Sara Correia: “Isto de ser a nova voz do fado é muito estranho para mim”

Desde que lançou o seu primeiro álbum, em setembro, que Sara Correia tem sido referida como a próxima grande nova voz do fado. Uma designação ainda estranha para a jovem de 25 anos que, desde os três e por influência da tia Joana Correia, também fadista, frequenta casas de fado. São a sua igreja, onde encontra sempre os melhores conselhos para a vida.

Tem como referência principal a “dona Amália Rodrigues”, nome que nunca pronuncia sem o “dona”, tal é o respeito e admiração. O mesmo acontece quando fala da “dona Celeste Rodrigues”, irmã de Amália, com quem trabalhou desde muito cedo e de quem guarda preciosos conselhos recebidos depois de noites de fados, entre jogos de cartas e galões.

Esta quinta-feira, às 21h30, sobe ao palco do Capitólio para apresentar o álbum, “Sara Correia”, com dois dos seus melhores amigos a acompanhá-la: Diogo Clemente, que produziu este trabalho, e o guitarrista Ângelo Freire. Vai estar em família e a fazer aquilo de que mais gosta, a cantar e sentir o fado em cada palavra. Carolina Deslandes, companheira de Diogo e amiga de Sara, será a convidada especial desta noite.

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A sua história no fado começou no dia em que saiu de casa, sem avisar a sua mãe, e foi pedir ao senhor Armando Tavares para cantar na escola de fado. Lembra-se desse dia?

Lembro-me perfeitamente. Sempre ouvi fado, desde os três anos que vou aos fados por causa da minha tia Joana Correia, que também já cantava. Esse bichinho sempre esteve aqui, sempre quis cantar. Sabia que havia uma escola de fado onde podíamos ir tirar os tons, aprender a dividir as letras. Fui lá bater à porta e pedi para cantar. Deixaram-me e olha, aqui estou eu.

Que idade tinha na altura?

Nove anos.

O que lhe disse o senhor Armando?

Primeiro perguntou-me: “Estás sozinha?” e eu disse: “Estou, mas a minha mãe mora aqui”, que era no prédio à frente. Ele já sabia que eu era sobrinha da Joana Correia e comecei por ali, a dar os primeiros passos. Foi a primeira casa onde desenvolvi o meu fado.

O que mudou na sua vida desde que começou a frequentar a escola?

Nessa altura cantava muito porque queria, ainda não tinha noção do que era o fado. A maturidade traz-nos uma visão diferente das coisas. Só comecei a ter noção quando fui à Grande Noite do Fado, com 13 anos, e venci. Quando saí, olhei para a minha mãe e disse-lhe: “Mãe, é isto que quero fazer para o resto da vida. Vou trabalhar para isto.”

Como é que a sua mãe reagiu?

A minha mãe sempre me apoiou. Aliás, somos uma família de fadistas. Só eu e a minha tia é que cantamos, mas todos lá em casa brincamos uns com os outros. Somos todos de muito fado.

“Jogava às cartas com a dona Celeste [Rodrigues] e bebíamos galões. Ela dizia-me sempre que só com a idade e a experiência é que o fado se desenvolve.”

Apesar de cantar e respirar fado, que outros estilos musicais gosta de ouvir?

Só canto fado, mas não quer dizer que não possa vir a cantar outras coisas. Não temos de ser só uma coisa. Gosto muito de ouvir Concha Buika e Frank Sinatra. Adoro jazz, mornas, gosto de música no geral. Ouço de tudo um pouco. É importante para o artista saber ouvir outros estilos de música e, daí, ir buscar algumas referências para o fado. Esse é o segredo de cada artista.

Em 2007 ganhou a Grande Noite do Fado, 10 anos depois de a sua tia ter conquistado o mesmo prémio. Em jeito de retrospetiva, que impacto é que isso teve na sua carreira?

Foi muito importante porque, a partir do momento em que vencemos uma Grande Noite do Fado, começamos a ser chamados para cantar em casas de fado com nome, profissionais, e em eventos privados. Tive a sorte de, entretanto, começar a cantar em várias casas como a Mesa de Frades, Fado em Si e onde estou agora, no Páteo de Alfama. Cheguei a fazer quatro casas por noite, sempre fui muito de ir ouvindo e bebendo por todos os sítios onde ia. Queria estar com as minhas referências do fado, que são as antigas.

O que se via a fazer se não fosse fadista?

Como tive sempre a certeza de que queria fazer isto, nunca pensei muito. Na verdade, não sei. Talvez atriz. Estaria sempre ligada às artes.

Refere sempre que, ao longo de toda a vida, tem contado com o apoio de grandes nomes do fado, como o Jorge Fernando, Maria da Nazaré, Celeste Rodrigues e Cidália Moreira. Esse apoio não se vê tanto em quem canta outros estilos musicais. No fado as pessoas são mais generosas?

Quando cheguei, o fado já era algo muito desenvolvido entre os fadistas e há aqui um respeito enorme. Trato-as sempre por dona Celeste ou dona Cidália porque são todas donas de um fado que é só delas. Para mim, elas são o fado e as histórias de que precisamos para nos desenvolvermos enquanto fadistas. Não vivemos aquilo que estes fadistas viveram para, hoje em dia, o fado estar como está. Se o fado é o que é hoje é por culpa deles, foram a minha maior inspiração e vão continuar sempre a ser. São as pessoas que procuro quando preciso de um conselho, as pessoas que já cá andam há muitos anos.

Mas isso não se vê tanto noutros estilos musicais…

Dos outros não sei, mas sei do meu. No fado isso acontece porque, quando começamos a cantar, vamos buscar letras destes fadistas. O Jorge Fernando, por exemplo, além de cantor é compositor, faz músicas e escreve. Acabamos por usufruir daquilo que têm para nos dar para o nosso desenvolvimento, por isso é que cantamos muito o que é dos outros fadistas. É como se fossemos uma família, pelo menos sinto isso.

Em março vai fazer parte de um concerto de homenagem à Celeste Rodrigues no CCB. Que conselho dela é que guarda com mais carinho?

A dona Celeste era uma pessoa muito especial, daquelas fadistas educadas a falar connosco. Não havia o: “Oh menina.” Era outra coisa. Jogava às cartas com a dona Celeste e bebíamos galões. Ela dizia-me sempre que só com a idade e a experiência é que o fado se desenvolve. Naquela altura não percebia muito bem o que isso significava, mas hoje em dia percebo. O nosso fado vai mudando conforme a idade que temos e as vivências que passamos, sejam elas dor ou amor. Daí a nossa voz também ir mudando com a idade e o peso da palavra ser outro. O fado passa a ser muito mais intenso com a idade. Foi isso que a dona Celeste sempre me passou. Tudo a seu tempo, tudo vai ao seu sítio com a vida. Estas foram as palavras mágicas para mim e hoje penso exatamente desta forma, percebo o que a dona Celeste me queria dizer naquela altura.

Continuando na onda de homenagens, no último fim de semana fez parte do espetáculo “Amar Amália”, no Altice Arena, em que vários cantores portugueses homenagearam Amália Rodrigues. Sendo ela a sua grande referência, que significado teve este concerto para si?

Fartei-me de chorar no fim do concerto. Não tive a sorte de conhecer a dona Amália. Conheço o trabalho muito bem, quase tudo, e para mim foi um enorme privilégio poder fazer parte deste projeto com outros artistas que também adoro, como a Dulce Pontes e o Paulo de Carvalho. Para mim foi muito bom e inspirador. Vai acontecer mais vezes.

Costumava fazer muitas perguntas sobre Amália Rodrigues à irmã, Celeste?

Não, deixávamos que a dona Celeste falasse e nos contasse as histórias. Era muito jovem quando comecei a trabalhar com a dona Celeste, tinha 15 anos. Foram tudo histórias que a dona Celeste nos contava ao final da noite, depois de uma noite de fados. É assim que as coisas funcionam, não fazemos muitas perguntas, ouvimos mais do que falamos.

Que é um conselho da sua mãe…

A minha mãe disse-me sempre que Deus deu-nos duas orelhas e uma boca, portanto temos de ouvir mais do que falar. Isso é interessante e importante.

Estamos no Flat, o local de lançamento do álbum. O que guarda desse dia?

Foi lindíssimo. Para já, o espaço é incrível. Depois foi uma tarde prolongada que se tornou mágica. Estavam aqui também muitos artistas que sigo e de quem gosto imenso. Estava nervosa, como é normal, mas foi um dia muito especial. Foi um daqueles dias que ficam marcados para sempre.

Agora, cinco meses depois de o álbum ter saído, tem sido apontada como a nova grande voz do fado. O que sente em relação a isso?

Como já canto há alguns anos, isto de ser a nova voz é muito estranho para mim porque, para as pessoas dos fados, já não sou uma nova voz. No meio dos fados todos sabem quem sou, somos uma família. Andamos sempre de um lado para o outro, a cantar em várias casas. Cheguei a fazer Alfama, Bairro Alto e Madragoa. Conhecemo-nos todos, mas fico contente por saber que, quem ainda não me tinha ouvido, ache que sou uma promessa. Quem sabe, vamos ver.

Esperava que o álbum tivesse um impacto tão grande?

Trabalhei três anos para este disco. Foi um trabalho pensado e que levou muito tempo a ser construído. Claro que o meu sonho seria sempre que o disco corresse bem. Saiu em setembro, estamos a trabalhar, vou apresentar o álbum agora e depois logo se vê. Só a vida, o foco e a dedicação é que mostram os resultados no final.

O que é que a sua mãe e tia lhe disseram quando chegou com o álbum a casa?

Como somos todos muito chegados, acabamos por estar todos a chorar ao mesmo tempo e depois não se entende nada. O que seríamos sem a nossa família? Senti exatamente aquilo que sentimos quando estamos felizes.

Está preparada para a eventualidade de começar a levar o fado além-fronteiras?

Isso já vai acontecer num concerto que vou fazer na Noruega. Representar o nosso país é sempre um grande orgulho e espero que apareçam mais projetos destes. Para mim é super importante.

Este álbum, em que na primeira faixa canta ‘Fado Português’ à capela durante o primeiro minuto, como que a dar as boas vindas a quem a ouve, fala-nos muito de amor.

Tentei ter de tudo um pouco neste disco e mostrar todos estes anos em que estou no fado. Já tinha alguns temas que queria que fizessem parte deste álbum e algumas letras que o Diogo Clemente escreveu para mim, porque já me conhece desde os três anos. Nesse aspeto foi um bocado mais fácil. Como ele me conhecia, as letras acabam por ser quase uma autobiografia de algumas coisas que se passaram na minha vida. Todos temos histórias de amor, desamor e solidão. Depois também tenho a minha Lisboa, que marquei com o fado ‘Lisboa e o Tejo’. Este disco tem de tudo um pouco, mas sim, fala bastante de um amor um bocadinho sofrido. Tem de ser, isto é que é fado.

Ainda há muito essa ideia de que o fado é triste. Mas não tem de ser assim e tem exemplos disso no álbum, como ‘Quando o Fado Passa’ ou ‘Zé Maria’, por exemplo.

Claro. O fado são emoções. Quando se fala em emoções falamos de tudo: amor, ódio, raiva, mágoa, solidão e saudade. Fado é exatamente isto, não tem de ser só uma coisa triste, bem pelo contrário. O fado é tudo o que sentimos enquanto pessoas.

O álbum foi produzido pelo Diogo Clemente e contou com a participação do guitarrista Ângelo Freire, que além de serem já grandes nomes do fado atual são seus amigos.

Eles são muito importantes para mim. Além de serem os músicos que estão comigo no meu álbum e que fazem parte da minha equipa, são pessoas da minha família, como irmãos para mim. Crescemos juntos e é muito importante que eles estejam comigo. Conhecem-me como poucas pessoas me conhecem. Isso faz a diferença quando estamos em palco, o facto de termos uma grande ligação passa para as pessoas.

O facto de ter uma pessoa tão próxima como o Diogo Clemente, que não só produziu como escreveu alguns dos temas, tornou tudo mais fácil?

Já tínhamos falado, há algum tempo, que eventualmente eu ia querer gravar um disco, mas ele também era da opinião de que tinha de crescer mais um bocadinho, para ganhar outra maturidade. Entretanto liguei-lhe, disse que era agora que queria gravar, demorámos três anos a construir o álbum e aqui está o Sara Correia.

Apesar de muito nova é muito defensora do fado tradicional. O que é para si o fado tradicional?

O fado tradicional é o verdadeiro fado, aquele em que qualquer letra pode ser encaixada, como por exemplo o Fado Menor, Versículo, Mouraria ou o Fado Corrido. Um verdadeiro fadista tem de passar pelo fado tradicional, mas também é preciso passar pelas casas de fado. É muito importante.

O que não gosta de ver quando tentam modernizar o fado?

Hoje em dia as coisas estão muito diferentes. Antigamente o fado era uma coisa muito carregada e venho dessa altura, mas o mais importante é o fado que temos dentro de nós e aquilo em que acreditamos. O fado está essencialmente na nossa alma, voz e forma como vemos a vida, não está naquilo que possamos vestir ou dizer.

Apesar de agora ter começado a pisar grandes palcos, não abdica das casas de fado e chega mesmo a dizer que esses locais são a sua igreja.

Preciso das casas de fado. Primeiro porque é um sítio muito mais intimista, estamos próximos do público e destas tais referências de que falo. Isso é necessário para termos os pés assentes na terra. É às casas de fado que vou buscar toda a força e energia de que preciso para depois pisar outros palcos e passar a mensagem que é preciso passar. Em cima de qualquer outro palco é muito mais difícil passar essa mensagem. A casa de fados dá-nos exatamente aquilo de que precisamos, a tal bagagem, para depois estarmos a fazer um concerto e as coisas correrem bem. Depois disso é muito mais fácil.

Esta quinta-feira vai apresentar o álbum no Capitólio. O que podemos esperar deste concerto?

Estou muito ansiosa e contente porque vou estar mais uma vez com a minha equipa e vamos apresentar este álbum. Vai acontecer muita coisa, vou ter a Carolina Deslandes como convidada. Quero que todos apareçam. Comprem o bilhete e venham porque só vendo é que se pode ter uma opinião e sentir aquilo que quero que as pessoas sintam.

Agradecimentos: Flat, o local onde se realizou a entrevista

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