#Prostituição: “Qual é o outro trabalho que paga assim?”

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Mariana deixou o filho, na Roménia, e partiu de carro com a amiga até às ruas de Lisboa. Não quer ficar mais do que um ano, mas só pensa em regressar quando juntar o suficiente para comprar um bom apartamento para a família.

Mariana tem o tempo de um cigarro para contar porque se enfia nuns jeans apertados e nos seus saltos altos e chega pela manhã às ruas do Intendente, da Mouraria ou da Artilharia 1, em Lisboa. “Julgas que é porque gosto?” Mais do que uma pergunta é um ataque preventivo. Se ela pudesse, estaria a fazer outra coisa. Mas, antes de tudo, teria de pedir um visto de residência e uma carta de recomendação: “A quem é que vou pedir, aos meus clientes?”

Fazer outra coisa não é o mesmo que qualquer coisa. O dinheiro conta. Dizendo o mesmo de forma certeira, o dinheiro é a única razão por que trabalha de segunda a sábado, das 10h às 20h. Algumas vezes até às 21h ou 22h, quando o movimento é forte, e há probabilidade de ganhar mais. “Julgas que é pelo dinheiro?”. Outro ataque preventivo. Então, não é pelo dinheiro? É, mas não para gastar em roupas caras, cabeleireiros e outros disparates. Quer comprar uma casa com três quartos, quem sabe com terraço e tudo. Pode até ser em Rahova, na periferia de Bucareste, de onde partiu na primavera do ano passado. Deixou o emprego numa fábrica de embalagens alimentares, o filho de sete anos, uma sobrinha adolescente, a mãe e três irmãos. Todos engalfinhados num apartamento tão mínimo que só cabem nas camas empilhadas em beliches de dois e três andares.

Mariana diz ter menos de um ano para conseguir juntar o suficiente. Oito meses já se foram e sempre com muitas cautelas. Os fiscais do SEF aparecem sem avisar nas ruas, nos bares e até nas pensões que, para não terem problemas, recusam as ilegais (apesar de a Roménia ser membro da União Europeia, os seus cidadãos estão obrigados a um registo obrigatório com prova de recursos para viverem em Portugal). Se pudesse ia-se embora, agora, esta noite. Só para não andar escondida e com medo do que pode encontrar ao virar a esquina. Mas não foi para regressar sem nada, ou com quase nada, que partiu da Roménia com a amiga, que entretanto foi recambiada, mas há de voltar daqui a seis, sete meses, se tudo correr bem.

Vieram sozinhas, de carro pela Hungria, Eslováquia, República Checa e pararam nas ruas e em bordéis de Berlim. Não ficaram muito tempo, havia tantos chulos como prostitutas, mais inconvenientes do que varejeiras atrás do negócio alheio: “Aqui estou sozinha, ninguém me chateia e eu não chateio ninguém.” Confusão é a última coisa de que precisa. Sabe que quem manda nas ruas são as portuguesas, as mais antigas, as que estão ali desde sempre. E respeita a autoridade delas. “Ela não é como “algumas” que vieram do leste”, avisa uma das tais portuguesas que se encosta na conversa para coscuvilhar e matar o tempo.


Há colegas em quem se pode confiar, aquelas que nem cobertas de ouro se aproximam, as que trabalham por conta própria, as que têm um patrão a controlar tudo o que fazem, as que estão a tempo inteiro ou em part-time para conseguir pagar as prestações da casa, do carro ou a faculdade dos filhos. Mariana é das que está sozinha e assim vai continuar. “Nunca ninguém me obrigou a nada.”


Mariana não vende o sexo barato só para lixar a concorrência. É o que muitas fazem, garante a colega dela. Já não basta serem mais vistosas e arranjarem-se melhor, também cobram menos. Ela acata o preço tabelado pelas veteranas: 20 euros por 15/20 minutos (15 para ela, 5 para a pensão). Há mais de uma década que o valor não sofre atualizações.

Ao final da semana são 500 ou 600 euros, às vezes ultrapassa os 700: “Qual é o outro trabalho que paga assim?” É 10 ou 20 vezes mais do que ganharia se estivesse a trabalhar numa fábrica na Roménia com um salário de 275 euros por mês. A maior fatia, envia para a casa, uma parte para as despesas da família, outra para a conta do filho e a outra para amealhar até conseguir comprar uma casa a pronto, sem juros nem prestações. É para isso que aqui está, repete para que não restem dúvidas. E não tem tempo para deitar fora. Teve de descobrir à pressa o essencial para não se perder na rua. No início, não soletrava uma sílaba em português. Aprendeu depressa e, agora, tirando um ou outro verbo mal conjugado (e um sotaque moderado), diz tudo sem cerimónias e sem se atrapalhar.

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Às vezes quase que a confundem com as portuguesas: “É verdade”, garante a colega ali ao lado. Tão verdade que ela até usa o jargão próprio da atividade como se fosse uma delas. Algumas expressões nem se podem repetir em voz alta, mas há muitas outras que arrancam risos até aos mais castos. Os clientes entre elas, por exemplo, são “cabritos” que vão ali num instantinho “esfolar” e já voltam. Os mais regulares ganham estatuto de “amigos” ou “amigos fixos”. Os encontros são “visitas”, combinadas entre eles e elas na rua ou então, quando são praticamente de casa, simplesmente com um sinal discreto deles ou delas em que cada um já sabe o que fazer e para que pensão dirigir.

Há também um código de ética, mais ou menos informal, mas essencial para uma convivência minimamente pacífica. A concorrência desleal, já se sabe, é muito mal tolerada. Preservativo sempre, bêbados nunca, nem tão pouco sítios desconhecidos. Sexo em grupo nem pensar e, por fim, respeitar o espaço e os clientes fixos de cada uma. São regras básicas para se evitar chatices. Não é que se espere muito apoio entre colegas. Mas servem sempre de algum consolo em algumas situações complicadas como avisos de que a bófia anda pelas redondezas, agressões, roubos nos quartos ou informações sobre clientes pouco recomendáveis, coisas que “felizmente”, vão acontecendo cada vez menos, conta a portuguesa.

De resto, é como num escritório, só não estão dentro de quatro paredes. Há colegas em quem se pode confiar, aquelas que nem cobertas de ouro se aproximam, as que trabalham por conta própria, as que têm um patrão a controlar tudo o que fazem, as que estão a tempo inteiro ou em part-time para conseguir pagar as prestações da casa, do carro ou a faculdade dos filhos. Mariana é das que está sozinha e assim vai continuar. “Nunca ninguém me obrigou a nada”, assegura. Não pode falar pelas outras. Cada uma sabe de si. Ela, aliás, acabou por falar mais do que queria, admite, enquanto apaga o cigarro com o bico do sapato. É o último ataque preventivo dela mas, no final, o tempo da conversa prolongou-se muito além de um único cigarro, como previamente combinado. Foram quatro, com longos intervalos pelo meio, mas quatro cigarros queimados até à beata.

Kátia Catulo

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