Cinema feminino, isso existe? Sara David Lopes responde

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No Festival Olhares do Mediterrâneo, que desde ontem 28 de setembro e até a 1 de outubro acontece em Lisboa, a Sétima Arte apresenta-se no feminino. A fundadora e co-organizadora conta-nos tudo sobre a quarta edição deste evento.

São 52 filmes, oriundos de 17 países. Há debates, música, exposições e workshops. Na 4ª edição do festival Olhares do Mediterrâneo – Cinema no Feminino enaltecem-se os filmes oriundos da bacia mediterrânica e o papel da mulher na produção cinematográfica, promovendo o intercâmbio com os profissionais do cinema em Portugal. Fundado em 2013, este é um projeto do grupo Olhares do Mediterrâneo e do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), com o objetivo de promover a exibição de filmes realizados por mulheres, ou onde a visão da mulher esteja presente de outra forma relevante – no argumento ou montagem, por exemplo. Sara David Lopes, fundadora, co-organizadora e programadora do Festival, falou com o Delas sobre esta iniciativa que tem conquistado mais e mais público a cada edição.

Em que é que consiste o Festival Olhares do Mediterrâneo? Qual o objetivo da criação deste festival?
O Festival Olhares do Mediterrâneo foi fundado em 2013 e começou em 2014 com o formato de uma mostra. Tínhamos um contacto, um amigo francês que conhecia uma pessoa que fazia um festival de filmes de mulheres [o Films Femmes Mediterranée]. Como eu trabalho nesta área, ele teve a ideia de me perguntar se eu achava possível fazer um festival do mesmo género aqui. A ideia original era fazer uma extensão daquele festival. Não foi isso que aconteceu; criámos o nosso próprio conceito, muito a partir daquele. A primeira edição correu muito bem e entendemos que fazia sentido continuar. No segundo ano criámos uma secção competitiva, e desde então temos tentado consolidar esse formato, acrescentando secções e experimentações. Até agora o que temos experimentado tem dado tão bons resultados que repetimos sempre no ano seguinte. Temos também criado novas secções, como a “Começar a Olhar” – filmes criados em contexto escolar. Isto começou porque recebemos imensos filmes de escola, feitos por alunos, que se candidatam ao festival para serem apreciados. Sendo que eram apreciados em pé de igualdade com outros de pessoas com mais experiência, o que tornava a competição desleal, decidimos este ano criar uma secção própria para essa categoria.
Pretendemos com este festival alargar a cota das mulheres no cinema, dar-lhes um espaço privilegiado para exibir os seus filmes – também porque pensamos que o olhar das mulheres sobre o mundo, e sobre a vida em geral, de alguma maneira é diferente do olhar dos homens – e isso reflete-se na construção de um filme. E por essa diferença, tão pouco valorizada, e com tão pouco espaço para ser expressa, trazemos este festival que pretende um pouco ultrapassar isso. Não somos um festival militante feminista, de todo, embora o nome possa indicar que sim. Aliás, no início apenas tínhamos filmes realizados ou co-realizados por mulheres, também alguns produzidos por mulheres, e agora temos filmes em que as mulheres têm um input importante a dar – este ano teremos dois filmes feitos por homens: num a montagem é de uma mulher, e noutro é o argumento. E só mesmo por isso é que estes filmes foram considerados e escolhidos.

Qual tem sido a aceitação do público em relação a este festival?
Tem sido fantástica, temos aumentado o número de visitantes a cada edição, o site tem visitas diárias durante todo o ano, oriundas de países de todo o mundo. A página de Facebook tem “likes” constantes, apesar de não termos qualquer tipo de manobras para os angariar – temos cerca de 4300, e desses 4200 são seguidores – porque podemos por um “like” e não seguir! E eu fico maravilhada com o interesse do público. É esse o objetivo: que quando nos descubram queiram “ficar” connosco e que divulguem junto dos amigos.

Que temas costumam estar presentes? Este ano, quais os temas que considera mais marcantes?
Os nossos temas variam consoante as submissões. A programação é 99% feita à base dos temas que nos são propostos. Temos várias centenas de filmes, este ano cerca de 400 – entre curtas e longas – e dentro desses temos sempre conseguido destacar uma ou outra temática, seja o filme feito em Espanha, Croácia, Turquia ou Tunísia. Há dois anos tivemos muitos filmes que remontavam às raízes – com avós e tradições – e no ano passado tivemos imensos que tocavam a questão dos refugiados, tanto que criámos uma secção só para esse tema, e este ano mantemos – a secção Travessias. Nesta edição temos muitos filmes sobre incapacidades diversas – pessoas portadoras de deficiências várias. Eram tantos que tivemos de os programar também. É um tema que também toca um dos nossos objetivos principais: o da inclusão, o olhar o outro, ver que somos todos iguais, todos temos as mesmas vontades, as mesmas tristezas, todos somos seres humanos muito parecidos uns com os outros. É preciso estarmos disponíveis para abraçar essa diferença de uma forma não ameaçadora, nem constrangedora. O cinema, mais do que qualquer campanha política ou cívica, tem uma capacidade extraordinária de mobilizar as pessoas para que vejam certos temas de outra maneira. As pessoas estão descontraídas e quase sem perceber interiorizam este tipo de mensagens.

Considera que existe um olhar feminino, ou uma maneira feminina de realizar cinema?
Pela natureza da organização da nossa vida social, as mulheres estão muito mais próximas dos pormenores do quotidiano, das sensibilidades – não digo que os homens não estejam, mas acho que as mulheres, de forma geral, se sentem mais próximas. Os homens olham para as coisas de forma diferente, talvez consigam ter uma panorâmica mais abrangente, mais estratégica. As mulheres estão mais atentas aos pormenores do dia a dia, que no fundo constroem o nosso mundo. Esse olhar que elas têm sobre a vida em geral, desde a forma como decoram uma casa ao jeito de conviver com os filhos, também é transportado para a sua vida profissional ou para a vida enquanto artistas, neste caso. Quando eu conto uma história, conto-a com uma riqueza de pormenor e com um encadeamento muito diferente do que, por exemplo, quando o meu marido a conta. Ele quer que eu vá direita ao fulcro da história sem se perder no meu rol de pormenores. É o pragmatismo típico dos homens. A atenção ao pormenor está dentro da matriz feminina, e isto não é melhor nem pior – não queremos fazer nenhum juízo dentro deste assunto, apenas realçar as diferenças que existem.

Existem temáticas preferidas pelas mulheres na realização? De que forma a mesma temática pode diferir quando abordada por um homem ou por uma mulher?
No nosso caso, só tendo filmes feitos por mulheres, é difícil avaliar. Só mesmo pela nossa experiência comercial. Eu noto uma inclinação feminina clara para temas do quotidiano, sobre uma alegada verdade histórica, um regresso às origens, às tradições. Basicamente, temas ligados ao dia a dia, às fragilidades humanas. Mas não conseguimos perceber como é que os homens abordariam estas mesmas questões, dado que só temos filmes assinados por mulheres, salvo as duas exceções que já referi.

Será que há espaço no mundo do cinema e das artes para as mulheres apresentarem a sua visão?
Não. Nem nas artes nem no mundo profissional em geral. As mulheres têm, na sociedade inteira, uma cota de mercado e uma atenção e oportunidades muito diferentes das que são dadas aos homens, infelizmente, e isso embora seja uma tendência que está a inverter-se, continua a acontecer. Basta olhar para qualquer área e ver que as mulheres estão em minoria. De uma forma geral, tirando as profissões especificamente mais orientadas para mulheres (ou pelo menos as que são vistas desse modo), na área da banca, medicina, cargos de chefia, ou no governo, não há número igual de mulheres e de homens. Por que será que quando há mulheres em cargos de chefia os homens se sentem tão ameaçados? Não sei como será daqui a 50 anos – mas mesmo que haja uma tendência para a inversão desta realidade, não é por isso que as pessoas mudam a sua mentalidade. A única forma de o fazer é contactar – ir ao cinema, ver estes filmes, tendo disponibilidade para abrir a mente ao outro, qualquer que seja o sexo, religião ou cor de pele. As mulheres, pelo menos em Portugal, ainda têm uma postura submissa e de aceitação, temos muita dificuldade enquanto sociedade em reclamar os nossos direitos. Temos um longo caminho a percorrer, que começa na nossa casa, aliás, na nossa cabeça. Temos de educar os homens – e também as outras mulheres, que por vezes conseguem ser as suas maiores inimigas!

Considera que este festival, tal como o Films Femmes Mediterranée, contribui para uma maior divulgação do trabalho e da visão das mulheres no mundo das artes?
Em todo o mundo há festivais de filmes de mulheres, há uma rede enorme. Não explorei se são mais como o nosso, se mais como o de Marselha, que é claramente mais militante do que o nosso, nem sei quais são os objetivos dos outros. Mas é sem dúvida uma ajuda para as pessoas refletirem e a olharem para as coisas de outra forma. Quando vamos ao cinema, duvido que a escolha do filme assente no sexo do realizador, ou seja, que alguém vá ver um filme por ter sido realizado por um homem. Acho que escolhem pela temática, pelo horário, pela conveniência logística, pela companhia que têm… Não acredito que se excluam filmes por terem sido feitos por uma mulher. Mas as pessoas também não estão habituadas a refletir sobre isso.

Quando o filme ‘Estado de Guerra’, de Kathryn Bigelow, venceu o Óscar de melhor realizadora, sendo ela a primeira mulher a consegui-lo, e depois novamente com ‘The Hurt Locker’, ultrapassando Avatar, de James Cameron (seu ex-marido), acha que foi uma surpresa para o mundo?
A primeira vez foi uma vitória, uma chapada na cara. É incrível termos de lhe chamar “vitória”, não é? Acho extraordinário pormos as coisas nesses termos. Nem devia ser falado. Termos de falar sobre isso, escrever rios de tinta, tanto comentário, só evidencia uma realidade desfavorável e pouco abonatória. Foi uma surpresa, pelas razões mais tristes. Já o segundo, já foi mais fácil, de certa forma. Os Óscares valem o que valem, sabemos que por trás da atribuição destes prémios existe uma agenda política que nem sonhamos. Claramente não é o melhor filme que ganha, tem sempre a ver com temáticas que querem promover, movimentações de dinheiro, retorno de investimento, etc., e nos Estados Unidos esta indústria move milhões. Até a simples nomeação já é uma promoção enorme para o filme.


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No futuro, qual será o panorama para as mulheres no mundo das artes, nomeadamente no cinema? Vamos ter mais voz, mais espaço?
As artes têm muitas expressões, e os meios são muito diferentes. Mas, por exemplo, a nível de artistas plásticos temos atualmente duas ou três mulheres que podemos mencionar, mas comparado com o número de homens que são artistas plásticos, somos uma formiga. Muitas destas expressões mais artísticas são feitas por carolice pura, têm origem numa capacidade económica que lhes permite desenvolver o seu trabalho. Se temos uma situação doméstica em que a mulher, natural e infelizmente, trata sozinha dos filhos, das compras e restante gestão familiar, os homens estão muito mais libertos para investir na sua profissão ou na sua arte. Têm mais espaço para desenvolver o seu trabalho. Mais uma vez, têm mais oportunidade do que nós, mulheres. Se as mulheres quiserem fazer aguarelas, ou escultura, ou fotografia, têm de o fazer nos intervalos, ou seja, o espaço para estudar anos a fio, desenvolver contactos, viajar, é muito menor. Mas, lá está, lentamente acredito que as coisas irão caminhar noutro sentido, a não ser que esta viragem à direita que a Europa tem sentido se imponha globalmente e retire gradualmente às mulheres o papel que conquistaram nos últimos 300 ou 400 anos.

Que ambições futuras para este festival?
Temos avançado com a consistência que conseguimos, tentando consolidar as opções que temos feito à medida do possível, sendo que estamos muito para lá da nossa capacidade a nível logístico e de produção. O esforço produtivo é muitíssimo elevado, e estou contente pelo retorno que se vê depois, mas é muito difícil. Por isso a nossa ambição é manter o crescimento consolidado e sustentável, também para a equipa que temos, e tentar arranjar forma de consolidar a equipa de forma mais consistente. Fazemos tudo à base de intensa boa vontade e de uma enormérrima carolice, de maior ou menor grau, de toda a gente, e do carinho que inspiramos nas pessoas à nossa volta, que nos ajudam de forma muito espontânea – até a oferta de um simples mupi de que precisávamos, por uma gráfica que nem sequer nos conhecia, foi de uma gentileza extraordinária que me comoveu. São apoios valiosos. Tanto a nível de voluntários, como da Câmara Municipal, que tem sido muito amiga e nos ofereceu o desenvolvimento de todo o material gráfico por uma designer, parte do seu staff. A minha ambição é arranjar mais dinheiro para poder diluir o esforço de produção e criar uma equipa de produção com mais capacidade. Temos de continuar a ser um produto interessante para quererem investir em nós, apostar na divulgação e chegar a mais público.


Carmen Saraiva