Há quatro anos, Rita Silva Freire dava entrada na maternidade para ver nascer o seu primeiro filho, Manuel. Na altura, sentiu a falta de literatura que falasse sobre os momentos do parto, os receios, as alternativas e até de os planos para um dos dias mais expectantes.

Agora, grávida de novo de um rapaz, a jornalista acaba de editar o livro Trazer ao Mundo (€16,60, Contraponto) no qual aborda os vários tipos de parto, o olhar do pai e a violência obstétrica. Relatos que chegam através de testemunhos diretos de mulheres e com observações de especialistas. Histórias que pretendem trazer luz pública sobre um tema que todas as mulheres adoram falar, mas sempre entre si.

O que a fez escrever este livro sobre partos?

Quando estava à espera do meu primeiro filho, o Manel, fui à procura de informação. Interessava-me mais histórias contadas na primeira pessoa do que pareceres técnicos, para isso tinha o médico fui à livraria e só encontrei livros sobre gravidez e que poderiam fazer referência a grávidas, mas era mito técnico. Não havia histórias, na literatura de ficção também quase não há. E no cinema, rebentam as águas, a mulher vai para o hospital e depois dói imenso, quer matar o marido e no fim está tudo bem. Faltava-me a parte de ‘o que é que acontece?’

Há as mulheres que não querem e as que querem ouvir as histórias.

Mostrei, neste livro, várias formas de nascer e são partos muito diferentes entre si. A ideia é desmistificar um bocadinho um dia que pode ser assustador e que está na cabeça das mulheres. Creio que pode dar um pouco mais de conforto sobre o que pode acontecer. Isto aliado a um tema cada vez mais abordado que é o plano de parto, a forma de se poder dar informação sobre as escolhas que se pretendem. Pretendi conciliar ambos aspetos: o lado dos médicos e as histórias pessoais.

 

Foi fácil convocar estas mulheres a falar?

Sim. Eu acho que as mulheres adoram falar sobre este tema.

Porquê?

Porque é, realmente, um dos dias mais felizes das mulheres. Mesmo que possam existir alguns problemas associados e que nem tudo tenha corrido totalmente bem ou exatamente como a mulher esperava de início, o facto é que se o bebé tiver nascido saudável – esses índices em Portugal são extraordinários – é um dia muito feliz na vida da mulher.

Um livro que surge num ano em que os dados provisórios da taxa de mortalidade infantil tinha subido, em 2018. Não está no livro, mas que feedback teve sobre esta matéria?

Não. Até porque são números muito recentes. Ainda não se sabe. Estão a investigar os nossos números são mesmo muito bons, mesmo que tenha sido pior este ano, continuamos na linha da frente.

Que mitos e ideias erradas crê que desconstrói com este livro?

Creio que a questão das cesarianas serem ou não mais seguras fica claro que cada caso é um caso. Se olharmos para o Brasil, com taxas de cesariana de 90% percebemos que há ali a crença de que é mais segura e muito melhor, que não o é necessariamente. Mas tudo tem vantagens e desvantagens e cada pessoa é uma pessoa. Tento também tirar, com este livro, qualquer tipo de julgamento: não se é melhor mãe porque se quer uma cesariana ou um parto normal ou por pedir epidural. Espero que tenha desfeito mitos de que um parto é extremamente arriscado, de que vai haver um problema – o que não é verdade, a maior parte dos partos corre bem. E desfazer o mito de que às vezes é melhor não saber nada e que o médico é que sabe. Claro que eles sabem, mas a mulher também pode ser um bocadinho consultada sobre o que quer, na medida do possível, sobretudo quando está tudo a correr bem. Há um outro mito de que às 37 semanas está ótimo para nascer e as indicações falam às 39 semanas.

Que reações têm recebido da classe médica relativamente a estes testemunhos das mulheres?

É muito recente, ainda não tive feedback, mas 1/3 do livro é dedicado a ouvi-los. Sabemos também que se deve a médicos obstetras e a enfermeiras-parteiras as baixas taxas de mortalidade que temos em Portugal. Pessoalmente, já disse várias vezes que, vivendo na Polónia, quero vir ter o filho a Portugal. Não é que não confie no sistema de saúde polaco, que é ótimo, mas confio imenso no português e sei que estou no sítio certo para ter um bebé. Eles querem dar um parto seguro e também uma boa experiência de parto à mulher.

E os planos de parto, como se podem materializar para lá das conversas com médicos ou de uma folha de papel. Deveriam ir mais além?

Não sei. Hoje em dia, disseram-me que há menos planos de parto a chegarem ao hospital porque as mulheres já sabem que à partida os seus desejos já seriam respeitados. Ou seja, há menos registos formais, mas há cada vez mais mulheres a ter já planos iniciais para esse dia. Mas pode depois aperfeiçoar: quer ou não epidural, quer ou não pilates, quer ou não estar deitada numa cama a ser monitorizada. Quando está detalhado é melhor estar escrito num papel. Quando chegam as contrações, talvez seja um pouco tarde. E pode sempre mudar. Esse papel pode ajudar porque pode ser passado à enfermeira, que é quem inicia os cuidados. Tê-lo falado com o obstetra não o garante porque, desde logo, podem existir imprevistos de saúde que impossibilitem o plano de ser cumprido. Depois, nem tudo é possível em todos os hospitais.

“Há menos registos formais, mas há cada vez mais mulheres a ter já planos iniciais para esse dia”

Quando termina um plano de partos para mães, na cabeça delas?

Acredito que existam pessoas que queiram levar tudo até ao fim, mas também acredito que a maioria mude de planos quando informam a mãe do que está a acontecer e a forma como aquele plano não pode ser cumprido. Todas as mães querem o melhor para o seu bebé e, nesse sentido, todas compreendem, se explicado.

O que será o parto no futuro? As mulheres estão a ser mães cada vez mais tarde…

Não creio que o plano de parto mude com a idade. Agora, todas as circunstâncias que temos hoje e como as conhecemos podem mudar. Mas, considerando que tudo continue como está a ir, o parto só tem tendência para melhorar. Por norma, é um procedimento seguro e cada vez está mais graças aos avanços da medicina.

E o desejo dos partos em casa está a aumentar?

Isso está funcionar exatamente com essa perceção de segurança. Se há décadas as mães procuram que tudo corresse bem e que acabasse em bem, hoje em dia isso é quase um dado garantido. Sabe-se que mãe e recém-nascido saem ilesos dos hospitais, a questão coloca-se em como se quer aperfeiçoar este momento.

“Hoje, sabe-se que mãe e recém-nascido saem ilesos dos hospitais, a questão coloca-se em como se quer aperfeiçoar este momento”

E o que é que as mulheres mais procuram?

Não há uma regra. Cada mãe é uma mãe, cada mulher é uma mulher e todas são diferentes. Acho que há a tendência – se é que se pode falar desta forma – de haver mais mulheres a quererem ter um parto natural, sem epidural, sem medicalização. Não sei se serão assim tantas. Os médicos dizem-me que as mulheres querem epidural quando chegam ao hospital, porque realmente dói. Mas querem essencialmente o mesmo: que os bebés cheguem ao mundo bem, saudáveis, gordinhos e apetitosos. E querem ser respeitadas, ser tratadas com dignidade naquele dia em que estão mais frágeis.

E entramos no domínio da violência obstétrica.

Todos estão mais despertos para isso. Como expressão, como conceito – não como realidade – a violência obstétrica é relativamente nova. E quanto mais se fala, mais consciência se cria sobre a existência dessa realidade. E acho que cada vez há menos.

E onde é que a violência obstétrica é mais premente?

Às vezes são pequenas coisas e não são aquelas grandes histórias que se espera ouvir, como por exemplo a mulher não ter tido uma boa experiência de parto por não se ter sentido respeitada e não se sentiu com a dignidade que julga merecer.

Mas é mais comum nas expressões que se ouvem na sala de partos, os abusos físicos durante os partos, nas faltas de explicações por parte de médicos?

Em Portugal, os abusos físicos não acontecem tanto. O conceito é vasto e vai desde expressões como ‘não grites agora porque não gritaste quando o fizeste’, a não ser passada toda a informação à parturiente de qual é o seu quadro clínico e da transmissão fidedigna das opções que tem. Se calhar porque pode vezes pode ser tratada com paternalismo, não sei… E depois, há o que pode ser feito com um sorriso.

Mas que indicação lhe foi dada pela Associação pelos Direitos da Mulher e do Parto?

A indicação – e recebe várias denúncias de violência obstétrica – mais comum passa por uma queixa em que a mulher diz não se ter sentido respeitada durante o parto: seja porque lhe falaram mal, seja porque considerou que não lhe disseram tudo. A mulher está muito sensível, fragilizada e assustada porque não sabe o que lhe está acontecer, está num bloco de partos, rodeada de pessoas que não conhece – muitas vezes está despida ou só com bata – precisa se calhar de um extra, e não só não lhe dão esse esse extra de afabilidade como são depois um pouco mais ríspidos, e ela vai sentir que não foi respeitada.

Quanto às queixas…

Muitas mulheres não fazem, foi o que me disseram na associação. A pessoa vai com o bebé para casa, com dores, quer estar bem, quer usufruir do sue bebé e não quer pensar nisso, prefere seguir em frente. Não encontrei assim tantos casos de violência obstétrica e fiquei com a ideia de que por se falar tanto hoje em dia e se calhar faz-se menos. Mas a violência obstétrica passa também por não se dar a informação toda às mulheres, por vezes, são feitos dez partos numa noite e os médicos não têm tempo de falar. Mas basta um coisa tão simples como: olá boa, noite, o meu nome é Rita e tenho de fazer isto porque aconteceu tal. E não houve violência obstétrica nenhuma porque os procedimentos em si não são violência.

“Não encontrei assim tantos casos de violência obstétrica e fiquei com a ideia de que por se falar tanto hoje em dia e se calhar faz-se menos”

Há a questão da episiotomia (incisão efetuada na região do períneo)?

Fala-se desse procedimento como violência se tiver sido feito sob falsos pretextos clínicos ou se a mulher não tiver sido devidamente informada. Mas em si, ela não é um ato de violência, há casos clínicos em que deve ser feita. A questão que se coloca é o procedimento como sendo rotina. Estamos a falar de taxas a rondar os 70%, creio que são dados de há uns anos, e que estão a baixar.

A violência obstétrica acaba no parto ou prossegue?

O meu livro acaba no parto (risos).

Fala-se do ‘ponto do marido’?

Já ouvi falar sobre isso no Brasil, cá em Portugal nunca ouvi nenhuma enfermeira, nenhuma mãe, nenhum médico a falar sobre isso. Não estudei essa matéria e sendo jornalista não posso falar. Mas se for a própria mulher a pedir para fazer isso, por mim tudo bem. Se for feito sem pedir ou o marido, então isso é violência.

‘Ponto do marido’: prazer ou prisão?

A violência obstétrica é uma materialização que, na cabeça de uma mulher, surge muitas vezes à posteriori e já quando o ritmo da nova vida com um bebé já acalmou. Como resolver?

Cada mulher tem de lidar como consegue. Se para umas será melhor e catártico pode resolver fazer essa queixa, para outras é mais fácil encerrar esse capítulo e seguir em frente. Como vítima, ela é que tem de saber como é melhor lidar com a situação. O ideal é que nunca mais ouçamos uma mulher a dizer: ‘tive uma imensa sorte com a equipa que me calhou’. Um parto não pode ser uma questão de sorte, os direitos de saúde têm de ser universais.

O que pode ser feito?

Como tema cada vez mais falado -e não era há cerca de dez anos – essa sensibilidade tem vindo a aumentar. Há as que se queixam. Aqueles que sejam eventualmente mais ríspidos, possam eventualmente mudar. Agora, enquanto formos pessoas, hão de sempre existir queixas. É um conceito amplo e depende muito da mulher. Às vezes as coisas são feitas sem maldade e não há uma regra absoluta.

Deveria ter um enquadramento legal?

Creio que os abusos físicos e verbais estão contemplados. Estando a ser tão falada, pelo que falei com médicos e enfermeiros e com parturientes, é uma coisa que tem vindo a decrescer. Há cada vez mais atenção ao bem-estar da mulher durante o parto, a não serem feitos os procedimentos que são necessários. Legalmente pode ser depois complicado porque os médicos e enfermeiros é que sabem porque é que determinado procedimento foi feito. Mas é importante que as pessoas que estão a cuidar e a apoiar a mulher durante o parto estejam sensibilizadas para o tema e serem alertadas para práticas que já foram comuns e que hoje em dia já não são.

Dos testemunhos – mães e especialistas – que ouviu, o que podia ser melhorado no público e no privado?

Não distingui hospitais no livro e porque nem toda a gente pode escolher o hospital onde vai ter o bebé e há coisas que dependem mais do sitio onde está a ser feito ou do profissional ou equipa que está atender aquela mulher, naquele momento. Nos públicos, em muitos casos, apesar de alei prever que a grávida tem direito a acompanhamento, muitas vezes não pode porque a arquitetura no bloco não permite. Podem ser melhorados, podem. Mas também sabemos que é uma questão de opções. O dinheiro vai ser gasto para melhorar os blocos ou ser gasto a comprar mais incubadoras, não sei. Essa resposta tem de ser dada por médicos, enfermeiros, gestores hospitalares. Do ponto de vista médico, temos números tão bons – que podem obviamente ser melhorados – que está óptimo.

E no privado?

As taxas de cesariana são mais altas e não sei se isso é necessariamente um péssimo indicador. Respeito a liberdade de escolha e se a mulher está aterrorizada com um parto mesmo que não tenha indicação médica para o ter, tem direito de o pedir.

Mas nestes casos não podemos excluir a questão financeira.

Até vejo do outro lado. Então, uma mulher que possa ter disponibilidade financeira tem mais direitos do que uma não possa ir para o publico. Ao mesmo tempo, não defendo as cesarianas. Portanto, acho muito complicado. São questões sobre as quais podemos pensar, não tenho respostas para elas. Mas também continuo a achar que a maior parte dos médicos fizeram juramento e que o cumprem. Não é por questões financeiras que fazem mais uma cesariana.

Imagem de destaque: Orlando Almeida/Shutterstock

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