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Rui e Alice, uma história de amor com 75 anos

Rui e Alice Nabeiro [Fotografia:Pedro Rocha / Global Imagens]

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Conheceram-se ainda na escola primária, namoraram dez anos e casaram-se a 25 de outubro de 1957. Esta é a história de amor de Alice e Rui Nabeiro, empresário, dono da Delta Cafés, e comendador, que morreu a 19 de março de 2023.

Com uma vida dedicada ao trabalho desde os 12 anos e aos negócios, era na família que Nabeiro dizia alicerçar as suas maiores conquistas.

[Fotografia: Arquivo Global Imagens]

“Conhecemo-nos nos bancos de escola e desde então que nos amamos. Na altura, na nossa vila, as classes não eram mistas. Quando chegámos à quarta classe é que começou a haver classes com rapazes e raparigas, e toda a gente arranjou um namoro. O nosso seguiu a vida inteira, e ainda dura”, revelou Alice Nabeiro, em dezembro de 2010, a propósito de um evento que reunia a Delta e o amor.

“O segredo da nossa relação é a compreensão, daí à amizade e ao amor. É assim até hoje”, explicava então a mulher Alice. Juntos, Rui e Alice dois filhos tiveram dois filhos Helena Nabeiro Tenório e João Manuel Nabeiro, que integram o conselho de administração do Grupo Nabeiro – Delta Cafés.

Para Rui Nabeiro, uma das figuras mais consensuais da história contemporânea portuguesa, a família sempre foi um dos pilares da sua vida. Aliás, reuniu-a ao longo de anos e diante dos negócios da família, alargando também a voz ativa aos netos: Rui Miguel Nabeiro, atual CEO do grupo, Rita Nabeiro e Ivan Nabeiro, que fazem parte do órgão executivo, e Marcos Tenório Bastinhas.

Empresário, autarca, comendador

Manuel Rui Azinhais Nabeiro, nasceu em Campo Maior, vila do interior do país, no distrito de Portalegre, junto à raia com Espanha, a 28 de março de 1931.

O empresário, presidente e fundador do Grupo Nabeiro – Delta Cafés, morreu hoje, vítima de doença no Hospital da Luz, em Lisboa, onde se encontrava internado devido a problemas respiratórios, aos 91 anos, a pouco mais de uma semana de celebrar mais um aniversário.

Oriundo de uma família humilde, desde cedo aprendeu a lidar com a adversidade. Com 12 anos, começou a trabalhar com o pai e os tios na torra do café, “numa altura em que o contrabando era atividade que matava a fome das gentes da raia”, afirmou, em entrevista ao Jornal de Negócios, em 2004.

Numa outra entrevista dada ao Diário de Notícias (DN), três anos antes, Rui Nabeiro recordava o facto de ter começado a trabalhar “muito cedo”.

Tal aconteceu numa altura em que “Campo Maior era uma vila com imensas dificuldades, muito por culpa da guerra civil de Espanha e devido ao esquecimento” a que os habitantes da zona estavam “condenados pelo próprio Governo”.

“Por necessidade deixei a escola, embora costume dizer que fui um felizardo por ter tido a oportunidade de fazer a quarta classe numa época em que pouca gente ia à escola”, disse Nabeiro, na altura.

Segundo a biografia enviada à agência Lusa pelo Grupo Nabeiro — Delta Cafés, “com o ensino básico de habilitações, logo nos bancos de escola” Nabeiro salientava-se “dos demais colegas pela sua iniciativa e pela sua capacidade de liderança”.

Ao DN, recordou ainda que uma das primeiras tarefas que desempenhou foi “transportar café num carrinho de mão e levá-lo para Espanha”.

Isto porque “tínhamos grandes quantidades de café proveniente das ex-colónias” e, “em Espanha, o produto escasseava e a procura era muita”, explicou.

Aos 17 anos, após a morte do pai, assume os destinos da pequena sociedade familiar, a Torrefacção Camelo, Lda.

E é dentro de um pequeno armazém de 50 metros quadrados, na vila de Campo Maior, em 1961, que Rui Nabeiro começa o seu negócio com a torra de 30 quilos de café por dia, criando a Delta Cafés, empresa que assumiu sempre uma intervenção ativa na sociedade, apoiando diversas instituições sociais.

“É curioso que a Delta surge numa altura que os médicos me aconselharam a parar, atravessava um mau período de saúde, tinha uma hérnia discal dupla a travar-me os movimentos”, disse, em março de 2001, ao DN.

E, “por volta da década de 60 [do século passado], quando devia descansar, surge a Delta. Fruto da minha ambição e daquilo que muitos chamam sentido de oportunidade. Essa minha atitude, misturada com muita sorte, e sublinho muita sorte, levou a que o risco de criar uma nova empresa acabasse por se tornar um sucesso”, salientou o gestor.

“Considero-me um homem ambicioso, mas de mãos abertas. Sempre acreditei em mim e essa foi a minha melhor qualidade. Em pequeno sonhava muito. Trabalhei muito, lutei bastante para chegar aqui, mas nunca fechei as mãos”, frisou Rui Nabeiro.

Assumidamente de esquerda, entra na vida política e, em 1972, ainda durante a ditadura, é eleito presidente da câmara de Campo Maior, cargo que voltaria a ocupar depois do 25 de Abril, entre 1977 e 1986.

Em entrevista à Lusa, em 2014, Rui Nabeiro evocou esses tempos da ditadura e do 25 de Abril e considerou ter sido um “privilégio” para o país a Revolução dos Cravos, que para sua empresa significou também um momento de “afirmação” e de “atitude”.

Logo após a revolução, existiram “conversas” para ocupar a fábrica da Delta Cafés, mas a sua “presença constante” na unidade e o facto de o seu “caráter” ser bem conhecido nunca conduziram os revolucionários a tomar a iniciativa, contou.

“Na altura do 25 de Abril, nós já tínhamos uma posição bastante curiosa, já trabalhavam connosco umas dezenas de pessoas [77 trabalhadores]”, assinalou.

E seu percurso como autarca, a ajuda que dava às pessoas e um “certo simbolismo” que já ostentava na altura junto do povo de Campo Maior contribuíram para que a empresa não fosse ocupada.

Os anos 70, principalmente 1975, foram de crescimento da empresa, pois, numa altura em que a maioria dos portugueses abandonava África, sobretudo Angola, Rui Nabeiro desenvolvia negócios naquele país, com a compra de café, e em países europeus.

Além da política, o conhecido ‘rosto’ da Delta Cafés esteve ligado ao futebol, nomeadamente como presidente do Sporting Clube Campomaiorense, tendo sido responsável pelas infraestruturas que levaram o clube das regionais à I Liga de futebol profissional.

Em 1995, o Presidente da República Mário Soares atribuiu-lhe o grau de Comendador da Ordem Civil do Mérito Agrícola, Industrial e Comercial — Classe Industrial, pelo reconhecimento de mérito empresarial e contributo ao desenvolvimento da terra e da região.

Paralelamente, o grupo Delta foi ganhando ‘asas’ e na década de 80 avança para a internacionalização, com a aposta em Espanha, um passo que hoje se estende desde o Brasil à China, entre outros mercados.

Em 1998, a população de Campo Maior presta-lhe uma homenagem, erguendo uma estátua na praça da vila.

Numa entrevista a 16 de agosto daquele ano ao DN, sobre a política, afirmou: “Fui e continuarei do PS. Sempre. Sempre”.

Quanto à religião, afirmava acreditar em Deus, mas confessava não ser um praticante semanal

Em 2002, no livro “O homem, uma obra: a de Rui Nabeiro”, a biógrafa Tereza Castro Ribeiro define, em declarações ao jornal Público, o fundador da Delta Cafés como “um empresário que pensa com o coração”, “um lutador” e “um homem de Abril que nasceu em março”.

Pelo meio do seu percurso ainda teve de enfrentar um processo judicial, na década de 80, por alegada fuga aos impostos, mas, em 1990, o Tribunal da Relação decidiu anular as acusações judiciais que pendiam contra si. Ao todo, foram mais de quatro anos de polémica judicial entre as autoridades e os advogados do dono da Delta.

Fundou a Novadelta em 1982 e, dois anos mais tarde, criou a maior fábrica de torrefação da Península Ibérica.

O Grupo Nabeiro — Delta Cafés nasce em 1988, dando origem à criação de mais de duas dezenas de empresas, com intervenção em áreas tão diversas como a agricultura e vitivinicultura, distribuição alimentar e de bebidas, retalho automóvel, comércio imobiliário e hotelaria.

Além da condecoração de comendador, em 2006 foi novamente distinguido como Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.

Em 2007, inaugurou o Centro Educativo Alice Nabeiro, para dar resposta às necessidades extraescolares das crianças de Campo Maior.

Com o patrocínio da Delta, a Universidade de Évora criou, em 2009, a Cátedra Rui Nabeiro, destinada à promoção da investigação, do ensino e da divulgação científica na área da biodiversidade.

No mesmo ano, por indicação do Rei de Espanha, foi honrado com a notável insígnia — A Comenda da Ordem de Isabel a Católica, “uma das maiores distinções” do país vizinho e, em 2010, foi nomeado Cônsul Honorário de Espanha, com jurisdição nos distritos de Castelo Branco, Portalegre, Évora e Beja.

Ao longo da vida, o seu caráter humilde nunca mudou. Nas suas empresas, com milhares de trabalhadores, ou pelas ruas de Campo Maior e na região, era normal ouvir cumprimentá-lo por “Sô Rui”. Deu emprego a grande parte da população da sua vila natal, assim como em concelhos vizinhos e na região. Era encarado por muitos como um ‘pai’. Morreu hoje, no Dia do Pai.

Carla Bernardino com Lusa