Sandra Nobre: “Adoro comida com requinte, mas também uma boa tasca”

Yummy and delicious. O estrangeirismo é propositado, por ser já a imagem de marca de Sandra Nobre no programa do 24 Kitchen A Sentada. Ela que nasceu em Angola, viveu em Portugal, na Cidade do Cabo e em Inglaterra, só podia condensar todas estas influências num livro de quase 300 páginas com o mesmo nome que o programa de TV.

Editado pela Leya – Casa das Letras, A Sentada reúne todas as receitas internacionais cozinhadas por Sandra Nobre na segunda temporada do formato televisivo, num total de 22 menus diferentes, entre os quais estão pratos típicos da Riviera Francesa, mas também de Itália, Suécia, Grécia, Médio Oriente e ainda outros inspirados por diferentes estações do ano e também pela alimentação da Família Real Britânica.

Em entrevista ao Delas.pt, a autora e cozinheira fala sobre as suas raízes africanas, mas também norueguesas; sobre a sua família e hábitos alimentares, e ainda sobre o seu percurso surpreendente, que a levou do design de produto a uma das mais reputadas escolas de cozinha francesa, a La Cordon Bleu. A sua receita mais preciosa?
O caril que comeu no Lake Palace Hotel, na noite em que concebeu a sua filha, e cuja receita reproduz na página 88.

Sempre falou das suas raízes africanas, mas fiquei surpreendida ao ler, neste livro, que tem também uma ‘costela’ norueguesa.
As minhas origens europeias vêm dos meus bisavós maternos e paternos. O meu bisavô paterno era um comerciante norueguês, que imigrou para Cabo Verde., onde nasce o meu avô, que por sua vez imigra para Angola. O meu pai já nasce em Angola. Da parte da minha mãe, a família era portuguesa e mudou-se para Angola. É aqui que os meus pais se conhecem anos mais tarde e onde eu nasço. A minha filha Maria já nasce em Portugal, mas o pai dela é de Moçambique com influências britânicas. A Maria vive em Inglaterra e é capaz de se apaixonar por um inglês. Vou ficar com uns netos britânicos e portugueses [risos]. Esta fusão de culturas só nos torna especiais. Por isso foi tão fácil para mim escrever este livro, porque é tão comum viver e estar com pessoas de outras nacionalidades.

Mudou-se para Portugal ainda muito nova. Lembra-se do que comia na altura, era já comida portuguesa?
Sim, eu chego a Portugal com 8 anos, em 1985, e vou para Santarém. A minha mãe era médica e ficou aí colocada, mas ficávamos [eu e a minha irmã] muitas vezes com as vizinhas. Não fiquei inserida numa comunidade angolana, por isso aprendi mais sobre a gastronomia nacional. A minha avó, que estava também em Portugal, era professora primária e adorava história, então a gastronomia portuguesa sempre fez parte do meu crescimento.

No livro fala muitas vezes sobre a sua avó. Ela foi uma grande referência, em termos culinários?
Costuma-se dizer que as avós são como segundas mães, mas a minha avó foi mesmo a minha mãe porque eu perdi os meus pais muito cedo, pouco tempo depois de chegar a Portugal. Fui criada pela minha tia e pela minha avó, foram as mulheres da minha vida. A minha tia era um sargento [risos], por isso era impensável não ajudar em casa, tínhamos mesmo que cozinhar. Eu não gostava nada, mas ficava sempre encarregue dos almoços e jantares, porque a minha avó dizia que a minha irmã era melhor nas sobremesas.

Foi isso que a levou a estudar pastelaria na Cordon Bleu de Londres?
Eu sou danada, quando me dizem que não sou capaz gosto de provar, a mim mesma, que sou. Já tinha feito os três anos de culinária na Cordon Bleu da Cidade do Cabo, África do Sul, quando decidi complementar o curso com a especialização em Pastelaria, em Londres. Não tenho medo nenhum de recomeçar e aprender tudo de novo. Tive a oportunidade de ter crescido com uma avó que não tinha medo e que, depois de reformada, quis ir fazer um curso de direito.

Antes de se formar em culinária, a Sandra também pertencia a um mundo completamente diferente. Fale-me sobre o seu percurso profissional.
Eu estudei design de equipamento na Lusófona. Mas em 2008, infelizmente, Portugal não estava numa fase muito simpática e tive a possibilidade de ir trabalhar para uma empresa familiar na Cidade do Cabo, em África do Sul. Como disse, eu aprendi a cozinhar muito nova, aos 9 anos. É cultural, nos países africanos, os filhos cozinham desde muito cedo, porque tem que se aprender. E eu sempre tive vontade de explorar mais essa área. Foi assim que descobri que esta conceituada escola, a Cordon Bleu, tinha um curso na África do Sul. Foi muito puxado, eu achava que ia aprender a fazer bolinhos, mas adorei o curso. Aprendi tudo, desde o food cost às aulas práticas. Foi muito intenso.

Nasceu em Angola, cresceu em Portugal e viveu na Cidade do Cabo. A vossa comida de conforto hoje em casa é uma influência de todas estas culturas?
Sim, depende muito dos dias. Ontem fiz douradas escaladas, no outro dia carapaus. Eu guio-me mis pela época do ano, do que pelo país. Por isso é que este livro também está dividido pelas estações do ano, porque eu gosto de cozinhar com os ingredientes de cada época.

A formação da Cordon Bleu recai sobre a cozinha mais clássica, francesa. Mas gosta também de cozinha tradicional?
Sim, eu adoro uma boa tasca. Eu hoje, vivo entre Portugal e Inglaterra, porque a minha filha Maria, de 15 anos, está lá a estudar. E cá, eu vivo numa aldeia em Sintra, e adoro ir aos restaurantes pequeninos, aos petiscos, e aos sítios onde os fornecedores são agricultores locais. Também gosto de requinte na minha mesa. O restaurante onde trabalhei na Cidade do Cabo, o La Colombe, ajudou-me a aperfeiçoar o fine dining, pelo que em casa tenho sempre cuidado com a apresentação. Na verdade, tudo o que faço no programa são receitas fine dining, mas adaptadas de uma maneira mais simples.

Uma vez que o livro está dividido por estações, qual é o seu prato português de eleição no inverno e no verão?
O meu prato de inverno é sopa da pedra, que se come às 17h00 da tarde e no dia seguinte não se tem fome. Para verão, amo peixe escalado e ameijoas à Bulhão Pato, mexilhões, muita sardinha com broa. Quando estou em Portugal, adoro comer comida portuguesa porque noto, cada vez mais, que nem sempre consigo encontrar produtos e peixe tão fresco lá fora. E quando estou noutro país, gosto de comer comida característica desse país.

Já conseguiu visitar todos os países cujas receitas reproduz no livro?
Quase todos. Ainda não fui à Turquia, quero muito conhecer. Alguns pratos aprendi a fazer em Inglaterra, onde é possível provar muitas destas gastronomias internacionais.

O seu primeiro livro, A Sentada, é inspirado no programa de televisão homónimo do 24 Kitchen. Criou as receitas especificamente para este propósito ou foram adaptadas do formato televisivo?
Todas as receitas foram criadas e transmitidas na segunda temporada do programa. Quando pensei na segunda temporada, em 2018, inspirei-me nas pessoas que eu conheço, nos sítios onde vivi e que gostaria de visitar. E criou-se uma Sentada com menus de diferentes países. Na primeira temporada do programa, as receitas estavam todas no Youtube, enquanto que esta série não tinha formato físico ou de vídeo que as pessoas pudessem consultar. Fiquei muito feliz quando a Leya quis fazer este livro, porque já não sabia o que responder às pessoas que me pediam as receitas. Como tínhamos já fotografias desses pratos da segunda temporada foi compilar e acrescentar outros detalhes.

O que é uma Sentada?
É uma expressão angolana para uma refeição longa, em família, numa mesa comprida. Quando alguém nos convida para uma sentada é sempre num domingo. Começa às duas da tarde e prolonga-se até à madrugada e vai-se comendo, por vezes até se dorme na casa desse amigo. Eu costumo organizar muitas em minha casa.

Sonha com abrir um restaurante, que reúna todas estas cozinhas do mundo?Adoraria muito, mas se abrisse era mesmo um projeto para levar a sério. Um restaurante requer muitos cuidados, muita dedicação. Não é só abrir e deixar alguém a tomar conta. Por agora não, até porque a minha filha tem apenas 15 anos, está a estudar fora, e eu quero poder acompanhá-la. Talvez daqui a uns anos.

Entre as receitas do livro há alguma que tenha uma história especial associada?
Eu gosto muito do menu da Família Real Britânica. Percebi, nas minhas viagens, que há muita gente que tenta reproduzir o que eles comem, e o puré de feijão que faz parte do livro foi uma dessas receitas que descobri ser uma das favoritas da rainha. Existe outra receita, que também adoro, o Caril do Lake Palace Hotel (página 88). É o nome de um hotel que eu adoro e onde fui, propositadamente, para conceber a minha Maria. Eu adoro planear tudo. E gostei tanto do que comi no Lake Palace, que até pedi ao chef um frasco com a pasta de caril que usaram.

Dedica o livro à sua filha Maria, bem como as filhas do seu marido, Artur Albarran. A Maria é a mais nova, mas já sinais de querer seguir os seus passos ou ainda náo cozinha?
A nossa filha cozinha e muito bem. Eu não sou nada daquelas mães que dizem: ‘Não mexas ali, vais-te queimar’. Eu penso que se ela se queimar, só se queima uma vez e aprende. Em Inglaterra, a Maria está numa escola onde têm cozinha e é ela que, muitas vezes, faz as panquecas para toda a gente. Já aprendi várias coisas com ela, como a tal receita das panquecas, mas também uma bolonhesa feita com penne que leve queijo e vai ao forno. Não sei se ela vai seguir as pegadas da mãe, até porque está numa fase em que não sabe o que quer, está a curtir a adolescência dela. Já quis ser economista, já quis ser jornalista como o pai. O tempo dirá.

Morcela com migas de batata doce. Uma entrada fácil para impressionar a família