Reynaldo Gianecchini: “Sou prático demais para ser romântico”

Reynaldo Gianecchini, de 44 anos, está em Portugal para a estreia da peça “Os Guardas do Taj” que entra em cena já na próxima quinta-feira, 9 de novembro, no Theatro Circo, em Braga. Aproveitámos e estivemos à conversa com o ator brasileiro sobre os seus quase 20 anos de carreira, sobre os amores e desamores da vida, o preconceito e os padrões impostos pela sociedade.

Chegou ao teatro em 1998. Pisar um palco, 20 anos depois, continua a ser igual?

Nunca é igual. Tudo é muito dinâmico na vida e, com toda a bagagem que se vai adquirindo, o olhar muda, as pessoas mudam, o teatro em si muda, atuar muda. Mas há uma coisa é sempre igual: sempre que se pisa o palco dá um frio na barriga. É um lugar onde se tem que estar muito vivo e isso não vai mudar nunca. É o lugar do ator. Ali é ele que tem pleno domínio. Essa força é o melhor, é o que se mantém. O texto é o mesmo, mas todos os dias é diferente, porque a plateia é diferente, a energia com que se chega naquele dia é diferente. Mesmo quando se estreia uma peça e quando se termina, é totalmente diferente.

Por isso, muito provavelmente, se agora fosse representar outra vez o seu primeiro personagem seria totalmente diferente?

Sim, totalmente diferente. Digo sempre, a brincar, que queria refazer a minha primeira novela, a Laços de Família, porque realmente, na altura, era muito inexperiente. O papel era lindo e o personagem era ótimo, mas não sabia nada de televisão. E é muito difícil fazer, é uma fábrica, temos de gravar entre 30 a 40 cenas por dia. Hoje em dia, depois de 17 anos, tenho um maior jogo de cintura para estar ali, para poder brincar, para dar mais nuance. Mas é o que é, acho que talvez só foi bom porque eu era verde ter aquela timidez até combinava com o personagem.

Essa novela foi a rampa de lançamento para uma carreira como ator, mas antes disso Reynaldo chegou a formar-se em Direito. Alguma vez exerceu?

Nunca exerci. Acabei, formei-me, mas nem fui buscar o diploma. Quando optei por Direito foi mais porque tinha de arranjar um bom motivo para sair do interior e ir morar para a capital. O motivo era fazer faculdade. Sou filho de professores, então esse era o grande objetivo de vida, fui criado para isso. Naquela época, já fazia teatro e gostava, mas não me passava pela cabeça ter o teatro como profissão. Quando se é do interior isso parece algo muito distante, não vemos como um facto concreto. Sempre quis muito abrir os meus horizontes, queria conhecer um pouco de tudo. Então, a minha primeira ideia como profissão foi ser diplomata. Por isso fui eu para São Paulo, cidade grande, para estudar Direito.

E como percebeu que estava no caminho errado?

Logo no primeiro ano entendi que não era nada daquilo que queria. Era muito racional e que não iria poderia desenvolver-me da forma que queria. Queria algo que mexesse mais com o emocional, com o artístico, e vi que Direito não era nada disso, muito menos diplomacia. Então, percebi que não tinha nada a ver comigo. Mas como sou muito teimoso, quis terminar a faculdade tendo começado a trabalhar, em paralelo, como modelo. Aí comecei a conhecer o trabalho de alguns artistas, sobretudo da linha editorial fotográfica. Vim trabalhar para Europa e conheci pessoas mais loucas, mais do mundo criativo do que do racional. E isso despertou-me, mas ainda não era bem aquilo que eu procurava porque sabia que nesta área tinha o tempo contado, sabia que não queria ser modelo a vida inteira.

Foi aí que deu o click?

Lá pelos 27 anos, resolvi parar de ser modelo. Parei e pensei: O que é que eu vou ser? E à toa, mesmo à toa, lembrei-me: “Cara, você fez isso [teatro] a vida inteira”. Desde criança que atuava no colégio, na cidade. Então, como é que pude negar a minha primeira vocação que foi a de ser ator. Comecei a estudar e tudo foi muito rápido. Passei no primeiro teste, entrei na peça, o pessoal da televisão foi ver-me, chamou-me para fazer um teste e, três meses depois, já estava na novela do horário nobre como protagonista.

E a partir do momento que entra na televisão, vai fazendo televisão, teatro e também cinema. Se tivesse que escolher uma das três áreas para fazer o resto da vida, qual escolhia?

Nossa… Não sei, é muito difícil. Eu gosto muito dos três. Acho que os três têm dificuldades e desafios inerentes. Gosto muito de fazer televisão, mas canso-me muito. Quando faço uma novela digo sempre: “Só faço a próxima daqui a cinco anos” e, geralmente, faço uma novela e vou para o teatro. O cinema também é muito bom, mas no Brasil é uma indústria difícil. Está a melhorar muito, mas ainda não é maravilhosa como já o é no cinema argentino, do qual sou mega fã. Então, vou brincando um pouco aqui, um pouco ali, vou atrás de bons personagens e de projetos que me interessem, procuro trabalhar com atores que eu queira, com diretores que eu queira, falar de assuntos que eu queira. Por isso depende, se é no cinema, na televisão ou no teatro, não importa, é muito mais uma questão do projeto em si. Se me chama ou não.

E “Os Guardas do Taj” chamaram-no porquê?

Quando lemos a peça, disse logo que achava o texto muito bom. O tema principal da peça é muito atual: Como é que as pessoas seguem o que lhes dizem só porque lhes dizem que isso é que é bom, só porque é isso que esperam delas? Como é que as pessoas seguem ordens sem se questionarem, se é isso que realmente querem, se é bom para elas, para o país, para o mundo? As pessoas repetem as histórias dos seus pais, dos seus avós e não estão a olhar para as mudanças necessárias que o mundo já estar a pedir.

De que forma é que acha que esses padrões impostos pela sociedade podem vir a mudar ou o que é que é preciso fazer para que isso mude?

O mundo já está a pedir para mudarmos, porque se pensarmos bem este é um processo natural. O Brasil está uma bagunça, uma loucura, e eu acho que esse caos é necessário. Está tudo a vir à tona, coisas que não conseguíamos ver antes. A corrupção, o preconceito, estamos a discutir coisas muito sérias agora, e porquê? Porque não dá para fingir mais que não estamos a ver o que está a acontecer quando tudo começa a estar às claras. E isto obriga as pessoas a posicionarem-se. O povo está a ir para a rua. É muito importante trazer tudo isso à tona, essa visão fechada das pessoas, essa manipulação dos nossos representantes.

Como vai ser essa mudança?

Não sei, mas vai ser. Já está a ser. Acabou de passar uma novela no Brasil que fez muito sucesso, chama-se “A Força do Querer” e que tratou de temas muito importantes, como a questão do transgénero. Foi a primeira vez que se falou em aceitação de transgénero, que é um tema muito cabeludo, mas que está aqui mesmo do nosso lado. Tenho amigos que têm filhos que já estão a mudar de sexo. Nós temos de refletir, até porque quem continua muito conservador vai ficando para trás, vai sendo engolido por uma onda nova que está a chegar. A mudança vai ter que vir e nós temos de estar abertos para o novo, para entender todos os movimentos novos da sociedade.

Essa reflexão sobre determinadas questões que levem à evolução da humanidade e que façam as pessoas conseguirem desfazer-se das ideias preconceituosas e preconcebidas estão presentes na peça “Os Guardas de Taj”, que vai estrear com Ricardo Tozzi já este mês em Portugal?

Sem dúvida. O personagem do Ricardo é o sonhador, ele quer revolucionar tudo e eu sou aquele que não quer mudar nada, que tem um prazer enorme em ser o homem perfeito, que cumpre a regra perfeita, só que acabo por ser obrigado a fazer coisas horrorosas em nome dessa ordem, dessa perfeição. Por isso, é importante que as pessoas saiam do teatro com o mínimo de reflexão. A peça é uma história que se passa entre dois indianos, guardas do Taj Mahal, uma cultura distante, mas podia ser qualquer pessoa, quaisquer dois amigos. Não é sobre esses indianos, não é sobre Taj Mahal, é sobre as escolhas que fazemos na vida, sobre estar fechado, sobre a amizade, são temas universais e atemporais e que podemos inserir em qualquer contexto. E é isso que me interessa nesse momento.

Senda uma peça ligada a um dos monumentos mais românticos do mundo, ao sentimento e àquilo que é realmente importante na vida pode considerar-se uma peça romântica?

A peça não é romântica, o que ela tem de bonita é essa relação dos dois amigos-irmãos, que são diferentes e se complementam, mas que passa pelo drama. Não é fofa, a peça não é assim: “Ai que bonitinho”. Mas é bonita, mesmo no drama que acontece, porque aquela amizade existe e é muito bonita.

E o Reynaldo é um homem romântico?

Sempre achei que sou prático demais para ser romântico. Mas como tudo muda, depois dos 40 anos, começo a achar que também eu estou a mudar.

A mudar para o quê?

Não sei se romântico será a palavra, mas estou muito mais consciente da questão do afeto. O afeto está a ser algo muito importante. Não estou a falar de uma relação a dois, que eu estou solteiro há muito tempo, mas do afeto nas relações com amigos, com a família, isso tem mudado muito em mim. Percebi o quanto eu era displicente com esse cuidado. E está a ser muito importante para mim cuidar das amizades, da família, e até abrir o coração para um novo amor que parece não ter mais oportunidade, mas quem sabe tem. Quando somos muito jovens temos ainda muitas questões com as quais temos de lidar, estamos muito ansiosos para construir e acabamos por não ter tempo para lidar com essas coisas. O afeto acaba por passar meio despercebido, as pessoas até se relacionam, mas fazem-no muito mal quando são jovens. Hoje em dia estou muito mais contemplativo, às vezes gosto de ficar sem fazer nada, só a observar. Imagine quando se é jovem, se vai querer estar a perder esse tempo na vida.

Mas o Reynaldo, ainda jovem teve um relacionamento e casou com Marília Gabriela, uma mulher 24 anos mais velha. Hoje já não estão juntos, mas continuam a ter uma boa relação, agora como amigos. Como é que se mantém uma relação de amizade depois de um casamento de sete anos?

Nós precisamos de nos afastar um pouco, de digerir tudo e depois, então, reaproximámo-nos. Talvez tenha resultado porque tivemos um relacionamento muito bonito, muito maduro e muito honesto. Estivemos sempre muito felizes durante o tempo que estivemos juntos. Podia parecer um casamento improvável, mas para nós era muito de verdade e, por isso, não faz sentido acabar de uma hora para a outra e jogar tudo fora. A diferença é que, às vezes, os casamentos terminam muito mal, as pessoas ficam muito magoadas. Não foi o nosso caso, é claro que é difícil, uma separação sempre é dolorosa, mas nós não nos magoámos, não nos ferimos um ao outro. Não houve qualquer traição, nem ferida para nos magoarmos e assim fica mais fácil. Depois de se dar um tempinho, quando aquela dor passa e já é possível voltar a falar. Acho que essa é a diferença. Eu tive outras relações em que não conseguiria voltar a ser amigo, porque tinha saído mais magoado.

E o facto de haver essa diferença de idades foi algo que, na altura, incomodou?

Há quem olhe com um ar meio desconfiado, duvidando da relação. Mas nunca me preocupei com isso e não me preocupo. Quando sinto dentro de mim que é verdade, isso chega. Não dou a menor importância para o que as pessoas pensam a meu respeito, não quero agradar a ninguém, não quero provar nada, só quero viver o que tenho para viver de acordo com a minha verdade. Ser honesto comigo mesmo. Se os outros acreditam ou não é com eles. Não tenho de convencer ninguém de nada.

Podemos dizer que a Marília Gabriela foi uma das mulheres mais importantes da sua vida?

Foi muito e ainda é. Ainda a admiro muito, ela é uma mulher multitalentosa, com inteligência e humor. Ela é várias mulheres dentro de uma só e é isso que gosto nela. Ela toma propriedade de todas as personalidades que tem em si, não nega nada. Até o lado mais mal-humorado, por exemplo, até isso acho graça, porque ela assume.

Em 2012 foi lançando o livro “Giane: Vida, arte e luta”. Esse livro significou o quê naquela altura? Foi um marco, foi um encerrar de um capítulo?

Não foi muito pensado. Nunca tive a menor vontade de ter uma biografia, na verdade sempre achei essa ideia meio louca e de um ego-trip danado. Só que quando terminei os tratamentos da doença [leucemia], todas as editoras do Brasil me procuraram. E na altura eu pensei: “Que povo louco, não quero contar a minha história”, e não tinha essa vontade. Não me passava pela cabeça mesmo. Mas há um jornalista no Brasil que realmente admiro, o Guilherme Fiuza, e a editora pediu para ser ele a contactar-me e dizer: “Cara deixa-me contar a tua história”. Ele escreve tão genialmente que fiquei super curioso para saber como ele iria fazer. Então, na altura aceitei por causa dele. Naquela altura, tinha acabado de fazer 40 anos, tinha-me curado da doença e foi um processo muito terapêutico rever a minha vida. Fui-me lembrando de detalhes, fui puxando a minha memória e fui-me recordando de cheiros, de gostos, de sensações. Quando chegou a hora de publicar o livro, fiquei muito aflito.

Porquê?

Porque é muito aflitivo expormo-nos daquela forma e expor outras pessoas. Claro que fizemos isso de forma muito elegantemente e não expusemos ninguém de maneira indevida. Mas eu tive tanta aflição que quase nem li o livro. Tive de aprovar, mas eu aprovei mesmo e aí do jeito que ele escreveu.

Mas gostou do resultado final?

Gostei, gostei muito. A ideia também não era pintar-me como um super-herói, disse desde o início: “Quero que me retrates de verdade, com todos os meus defeitos, com todas as minhas fases difíceis, não só o homem fantástico e incrível”.

E há um Reynaldo antes e depois do tratamento ou não?

Sem dúvida. Há um antes e um depois dos 40 anos. Acho que é aos 40 anos, vai dar ao mesmo porque a minha doença foi aos quarenta anos, que realmente a vida começa. Faz todo o sentido. Antes, parece que foi um ensaio, acho que agora sim estou a começar a percorrer o trilho de quem sou de verdade.

 

[Fotografia de destaque: Leonardo Negrão / Global Imagens]