Sandra Faleiro em Veneza com ‘A Herdade’: “É como se estivesse a viver um filme dentro do filme”

A atriz Sandra Faleiro divide com o ator Albano Jerónimo o protagonismo do filme A Herdade. Uma das mais recentes obras cinematográficas portuguesas, que se estreia mundialmente esta quinta-feira, no Festival de Veneza. Em 14 anos é a primeira vez que um filme português está incluído na seleção oficial do mais antigo festival de cinema da Europa. Motivo de “grande orgulho” para a atriz, que, explica, em entrevista ao Delas.pt, que A Herdade foi “um daqueles processos especiais que são transformadores”. “É como se fosse uma lufada de ar fresco!”

O filme, que foi também selecionado para o Festival de Cinema de Toronto e está nomeado para os Prémios Goya, conta a “saga de uma família proprietária de um dos maiores latifúndios da Europa, na margem sul do rio Tejo, […] fazendo o retrato da vida histórica, política, social e financeira de Portugal, dos anos 40, atravessando a revolução do 25 de Abril e até aos dias de hoje”, refere a sinopse.

 

 

Sandra Faleiro está nomeada para ‘Melhor Atriz’, disputando a categoria com Meryl Streep, Juliette Binoche, Laura Dern, Penélope Cruz e Scarlett Johansson.

A personagem da atriz, em A Herdade, é Leonor, mulher de João (Albano Jerónimo), uma mulher submissa, que se vai revelando nas ambiguidades que caracterizam todas as personagens do filme. “O Tiago Guedes sempre teve a preocupação que ela [a Leonor] não fosse só um cliché da mulher submissa, então tivemos toda uma procura de lhe dar profundidade, pontos de vista e ambiguidade”, diz a atriz sobre a personagem que lhe coube no filme, com estreia marcada para 19 de setembro, nas salas nacionais.

Na entrevista ao Delas.pt, Sandra Faleiro fala também sobre a condição feminina, a da sua personagem, a das mulheres no país e, claro, no cinema – começando por Veneza cujo júri deste ano é presidido por Lucrecia Martel – mas também no teatro, onde tem uma longa carreira, que, além da representação, inclui também a encenação. Leia, em baixo, a entrevista completa.

 

O que significa para si, enquanto coprotagonista deste filme, A Herdade, estar na seleção oficial do Festival de Veneza?

Para já, foi uma grande surpresa, não estava nada à espera que isso acontecesse. É o festival de cinema mais antigo e é um grande orgulho. Eu gosto muito do filme, acho que é belíssimo. Portanto, vou estar em Veneza com muito orgulho. Foi um trabalho muito coeso, toda a gente deu tudo durante as filmagens e eu acho que isso se nota no filme. Para mim, é quase como se estivesse a viver um filme dentro do filme [risos]. É um bocadinho surreal.

Disse que gostou muito do filme, mas o que é que gostou mais?

Foi o processo. Foi daqueles processos especiais que são transformadores e quando isso acontece é incrível, faz com que a nossa vida profissional faça outra vez sentido. É como se fosse uma lufada de ar fresco!

Quanto tempo é que durou esse processo?

Eu fui fazer casting um mês antes de começarem as filmagens – em junho, julho de 2018 – e depois as filmagens duraram dois meses, sendo que cada dia era uma descoberta porque houve um trabalho de fundo sobre o guião e à medida que se ia filmando, o guião ia-se transformando. A minha personagem, a Leonor, estava [no guião] mais superficial, era só uma figura espectral no argumento, mas o Tiago Guedes sempre teve a preocupação que ela não fosse só um cliché da mulher submissa e então tivemos ali toda uma procura de lhe dar profundidade, pontos de vista e ambiguidade.

Como é que definiria a Leonor?

Eu acho que a Leonor passa muito por aí. Ela é uma personagem que existe! Mas tanto é a minha assim como a dos outros. As personagens deste filme estão muito bem construídas e são profundamente humanas. São todas bastante ambíguas, como somos todos na vida.

Esta história fala de uma família latifundiária e atravessa a ditadura e a revolução do 25 de Abril, que faz com que a condição das mulheres também se altere. Como é que a sua personagem evolui com estas mudanças todas, enquanto indivíduo mas também enquanto tipificação da mulher dessa época e dessa esfera social?

No filme, houve toda a fase dos anos 70, que é o início do casamento. De qualquer forma, as mulheres, naquela época, foram educadas para sofrer, calar e aguentar, e serem submissas. Não punham as coisas em causa. A Leonor era filha do general [Lopo Teixeira], também um ditador, ainda por cima! Vem com esta tradição toda familiar e de educação católica bastante conservadora. Mas com o sofrimento ela foi mudando, e com a revolução, apesar de ela não ser uma personagem política, pressente-se a política nela. A Leonor não tem propriamente um discurso político, tem um bocadinho, mas nada de muito explorado. Eu acho que o filme é muito sobre a família, a história de uma família que é atravessada pela revolução. Ainda assim, a Leonor emancipa-se, no fim, ela corta o fio, e há uma redenção nela. Agora, em relação à situação feminina, as coisas mudaram mas continuam a existir grandes desigualdades: os homens continuam a ganhar mais, são eles que ocupam os cargos de gestão, as mulheres trabalham muito mais porque, além do emprego, vão para casa e ainda têm de tratar dos filhos e das tarefas domésticas, que muitas vezes não são divididas. E ainda existe muito machismo e muita misoginia. Vivemos numa democracia, mas há ainda muita coisa que tem de ser falada e resolvida e temos de continuar a lutar pelos nossos direitos e pela igualdade, obviamente.

Como disse, isto é um filme que é, sobretudo, uma história de família e muitas vezes as mudanças legais e sociais acabam por demorar mais tempo a chegar, justamente, ao seio e vivência familiares.

Sim, exatamente.No caso do filme, estamos a falar de uma família que vive numa herdade. Ou seja, também é uma espécie de ilha. E as personagens todas são ilhas dentro da ilha. É como se todos estivessem envoltos numa névoa. Uma das coisas mais interessantes no filme e que também se passa muito na realidade é o que não se diz, é o que se pressente, o que se vai acumulando e que depois rebenta de alguma maneira.

Além deste festival, A Herdade foi também selecionada para outros prestigiados festivais de cinema, como o festival de Toronto, está nomeado para os prémios Goya e até há críticos que dizem que é a primeira vez que temos um forte candidato à shortlist dos Óscares. Concorda com a conclusão de muitos, de que há um renovado interesse no cinema português?

As coisas estão a começar a começar, porque existem muitos realizadores novos e agora o Variações está a ter imenso público. Espero que ajude as pessoas a voltarem a ir aos cinemas ver cinema português. E este filme, A Herdade, não é só um filme autoral, tem um lado universal que o torna também comercial, está ali no meio entre o comercial e o autoral. Não é um filme de “elite” e isso é muito interessante. E é cinema! Para mim é um clássico, é filmado de uma maneira que me faz lembrar aqueles grandes clássicos do cinema. Temos realizadores muito bons e é preciso aproveitar esta onda de criatividade e alimentá-la e apoiá-la, que é o grande problema que nós temos, tanto no cinema, como no teatro… Por exemplo, o Tiago Guedes que é um realizador extraordinário esteve 10 anos sem filmar. É absurdo! Espero que depois disto ele vá ter mais oportunidades e lhe criem condições.

O júri de Veneza, este ano, é presidido por Lucrecia Martel. Mas, segundo a própria realizadora, há poucos filmes dirigidos por mulheres nesta edição. Ela chega a lançar a possibilidade de haver quotas de representação feminina. Concorda? Acha que este poderia ser um caminho?

Poderia ser, sim. Mas esta questão das quotas também é sempre complicada, eu acho que é sempre mais difícil para as mulheres conseguirem alguma coisa. Não sei se mudará indo pelas quotas.

A Sandra, que tem experiência na encenação, também sente de forma parecida em relação ao teatro essa diferença de representação de género?

Eu tenho muitas colegas que são encenadoras e que estão a trabalhar, mulheres que estão aí a fazer imensa coisa. O que eu acho é que há mesmo falta de apoios.

Mas essa falta de apoios é igual independentemente do género, ou as mulheres por estarem, talvez, há menos tempo neste campo acabam por ter mais dificuldade em consegui-los?

Pois, se calhar é por aí: os homens estão há mais tempo, não é? Exatamente. Essa é uma boa questão. Os homens estão há mais tempo, é quase uma coisa ancestral. Nós começámos há pouco tempo, de facto, a encenar, a dirigir, a realizar. É verdade. É uma tradição toda masculina, para trás, que tem de se rebater. Acho que também passa por aí, com certeza. Mas voltando à realização e à encenação, no geral, o que eu sinto é que há, de facto, a questão sempre incontornável da política cultural. Eu faço uma encenação de dois em dois anos e, se calhar, gostava muito mais de estar a encenar todos os anos duas peças, e é muito difícil porque é impossível estar a sobreviver, no dia-a-dia, com isso. Não há apoios para isso. E os teatros estão cheios. Portanto, deviam apoiar mais e impulsionar mais.

 

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