Sara Prata no Conversa Delas sobre cinema e a condição humana

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A atriz Sara Prata esteve no Conversa Delas, o programa da TSF em parceria com Delas.pt, para uma conversa informal, divertida e às vezes séria. O plano inicial era falar sobre o filme de Leonel Vieira ‘Alguém como eu’, os estereótipos da comédia e o reflexo do que todos somos, pelo menos por vezes, e que está plasmado nas personagens. Mas as conversas são como as cerejas, uma puxa sempre a outra, e este encontro com a estrela da televisão portuguesa, foi isso mesmo: um sem fim de assuntos interessantes!

É verdade que saiu de casa aos 15 anos para ir estudar teatro?

É verdade. É muito verdade e cada vez que me fazem essa pergunta ou que me questionam sobre isso é bom voltar outra vez na memória a essa escolha, a essa decisão. Porque obviamente não foi uma decisão fácil. Eu costumo dizer, assim muito rapidamente, que na minha vida se há heróis são os meus pais, porque nessa altura da minha vida decidiram que ok, fazia sentido eu ir estudar teatro. E hoje só lhes tenho a dizer “Obrigada”.

Mudou-se de Setúbal para Cascais, para estudar no Teatro Experimental de Cascais e o que é que aprendeu nessa escola que ainda hoje lhe serve?

Respeito pela minha profissão, muita exigência. Não consigo ficar pela metade, não consigo só fazer uma coisinha. Era-nos exigido, pelo menos, irmos em busca, a procurar, a sabermos de onde é que vem aquela informação, aquela frase, aquela palavra. Perceber que um texto é uma obra de arte e que é através das palavras que nós temos de ir descobrindo personagens, personalidades, cenários. Então, desde sempre foi muito estimulado o meu imaginário na escola e até hoje transporto essa necessidade para o meu trabalho.

Esse trabalho que fala de construção de personagem e de pesquisa, de estudo, é um trabalho que faz de igual forma para todos os tipos de trabalho de interpretação de atriz?

É. Eu acho que já é assim um bocadinho vício. Acho que toda a informação é sempre bem-vinda, como eu costumo dizer: o ator tem que ter toda a informação, o público é que não. Nós temos de enganar o público ou levá-lo a acreditar numa emoção ou num sentimento e só consigo fazer isso se eu tiver a informação. É aquela coisa: eu vou entregar uma carta a alguém, mas se eu não sei o que é que está na carta eu não consigo, através do meu gesto e através do meu olhar, saber aquilo que estou a entregar. Portanto, eu tenho que ter esse conhecimento, como atriz. O personagem pode não o ter, mas eu tenho para o preencher. Pelo menos na minha forma de ver acho que é necessário adquirirmos esse conhecimento. Ainda ontem gravava uma cena onde falava sobre os jesuítas portugueses Gaspar de Amaral e o António Barbosa e pensei assim: “Eu tenho de ir saber”. E então lá fui saber quem é que eles eram e o que é que fizeram. E de repente pensei: “Uau! Que giro, já aprendi coisas hoje, já posso ir para casa”. Porque entretanto, tinha descoberto uma coisa tonta, isto vai parecer ridículo eu dizer aqui, mas eu vou dizer na mesma porque não tenho maldade nenhuma nas minhas coisas que é, descobri que a Cochinchina existe mesmo, no Vietname, no sul do Vietname. Eu só pensava assim: afinal nós dizíamos “Vai para a Cochinchina”, quem me dera ir para a Cochinchina que é um sítio incrível.

Portanto, isso é uma expressão que entra no vocabulário português via jesuítas?

Não, eles é que estavam na Cochinchina a pregar a igreja católica e então através da dificuldade da língua anamita, na altura a vietnamita, eles começaram a ter muita dificuldade em transmitir a igreja católica e decidiram transformar os caracteres chineses e a língua em caracteres ou letras ocidentais. Então foi o primeiro dicionário latim-vietnamita onde se transformou a língua vietnamita com caracteres. Hoje é a única língua chinesa sem caracteres chineses e com letras ocidentais devido aos jesuítas portugueses. Nós somos incríveis. Não é bom estudar as cenas? Eu acho que sim, pelo menos transmite conhecimento. Claro que a minha personagem já disse aquela frase de outra forma, ela sabe do que é que está a falar, portanto eu também tenho de saber.

A Sara Prata tem 33 anos e já tem 15 de carreira. Como é que se consegue esta regularidade no trabalho e esta capacidade de interpretar todas as personagens? Tem a ver com essa pesquisa, com essa seriedade de que falava? Quais são as características que uma atriz tem que ter para vingar?

Isso é tão vago. Acho que nos dias de hoje então é cada vez mais vago. Exigem-nos muito e nós, às vezes, sentimo-nos esmagados por essa exigência. Porque às vezes não percebemos muito bem o que é que nos exigem, se exigem que sejas profissional ou que sejas uma marca, se exigem que sejas ator ou que sejas um momento descartável. Porque hoje em dia vivemos num mundo de imagens e cada vez mais as imagens valem mais. Acho que, sem dúvida nenhuma, a imagem vale mais de mil palavras, infelizmente.

E isso incomoda-a?

Incomoda um bocadinho. As pessoas acabam por falar muito do eu interior, mas depois acabamos todas por apenas dar frames, imagens da vida uns dos outros. Quantas vezes não nos acontece expormos uma imagem, mas na realidade, por dentro, estarmos totalmente diferentes daquela imagem que projetámos para o outro. E, sem querer, nós exigimos que a sociedade vá através desses padrões e o ator acaba por ser levado um bocadinho nisso porque nós tentamos copiar, ou tentamos ser o mais próximo da realidade possível, para que haja uma identificação. Então, se nós começamos a projetar muito a imagem e aquela exigência, de repente, onde é que ficam os sentimentos, as emoções? Qual é que é a exigência que é feita? É a imagem ou a emoção? Então hoje em dia fica difícil e acho que é nessa exigência e nesse limbo que eu me divirto muito a fazer a minha profissão, porque dá-me mesmo muito gozo. Quando eu tento contrariar assim: “Não, vou estar de ânimo leve, não vou levar as coisas à séria. Isto é tudo passageiro, vamos lá. E este projeto vai correr bem”. Pronto, quando dou por mim já estou a discutir, a gritar: “Porque a personagem não sei quê e não sei que mais. É mais forte que eu”.

É uma característica do seu trabalho, discutir o caminho que quer que a personagem tenha ou a forma como ela se pode desenvolver em cada uma das cenas? E isso é uma possibilidade que os realizadores dão?

É-nos permitido dialogar, claro que sim, as coisas não são estanques. Tentamos sempre se calhar desafiar-nos um ao outro. Eu desafio com uma coisa, eles desafiam com outra e acho que é esse desafio que vai fazendo as coisas evoluir, porque a nossa ficção, falando agora só de televisão, tem evoluído bastante nos últimos anos e acho que se deve bastante a esse espírito jovem e a essa busca do procurar diferente, do fazer diferente, crescer ali um bocadinho. E é nesses desafios, por isso sim, é-me permitido. Claro que é permitido dialogarmos e crescermos juntos.

E nas novelas há a possibilidade de o ator intervir no texto, ou seja, há sempre um núcleo de pessoas que escrevem as cenas, os atores podem transformar o texto apesar de não transformarem o sentido da cena?

É assim, muitas vezes fazem-me essa pergunta, principalmente pessoas que não têm mesmo noção de como é que as coisas de passam. Há público que haja que nós decidimos chegar ali naquele dia e dizer aquelas palavras, que ninguém as escreveu. Mas não, há que ter esse respeito pelo autor, ou pelo grupo de autores que faz a novela e normalmente são muitos porque são muitos episódios exigidos, mas o que eu digo sempre é: por exemplo, eu posso dizer “agora vou às compras” e posso dizer “vou às compras, até já”. Há ali uma adaptação, mas não posso dizer “olha vou ao cinema”. Isso eu não posso mudar, agora claro que isto é um exemplo básico, mas numa frase eu posso se calhar naturalizar, tornar um bocadinho mais minha. Imagina por exemplo que eu decidi fazer uma personagem gaga, então se calhar há ali uma palavra que ajuda mais à gaguez do que a que está na escrita e há essa adaptação. Agora mais do que isso não, também temos de respeitar que há dez ou cinco pessoas atrás de mim a escreverem o texto, mas eu adoro pôr um “Ai. Ui. Estás parva?”. São as buchas, como nós costumamos dizer, as bengalas. Às vezes são demais e então têm de nos cortar, porque o ator é muito isso, de repente quer logo agarrar no texto e fazer dele um bocadinho seu. Mas pronto, depois daí de repente apetece-me voar para o mundo do teatro, que é mesmo a importância das palavras. Cada palavra tem uma importância gigante, porque o facto de estares num palco tudo aumenta. As pessoas hão de reparar quando vão ver uma peça, se o ator põe a toalha torta, aquilo tem uma importância gigante. Veres uma toalha torta no cenário. E se formos pensar então nas palavras, na emoção, no sentimento, tudo está totalmente exposto a 200, é uma lente ótica em que tudo aquilo ganha uma dimensão gigante. Daí então o cuidado com o texto, já não existe tanto a naturalidade, depende do autor, se for contemporâneo, se não, mas não importa. A palavra tem mais importância ou não é exigido o mesmo registo que na televisão.

E não há a tentação de o ator, uma vez que o trabalho principal é trabalhar com palavras, de escrever também, de fazer os seus próprios textos?

Ai não, eu não tenho tentação nenhuma. Às vezes dizem-me assim: Ah porque tu podias dar um workshop, porque tu podias escrever. Não posso nada. Eu só quero executar, não quero ter essa responsabilidade. Claro que escrevo as minhas coisas pessoas, eu escrevo todas as viagens que faço, levo sempre um caderno e escrevo pensamentos e as minhas divagações. Mas não consigo escrever um texto. Agora, claro que há outros atores que conseguem fazê-lo e fazem-no muito bem. Eu não tenho essa capacidade.

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Estreou na última quinta-feira o filme do realizador Leonel Vieira, Alguém como Eu. Que filme é este?

Olha, fico muito feliz de já estar nas salas de cinema e de começar a receber assim alguma reação do público, porque eu ao ver senti assim: “Opa, que giro. Faz sentido esta ligação do Portugal – Brasil, faz sentido a ligação das duas comédias, faz sentido este registo leve mas que ao mesmo tempo nos leva a pensar. Nem que seja por uma fração de segundos ‘pois é, nós reagimos assim, nós fazemos assado”. As coisas não precisam de ser duras, densas, para que nos levem a chegar a alguma conclusão ou a algum pensamento. E acho que este filme, de uma forma muito ligeira, nos leva mesmo a perceber determinadas coisas e leva-nos a rir de nós próprios. Acho que isso é a coisa mais interessante.

Quer contar-nos um bocadinho a história?

É uma história de amor, entre a Paolla Oliveira, personagem que é a Helena e que decide vir embora do Brasil porque tem um desgosto amoroso e então como quase todas as mulheres, decide ser independente, mudar a vida, dar uma volta de 360º e aqui digo mesmo de propósito 360 porque o que é que acontece? Ela chega a Portugal e apaixona-se. Portanto, é mesmo assim, nós quanto mais tentamos fugir, mais encontramos de frente. E então ela apaixona-se pelo personagem do Alex, que é interpretada por Ricardo Pereira e acaba por resultar muito bem. Eles têm uma empatia enorme e tudo corre bem, às mil maravilhas, até que não. E as coisas começam então a esfriar, começam a ser diferentes, a rotina e tudo mais. E há um dia, o fatídico dia. Quem não? Em que Helena pede a Deus: “Eu queria alguém como eu, que compreendesse, que fizesse as coisas como eu”. E, por uma poção mágica apareço eu. Deus faz-lhe a vontade e aparece Alex mulher, a versão feminina do Alex Ricardo Pereira e então a partir daí ela começa a ver os pedidos. Porque ela queria alguém mais sensível, alguém que a compreende-se. Ok, então Deus mandou-lhe uma mulher, porque ela queria essa mulher. Mas claro que não faz sentido, na visão dela, toda essa delicadeza, ser dada através de outra pessoa que não a Alex dela, e então é nessa confrontação que ela chega a um ponto de dizer: Eu errei, não devia ter feito este pedido, todos nós nos completamos. E pronto, acaba por desaparecer esta visão e acaba por se confrontar com a necessidade de assumir aquilo que sente.

E como é que foi a construção desta personagem? Chegou a perceber se a Alex mulher é uma alucinação, se é mesmo um milagre?

Foi muito difícil. Até porque aquilo que estávamos a conversar à bocadinho, da minha preocupação em perceber de onde é que elas vem e não sem quê, de repente chego ali e penso assim: “eu sou só uma visão”, na realidade eu não existo, eu não tenho personalidade, eu não tenho sítio, lugar. Não. Foi a primeira vez que isso me aconteceu e digo que foi mesmo muito estranho. E o Leonel passava-me indicações de que “ela tem que ser só a visão perfeita”, sempre que a câmara tocar em ti tem que ser o “prlimm” a magia, só ali, só aquela imagem. E eu “oh caramba, tudo o que é difícil para mim fazer isso”. E então depois também o rigor de ter de cumprir e fazer as cenas iguais às do Ricardo Pereira, porque nós filmávamos as cenas os dois, ora ele ora eu. Todos os gestos teriam de ser iguais, a mão que passava pelo braço, a mão que passava no cabelo, para depois na montagem ser feita então essa mistura entre o Alex mulher e o Alex homem. Então foi mais interessante em termos de pormenor, não em termos de personalidade, porque pronto, eu era só uma visão.

Há cenas verdadeiramente hilariantes neste filme. Aquilo de que o público se ri nas salas é equivalente ao que se riem os atores e a equipa de produção em rodagem?

Sim, principalmente na parte em que ainda estamos nos ensaios e que ainda brincamos com o texto. Aí a gente ri, depois já estamos a trabalhar, já não porque os nervos às vezes também são maiores do que a descontração. Mas foi muito bom, até porque tínhamos a Júlia Rabello também e José Pedro Vasconcelos. Grandes atores, mesmo. Estão muito bem no filme, eu adorei trabalhar com eles e eles são uns atores muito disponíveis, muito profissionais, então enquanto estávamos a brincar com o texto, meu deus, as propostas deles eram uma atrás da outra e acaba por se ver o à vontade que eles têm com a comédia também neste filme. Nós sempre fomos habituados a ver comédia brasileira, desde “Sai de baixo”, “Os trapalhões”, quer dizer, eu sempre cresci com comédia e hoje em dia vamos por aí a fora, “Porta dos Fundos” que ainda faz muito sentido nos dias de hoje e identificação obviamente automática a Júlia Rabello pelo trabalho dela. E de repente transpor esses dois universos para ali e perceber que faz muito sentido a língua portuguesa, faz sentido estarmos juntos, seja em qualquer comunidade de língua portuguesa. E isso foi muito engraçado, vê-los ali no registo cómico, tudo faz sentido. Dizem muito que a comédia vence pelos ritmos, pelos silêncios, onde é que tu incluis a piada e ali eu acho que deu certo, muito certo a junção dos dois mundos. E para nós foi um grande privilégio podermos trabalhar com as duas produtoras e conseguir entregar ao público este projeto final.

O Alguém como Eu é uma comédia de enganos e como todas as comédias de enganos vive de estereótipos e de mal entendidos. É possível revermos os tiques e as personalidades das mulheres, hoje, na Helena e na Alex?

Eu vou arriscar a dizer que sim. E digo que vou arriscar porque no início eu pensei assim: “Hmm, esta critica à mulher pode ser não muito abonatória, não sei se concordo muito com ela, não sei se fico muito confortável. Isto é uma critica assim um bocadinho… Bem nós não somos só isto, não é?” E obviamente que nós não somos só aquilo, não é disso que estamos a falar, estamos a falar de um pormenor das mulheres e nenhuma, mas nenhuma consegue dizer “Não, eu não sou assim. A mulher é mais do que isso”. Claro que a mulher é mais do que aquilo, mas perante aquele estereótipo, perante aquele momento claro que sim, claro que eu tenho a certeza que nós mulheres temos aqueles momentos de Helena e de Alex mulher, sim, claro.

Como é que conseguiu esta personagem?

Fui convidada e depois fui a casting. E estivemos a falar porque era exigido ou era necessário haver aqui uma mancha de parecenças entre a atriz e o Ricardo Pereira. Como os olhos verdes, e ainda tive que os colocar mais verdes do que são, mas haver uma certa fisionomia que liga-se, que na tela houvesse ali uma ligação e depois pronto, que houvesse ali algum sentido para conseguir representar sem grandes palavras.

Esta produção é luso-brasileira, tem capital investido do lado de cá e do lado de lá do Atlântico e vai ser distribuído também no circuito comercial do Brasil. Que reação é que espera do público brasileiro?

Ai, eu fico muito curiosa quase ou tanto como com o nosso público, porque às tantas não é que me apeteça responsabilizar, não é isso, mas se calhar fazer um alerta que é: nós só conseguimos produzir se as pessoas continuarem a ver. Para nós é muito importante que o público vá às salas de cinema, porque só assim é que se consegue produzir o próximo e o próximo e o próximo. Nem que seja na critica, nem que seja no hábito, o habito de ver cinema português. O Brasil tem muito isso, já é uma coisa inserida na sociedade. O cinema brasileiro tem muita gente a ver, sempre, constantemente e o que é que acontece? Produz constantemente. Obviamente, eu não quero que o nosso filme seja mais um no Brasil, quero que o público vá ver e que se identifique e que ria e que goste. E que dê uma critica positiva. Mas para mim é muito emocionante ver um projeto que também o fizemos cá ir até ao grande, para mim, monstro do cinema atual. Eu adoro cinema brasileiro e vai ser uma grande emoção o dia da estreia no Brasil.

Já há data?

Ainda não há data, pelo menos eu ainda não sei. A produção obviamente já estará a tratar desses pormenores, mas acho que é isso. Vamos estar à altura dos brasileiros e vamos todos ao cinema ver cá em Portugal, porque também é nosso. É deles e é nosso e é bom essa parceria. Por isso eu quero muito que chegue o dia de estrear no Brasil, quero muito saber o que é que o público acha destas piadas tugo-brasileiras, mas eu acho que vai ser muito bom. Até lá, o público português toca a ir ver todo que é para depois também terem uma opinião concreta.

Sabendo que este filme ia ser distribuído nos dois países, houve algum condicionamento de língua ou de linguagem, enfim, ouvimos sempre todos os brasileiros não entendem os portugueses, que há filme ou partes de filmes que passam lá que têm de ser legendados?

Houve, claro. Eu acho que tínhamos de ser conscientes a essa dificuldade. É só ter consciência. Mesmo nós a falarmos, ao termos consciência, temos logo aquela pausa ligeira em que já é suficiente. Não há que alterar grandes textos nem fazer grandes pausas para eles entenderem, quer dizer, também não faz sentido. Eles entendem como é óbvio. E há a preocupação do “tu”, do “você”, se fazia sentido. E depois é engraçado porque eu acabei de ver o filme e pensei assim: “Ah, poça, eu não percebo é os brasileiros. E agora?” Porque eles vão ai, vai que vai na saia justa, e na na na, vai que vai e aí eu não entendo nada. Mas está tudo certo, é só assim uma expressão ou outra que eu acho um máximo eles terem esse dicionário tão rico em expressões populares e é muito engraçado, porque às vezes eu assim: “Ah, vêm que não somos só nós que dizemos coisas esquisitas. Como leite”. É uma brincadeira nossa. Leite que é “leitji” (como se pronuncia), então não dá para eles dizerem “leite”. Divertimo-nos muito com esta coisa da linguagem, é tudo igual, é só um som diferente.

Esta distribuição no Brasil pode abrir as portas à Sara para ir trabalhar para o Brasil? Há essa intenção também?

Não, a intenção não digo que há. Obviamente que é um mercado que está cada vez mais ligado, é um mercado que eu adoro. Eu às vezes na brincadeira digo que adorava estar lá, nem que fosse atrás das câmaras só para ver a forma de trabalhar, a forma de funcionar tem de ser diferente. Porque eu adoro, adoro realização, um dia ainda me vou dedicar à realização. Adoro, adoro as cenas e onde é que está a câmara, e onde é que acontece, e onde é que vai o foco, e o que é que mostra e o que é que não mostra. O realizador é incrível, o ator pode estar lá a chorar, a berrar, o que for, se o realizador não vai lá picar, o público não vê. Então eu acho que é esse encanto da forma de gravar, da forma de filmar, e isso fascina-me muito no Brasil. Agora não foi com essa intenção que eu fiz o filme, como é obvio, porque tenho um respeito enorme pela minha carreira e pelo meu trabalho que tenho no meu país. Muitas vezes fazem essa pergunta: Não tens o sonho de ir para a América? Não tens o sonho de ir para o Brasil? E eu digo, eu sonhar se calhar até sonho, mas de certa forma sinto-me a não respeitar aquilo que eu tenho conseguido no meu país e como prezo tanto e como é tão especial para mim e como estou tão feliz naquilo que trabalho, acho que cada projeto é o seu projeto. Se um dia surgir, claro, porque não? Vai ser estimulante de certeza absoluta, vai-me fazer evoluir de certeza absoluta, mas com aquilo que eu tenho aqui eu estou muito bem, porque sinto-me mesmo muito preenchida e rica com os projetos que tenho tido a sorte de fazer no meu país e isso é uma sorte gigante.

‘Alguém Com Eu’, a comédia que põe as mulheres “a pensar na vida”

Mas a Sara Prata chegou a estudar nos Estados Unidos, foi para LA, Los Angeles. Era porque o curso era extraordinário ou porque queria ir para os Estados Unidos para estudar? O que é que a levou lá?

Não, foi um bocadinho aquilo que falei no início. Para mim o conhecimento é muito importante, eu fui para os Estados Unidos como já fiz n workshops e trabalhos cá em Portugal, sempre que vem algum nome que eu gosto de trabalhar, que acho necessário trabalhar e conhecer, obviamente que faço. Um ator tem de se munir de ferramentas, é o meu entender, porque senão depois nós não conseguimos ir a certas coisas e voltar. Então quantas mais ferramentas eu tiver porreiro. Posso não usá-las todas, mas pelo menos elas estão comigo, pelo menos experimentei. Porque a trabalhar é sempre: ação, corta, está feito. Ou então preparamos uma peça e depois acabou e fechamos. E então quando há estes trabalhos pelo menos eu experimento. Deixem-me ser uma coisa qualquer sem contar, sem valer, sem ser a sério. Experimentar, experimentar, experimentar. E é por isso que eu vou atrás dos estudos e por isso é que decidi também ir aos Estados Unidos, porque queria ver uma coisa totalmente diferente. Queria estar noutras ruas, queria apanhar outro registo, outra aprendizagem e adquiri. Assim como depois outros americanos vieram cá, brasileiros, espanhóis e eu vou tentando formar um bocadinho de tudo. Experimentar várias técnicas, porque a representação tem varias técnicas. Às vezes nós é que, no dia a dia, nos esquecemos que até há estudos para se fazer a esta profissão e que até há assim umas coisas que nós podemos experimentar.

Ouvi uma certa indireta? Muito direta?

Não, zero de indireta. Um bocadinho direta.

Isso quer dizer o quê? Que há muita gente a tentar ser ator ou atriz sem perceber que é preciso estudar primeiro?

Sim, claro que sim. Eu acho que mais tarde ou mais cedo há uns que percebem essa falta de experimentar. Lá está, nós não podemos estar sempre a fazer a valer e a achar que não precisamos de experimentar ou de aprender. Em todas as profissões há um período de adaptação, um período de aprendizagem e esta também tem. E acho que só a partir do momento em que os atores se mentalizarem disso e se consciencializarem que é preciso ferramentas, que é preciso bases, que é preciso estudos, que é preciso conhecimentos, só assim é que vão levar respeito a esta profissão que muita gente, apesar de pensar que já é muito respeitada, não o é. E cada vez mais é mais difusa. Tudo é valido para ser ator e às vezes é uma coisa que dá muita trabalho que é estudar. Dá muito trabalho.

Portanto, ser ator é mais trabalho do que talento?

É tanto trabalho como talento. Podes muito trabalhar, se não tiveres talento obviamente também não vais lá, não vais estar a marrar, a marrar “agora já sou ator”. Não é isso. O ator ator é feito de talento, de trabalho, de emoção, de verdade, de tanta coisa. Mas também é feito de trabalho.

Vai estar em Macau agora durante dez dias para gravar a nova novela da TVI de que é protagonista. Como é que se consegue o trabalho de protagonista e o que é que isso implica?

Essa pergunta eu não sei, essa pergunta eu tenho de perguntar aos meus diretores, o que é que se faz para ser ou o que é que é necessário. Eu não penso nisso, não penso em rótulos, nunca pensei. Muitas vezes me perguntavam: “Não queres um dia ser protagonista? Não queres fazer…”, eu dizia que não importa os targets, não importa a lista, importa as personagens e para mim o que é mesmo mais importante é que a TVI, ao longo destes anos todos em que trabalhamos juntos, tenha vindo sempre a desafiar-me com projetos mais giros, com personagens mais interessantes e esta é mais uma das que me desafia brutalmente, pela responsabilidade e pela personagem mesmo em si. É uma mulher fantástica, aliás esta novela tem mulheres incríveis, tem personagens femininas muito fortes e isso também transmite um bocadinho os nossos dias de hoje. É uma novela bastante atual, é um bocadinho também com padrões clássicos, o eterno Romeu e Julieta será para sempre a base de todas as histórias de amor e esta é mais uma. Ou aqui também um bocadinho de “será que é tarde demais para voltar a amar?” e é uma personagem que me desafia totalmente porque ela é mesmo humana, é uma mulher terrestre, é uma mulher com força que só está a viver e só a câmara vai passando e vai gravando ali uns momentos dessa mulher. Por isso eu só tenho a agradecer, não o papel em si, mas a personagem em si. É sempre bom sermos desafiados pouquinho a pouquinho, projeto, a projeto.

Mas é um papel um papel que dá mais trabalho?

Exige mais horas, porque todas as personagens dão muito trabalho. Eu penso por exemplo que na Única Mulher, que foi o último projeto que eu tinha feito na TVI, a Daniela, ui, exigia muito de mim. Eu passava os dias a chorar, a gritar, eram muitas horas, as cenas eram muito intensas. É outra camada, é outro registo. Às vezes uma pessoa chega ao parque de estacionamento e para ali cinco minutos e diz “acabou. Eu não estou triste, eu não estou a chorar. Eu estou feliz”.

É difícil separar uma interpretação de um dia inteiro?

Ai às vezes é. Às vezes temos de ir dar uma corrida, às vezes precisamos de ir jantar fora com os amigos, porque o nosso cérebro regista como passámos o dia a chorar, coitado. Às tantas temos que só passar a informação. Daí as ferramentas serem tão importantes, a gente saber ir lá e saber sair.

Esta telenovela que vai gravar, vai para o ar quando?

Ainda não temos data de estreia.

Mas já têm título, chama-se Condição Humana.

Mas agora ainda é o título de trabalho, pode vir a mudar. Mas eu gosto muito deste título, não devia mudar porque a novela passa mesmo isso. A mensagem é essa, é a condição humana, pensarmos que os nossos atos têm consequências.

Pode contar-nos mais detalhes do enredo?

É um bocadinho os desencontros pela nossa teimosia, pela nossa personalidade, aquilo que perdemos em busca de querermos ser teimosos e não abdicar, as coisas que os outros nos fazem fazer porque eles não estão resolvidos, porque eles não estão bem. É a ligação entre o oriente e o ocidente, ligação que através de Macau, onde Portugal também teve uma presença muito especial, e é um bocadinho dessas duas realidades. Onde é que elas se tocam e onde é que elas de facto são mesmo muito díspares. E é um bocadinho assim em quase todas as relações na novela, onde é que elas são próximas e onde é que elas são distantes, seja relações amorosas, familiares, profissionais. É mesmo ali a condição humana, às vezes é mais forte do que nós as nossas bases.

A condição humana é um tema que a preocupa. Escreveu há pouco tempo a propósito dos atentados de Berlim que o medo faz parte desta nossa nova sociedade. É uma questão que de facto a preocupa?

É, é mesmo uma questão que me preocupa, porque assim rapidamente na minha cabeça vem uma coisa que é: nós, da minha geração crescemos a ouvir a história das guerras, a ler, a termos de decorar datas das guerras e entretanto nós vivemos numa guerra mundial. Porque esse medo de que eu falava é mundial, é mais forte do que nós. Nós às vezes tentamos dizer que não é nada, eles não vão ganhar, isso é pressão, é um estado de guerra, não vou assumir, não vou aceitar. Entretanto acontece qualquer coisa e o nosso pensamento já vai para lá. Isto era tão diferente há tão pouco tempo. Nós ainda fazemos quase todos parte de um momento mundial em que nada destas questões eram levantadas, em que não eram mais fortes do que nós. Não dá para contornar, é uma realidade e a mim assusta-me muito perceber que nós estamos a crescer, que estamos a ser moldados nesta nova sociedade e tudo por base do quê? O que é que fica? Expliquem isto de uma vez por todas, é o dinheiro? É a maldade? É a ganância? É o poder? É o quê? Porque nos andamos aqui com medo, dizem-nos para não ter medo, mas aqueles que nos dizem para não ter medo também nos estão a colocar medo, porque também nos sentidos manipulados por isso. Não ter medo como se caem bombas? Se matam famílias? Como não ter medo? Portanto, às tantas sinto-me um bocadinho esmagada por esta nova sociedade, porque a vida anda e nós continuamos a ensinar que a base maior do mundo é amar e é isso que temos que transmitir uns aos outros, que o amor é mesmo de facto muito importante. Mas fica complicado na sociedade de hoje em dia. Esta condição humana é muito desumana.

Está otimista ou pessimista em relação a estes problemas?

Eu tenho momentos, tenho momentos em que acho que estamos muito perto do caos e quando há um caos há um renascimento e que esse renascimento vai ser mais forte que tudo isto, que nós vamos dizer todos juntos que já chega, vamos tentar entender qual é que é a base para a poder mudar e que essa mudança está para breve. Mas ao mesmo tempo que tenho este pensamento, penso que não vai ficar por aqui, porque está a ficar cada vez mais grave, cada vez com uns poderes gigantes mas mesquinhos, nós não conseguimos perceber como é que são lançados mísseis sem perceberem as consequências. Caramba, hoje para mim já é muito difícil achar que há um líder que não sabe, não tem consciência dessas consequências. Tem e cumpre na mesma forma assim, então caramba acho que nós estamos longe do fim. Acho que para o fim ainda falta um bocadinho mais e que vai ser um bocadinho mais esmagador, mas depois pronto, penso “Não, não vai. Não vai. Já chega, isto vai mudar, eu sei que isto vai mudar.”