o amor e o abuso de menores?

Sabemos que, a partir dos 14 anos de idade, o jovem pode consentir as suas relações sexuais. Mas será que existe uma barreira que diferencie o que é amor e o que é abuso de menores? Para a psicóloga Raquel Martins Ferreira, cada caso é um caso. Se existem exemplos que nos mostram que “a idade é só um número” e que “existem muitos preconceitos na sociedade”, por outro, há um limite legal que pode condicionar o amor.

“Depende muito da pessoa de quem estamos a falar e da forma como olhamos para isto. Obviamente que quando temos um adolescente e temos um adulto isto não é bem aceite pela sociedade e existe a lei que protege este tipo de coisas, aliás, protege q.b, porque não é algo assim tão restrito“, defende a psicóloga.

Quando falamos de amor, falamos de algo subjetivo e individual que, novamente, nota a especialista, pode variar de pessoa para pessoa. O facto de um adolescente se apaixonar por um adulto não é algo fora do comum. Aliás, a psicóloga recorda que “a nível da psicologia é normal que nos sintamos atraídos por coisas que gostaríamos de ser, que ambicionamos ou que perspetivamos para nós”.

Mais: a grande maioria dos adolescentes – sejam eles rapazes ou raparigas, tendo no entanto maior prevalência nas mulheres – já se sentiu atraído por um adulto. “A nível geral quase toda a gente, numa fase mais nova, já se sentiu atraído por alguém mais velho. Seja essa pessoa mãe ou pai de alguém, professores, o senhor do café… qualquer pessoa mais velha”, explica a especialista.

“a nível da psicologia é normal que nos sintamos atraídos por coisas que nós gostaríamos de ser, que ambicionamos ou que perspetivamos para nós”, diz Raquel martins Ferreira

 

E há razões, de parte a parte, que explicam a dupla atração entre idades. “Isto acontece porque há muito presente na adolescência o desejo da independência, o desejo ou ilusão de que quando se chegar aos 18 anos pode-se fazer de tudo”, acrescenta ainda a psicóloga. “É por isso que existem muitos jovens que, em algum momento da sua vida, já se sentiram atraídos por pessoas mais velhas. E muitas vezes também acontece o contrário. Ou seja, quando os adultos mais velhos se sentem atraídos por pessoas mais novas quase como se fosse um relembrar do que já foram“.

O amor entre adolescentes e adultos pode surgir de uma lacuna por preencher

Há quem afirme que tendemos a procurar no parceiro traços que nos sejam familiares – falamos, por exemplo, em procurar no parceiro aspetos positivos que trazemos da aprendizagem com os nossos pais. A psicóloga Raquel Martins Ferreira afirma que isto pode acontecer, até porque “somos seres sociáveis e eventualmente aprendemos por imitação”.

Quando, por exemplo, vemos a filha a querer maquilhar-se como a mãe ou o rapaz a querer fazer a barba como o pai, sabemos que aprendemos por imitação e que vemos nos nossos pais os modelos a seguir. É normal, por isso, que “eles nos ajudem em várias coisas, nomeadamente a perceber o que é o amor e que demonstração é esta”.

“Por norma, nós acabamos por assimilar isto, consciente ou inconscientemente, e ao longo da nossa vida sim, talvez nos sintamos mais atraídos por alguém que, de alguma forma, tem algumas características que nos fazem lembrar [dos nossos pais]. Isto de alguma forma faz sentido porque é aquele modelo que nós reconhecemos maior valor“, reflete a psicóloga.

Por vezes, o amor entre adolescentes e adultos pode também dever-se ao facto de existir algum tipo de lacuna familiar que o jovem tenta suprimir ou preencher. “Quando existe uma ausência por parte da mãe ou do pai, quando não há este modelo para comparar, o que é que normalmente acontece? Nós perspetivamos um modelo que nós achamos que é válido”, explica a especialista, acrescentando que o adolescente “pode projetar essa necessidade de afeto e de carinho numa pessoa mais velha que não seja do seio da família, isso pode acontecer”.

Tentando ou não preencher uma possível lacuna familiar, a verdade é que os jovens se deparam com uma mão cheia de dilemas e contradições ao longo do seu crescimento. Se é expectável que os adolescentes confundam ‘amor’ com a ausência dos pais, ou que só possam votar aos 18 anos de idade, porque é que é permitido que uma criança de 16 anos aborte sem ter que pedir autorização aos pais?

Podemos votar aos 18 anos de idade e abortar sem autorização aos 16

A maioridade, em Portugal, está definida nos 18 anos de idade. Aqui, os adolescentes – agora adultos – podem tirar a carta de condução, beber, fumar e votar sem autorização dos seus tutores legais. Mas antes de chegarem sequer a esta etapa, as raparigas com mais de 16 anos podem fazer um aborto sem que para isso tenham que pedir autorização.

“O suprimento do consentimento para a realização da IVG [interrompendo voluntário da gravidez] de menor de 16 anos está previsto no artigo 142.º, n.º 5 do Código Penal”, explica o juiz António José Fialho. “De igual modo, o limite dos 16 anos também foi o que ficou estabelecido para a possibilidade de prestação de consentimento para adoção sem a autorização dos pais“, remata.

O que significa que uma menor de idade pode dar para adoção, sem autorização dos pais e consequentes avós da criança, o seu bebé. Estes critérios, segundo explica o juiz, “são critérios de política legislativa que não cabe aos tribunais definir, pois a sua ponderação cabe a quem tem o poder legislativo, obviamente suportado em critérios de outra natureza”, conclui o especialista.

Ou seja, ainda que a maioridade seja, em Portugal, atingida aos 18 anos de idade, existem várias áreas da vida do jovem que acabam por não estar dependentes de autorização dos tutores legais para serem cumpridas, em questões tão íntimas e complexas, que vão do seu desenvolvimento sexual à saúde reprodutiva e materna.

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