“Se queremos quebrar rotinas, só podemos recorrer à lei”

Profissional na banca de investimento, há 11 anos Monika Schultz-Strelow decidiu trazer a sua experiência e o seu conhecimento do terreno para lutar pelas mulheres nos cargos de liderança das empresas, no setor público, nas universidades e na ciência alemãs. Para isso criou a FidAR, associação que – para lá da tomada de consciência – quer convocar homens e mulheres para a igualdade no trabalho.

Agora, em visita a Portugal a convite da estação pública RTP e da Professional Women’s Network, a gestora, mas também elemento do European Women’s Lobby lembrou a importância do sexo masculino nesta conquista de lugar para ambos, mas também as fragilidades, os preconceitos, a “culpa” – e até a falta de solidariedade – que as mulheres já demonstraram ter. Mas que também já foi pior.

E numa altura em que a igualdade salarial entre géneros é discutida em Portugal – com o governo a inspirar-se num documento legislativo alemão para o transpor para Portugal e para ser discutido em concertação social – Schultz-Strelow lembra as debilidades dessa lei: ignora as cláusulas de confidencialidade dos salários, não contempla a questão cultural de não se querer falar do quanto cada um ganha e – tal como a proposta do ministro Eduardo Cabrita – exclui uma das maiores percentagens de empresas do país: as pequenas.

 

Costuma dizer que para defender as causas das mulheres, é preciso contar com os homens. Porquê e em que circunstâncias?

Porque nós integramos uma sociedade em que os homens ocupam as posições de decisão nos negócios. E se as mulheres quiserem desempenhar um determinado papel, têm de o fazer com eles. Tentámos fazê-lo contra eles, mas não resultou, despendemos imensa energia. A médio e longo prazo, na Alemanha, precisamos de homens com ações positivas e que nos apoiem e que vejam a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres como parte da solução para as empresas.

E eles estão verdadeiramente disponíveis para isso?

Há muito poucos que, realmente, estão de mente aberta para esta realidade. Conheci nos últimos meses alguns homens pró-quota, o que não acontecia há alguns anos. Perguntei a um deles – que ocupa uma posição importante num instituto científico – como idealizava a questão das quotas como homem. Ele tomou o seu tempo para pensar e depois disse: procuro trabalhar essa matéria a um nível objetivo‘. Isso é ótimo porque as quotas estão sempre a um nível emocional quer para as mulheres, quer para os homens.

Mas porquê? É sobre a competição entre os sexos?

Não. As quotas significam para muita gente a existência de mulheres com altas qualificações, mas que nunca atingiram posições de liderança em circunstâncias normais de competição. Vejo que há muito boas mulheres – vejo na Alemanha, mas também Portugal – que poderiam manter e ir mais longe na competitividade tal como homens, mas mais das vezes não têm possibilidade para chegar a esses lugares.

Isso é parte do nosso trabalho que passa por, juntando homens de mente aberta e mulheres, criar o caminho para que elas possam tentar aceder às posições. Se depois ficam, ou não com os lugares, isso é outra decisão.

Mas enquanto as mulheres nem sequer conseguem chegar a esse nível, em que encontram homens que apenas escolhem pessoas com características semelhantes, tal pode ser difícil e frustrante para as mulheres que têm altos níveis de qualificação, grandes percursos profissionais e, subitamente, veem que os homens são muito mais rápidos a chegar que elas.

Monika Schultz-Strelow fundou a associação alemã FidAR – Mulheres nos quadros das empresas e integra o European Women’s Lobby (Orlando Almeida / Global Imagens)

 

Como se pode quebrar, como muitas vezes se diz, o “teto de vidro”, ou como furar, seguindo expressões de mulheres, o “clube de cavalheiros”?

Em 2008, tivemos um encontro com 50 mulheres e pedi-lhes para descrever a sua posição laboral nos seus trabalhos em três frases. Algumas escreveram que estavam há cinco anos na mesma categoria e não percebiam por que razão continuavam na mesma posição, e subitamente as mulheres tornaram claro que todas tinham o mesmo sentimento e que não estavam a conseguir furar esse teto de vidro e ultrapassar essa barreira.

Mas também perceberam que nunca tinham falado disso antes e que, cada uma, olhava para isso como culpa sua. Elas não estavam treinadas, mas também não se sentiam autorizadas a falar sobre isso.

Portanto, era um preconceito das mulheres.

Parte era um problema das mulheres. Levou-nos a perguntar como poderíamos quebrar esse teto de vidro e como poderíamos melhorar. E só poderíamos quebrá-lo com recurso à lei. Foi um dos resultados dessa discussão, nos primeiros anos de arranque da FidAR, em 2006. Decidimos que iríamos confiar nos homens, apresentar bons argumentos, e houve muitos documentos com boas práticas, mas, a longo prazo, os homens acabavam por ter o seu clube de cavalheiros, que se mantém unido por razões diversas: reputação, poder, dinheiro e rede. E querem segurá-los, querem continuar parceiros a homens semelhantes a eles.

E as mulheres, uma vez lá, elas também criarão esses grupos?

Acho que as mulheres não são tão boas em networking (rede) como os homens. Quando lhes perguntamos em quantas redes estão, elas estão sobretudo inseridas em pequenas redes e vemos que os homens estão em redes de dar e receber muito coesas e consequentes. As mulheres não estão habituadas isso. Ainda que exista esta ideia da caridade, as mulheres não gostam de falar de redes e de negócio e muitas das que querem olhar para as redes, procuram-nas e perguntam como as podem rentabilizar ao máximo e tomá-las para si.

Mas o equilíbrio entre dar e receber é um campo de treino para as mulheres e é por isso que muitas vezes penso e falo que as elas deveriam trazer mais para este trilho.

Na Alemanha, no passado, quando as mulheres chegavam a uma determinada posição e viam outras a querer integrar as estruturas, perguntavam-se: “Se foi tão difícil para mim chegar aqui, porquê facilitar a outras”. Mas, felizmente, isso está a mudar, muitas mulheres passaram a aceitar e viram a necessidade de apoiar e trazer mais para outros níveis, mas que não estejam a um mesmo nível de competição.

Monika Schultz-Strelow (Orlando Almeida / Global Imagens)

Tem trabalhado com a União Europeia nesta matéria. Que tipo de dificuldades tem sentido neste campo das mulheres e dos cargos de topo?

Estamos muito felizes que a União Europeia, a determinada altura, tenha também criado diretivas no sentido das quotas. Na Alemanha, não nesta legislatura, mas na anterior – entre 2009 e 2013 -, não tivemos verdadeira discussão em torno das quotas e olhámos para Bruxelas, tivemos a esperança, e ficamos muito orgulhosos por contar com a comissária europeia da Justiça, Viviane Redding, ela era pró-quota. Mas, ao nível europeu, este tópico estava bastante morto na altura.

Porquê?

Porque os países que deviam puxar o tópico já não estavam a fazê-lo da mesma forma. Olhamos, então, para alguns territórios que ainda estavam a trabalhar nas quotas: um dos últimos a mudar foi a Áustria. Eles anunciaram, em fevereiro, um novo programa de trabalho do governo em que promovem as quotas em empresas privadas que tenham pelo menos mil trabalhadores, para 2018. Um programa muito semelhante ao alemão.


Conheça o modelo alemão


Porque é que a questão abrandou?

Nos últimos três a quatro anos, temos assistido a uma forte viragem de políticas à direita por parte dos países, o que é andar bastante para trás na forma de pensar sobre as mulheres. Temos muitos homens de negócios e também políticos – e isso também se verifica na Alemanha – que estão de alguma forma cansados das quotas, porque não veem a necessidade de mudança. Uma questão é que se queremos quebrar rotinas, então só podemos recorrer à lei. A questão do tabaco acaba por ser um bom exemplo comparativo. Fumar em restaurantes na Alemanha? Já não é possível. Conduzir sem cinto de segurança? Nem pensar! Mas isto hoje acontece apenas porque temos leis para isso. Os alemães gostam de ter leis, que as seguem mais ou menos, mas precisam delas. É muito impressionante o que a nossa chanceler [Angela] Merkel no Women20 Summit, em Berlim, há algumas semanas, explicou acerca das quotas. Porque tivemos de ir porta a porta, empresa a empresa e pedir para fazerem alguma coisa, mas não fizeram. Portanto, agora a única solução – merecida – era fazer uma lei, e mereciam-no porque não fizeram nada de livre vontade.

Há a questão das quotas, mas há depois a matéria da igualdade salarial. A Alemanha aprovou, em março, um diploma no sentido de promover esse equilíbrio entre homens e mulheres. Um modelo que, em larga medida, o governo português apresentou como proposta em maio, em sede de concertação social, mas numa versão, para já, mais tímida. Tendo em conta a sua experiência, como antecipa a aplicação desta lei na Alemanha? Vai ser cumprida.

Para a FidAR, olhamos para a questão do trabalho igual, salário igual sobretudo nas posições de liderança. E há diferenças e de montante avultados.

De quanto? Tem números?

Há a ideia geral de que as mulheres recebem 20% a menos que os homens em iguais funções, na mesma categoria e isso é bastante impressionante.

No serviço público dizem que não há diferença, mas ela existe no momento em que alguém presta provas. Os governos, as administrações têm maneiras diferentes de olhar, de ver o tempo que cada género leva a chegar a cargos semelhantes, o que é um grande problema. Nas companhias privadas, há frequentemente uma regra não falada e que passa por não discutir os salários com os outros.

Numa das empresas onde trabalhei no passado, o meu contrato tinha uma cláusula que me proibia de falar do meu ordenado. E é muito difícil para muita gente discutir de forma simples e clara esta matéria. Por isso, é preciso pensar: não posso perguntar qual o salário, mas depois preciso de o comparar com o que outras cinco pessoas auferem na mesma posição que eu… Toda a gente diz que esta lei é muito importante, mas temo que seja menos eficaz para as empresas do que o que parece.

Portanto, a lei até é boa, mas não vai funcionar enquanto não se mexer nas matérias contratuais e na questão cultural. Portanto, isto é nada.

Bom, não. Parece simples, percebo que possa ser um título, mas é mais o sentimento, a discussão de como o mundo do trabalho funciona e quão aberto se está para que a discussão passe a um outro nível e quão disponível se está para discutir o salário abertamente.

Isto é um belo progresso, mas nem as empresas, nem os trabalhadores estarão confortáveis e preparados para isso.

É um belo passo. Eles podem estar preparados, mas talvez não estejam confortáveis devido à questão da transparência. E isso só existe em empresas a partir de determinado tamanho, que têm obrigações por via de estarem no mercado de valores, as que têm mais 200 pessoas. As mais pequenas…

A vossa lei não se aplica às mais pequenas [tal como em Portugal], só a empresas com 200 trabalhadores e mais…

Mas as pequenas, são as que existem em maior número no país.

Portanto, as mulheres que tinham problemas com os baixos rendimentos e com a desigualdade face aos homens vão continuar a tê-los.

Creio que se se está nessa posição frágil, mesmo que se seja muito forte e a heroína da semana, ela precisa de energia, mas é preciso responder ao trabalho, à família, tem de sobreviver… quem lhe vai dizer para travar mais esta luta? Mas da próxima vez, quando tivermos a oportunidade..

Como os homens olharão para as mulheres que queiram vir a terreiro dizer, sim mas eu quero falar do meu salário, quero comparações.

Não podemos fazer isso da maneira pessoal. Só pode ser visto como um grupo de pessoas – pelo menos cinco – que desempenhem as mesmas funções, ou seja, falar de médias à geral. Mas de outra forma, e isso acho que é um treino para mulheres, elas têm de, nessa posição muitas vezes não tem a possibilidade, de compreender o que é pior. Se as mulheres ganham menos 20% do que homens e se nem sequer tem ego e se sentem confiantes para argumentar ou debater os salários, então isso tem de mudar.

Monika Schultz-Strelow (Orlando Almeida / Global Imagens)

Este tipo de lei pela igualdade salarial de género pode produzir o efeito contrário? Ou seja, companhias a não contratarem tantas mulheres ou não subir os salários, mas de alguma forma fazer baixar os dos homens?

Esse é um dos problemas. Há profissões, sobretudo femininas, em que o salário médio está a descer. Temos muitas raparigas que estão em medicina e estão a receber menos. Na Alemanha, pergunta-se porque é que as mulheres com profissões superiores ganham menos do que as que fazem limpezas? Isto é uma das muitas discussões do trabalho igual. Temos muitas profissões que estão a ser mais mal pagas, sobretudo nas que estão no campo do serviço humano. Creio que esta será segunda parte da discussão, aumentar os salários nesta área. A questão é que estes trabalhos acabam por ser mais atrativos para homens.

Nesta fase, quais são os principais objetivos do FidAR ?

Para os próximos dois anos, gostávamos de conseguir convencer os políticos, mulheres e homens para que olhem para o tópico da igualdade de oportunidades e igualdade de funções no mundo empresarial possam voltar a sentir que ele é sexy.

Muita gente está de alguma forma cansada destas questões, consideram que já fizeram bastante em matéria de puxar pelas mulheres em determinadas funções.

E fizeram alguns esforços, mas o que esperamos, e é o nosso passo, é que a mudança cultural nas empresas tenha realmente lugar. Enquanto essa mudança não acontecer, até podemos aumentar os números, mas não moldamos a empresa para o que é importante: para atrair jovens mulheres e homens. E é ai que está o maior futuro. O nosso segundo alvo é que as mulheres que estejam nas posições de topo – não só como elementos da FidAR, mas com todas as associações de mulheres e com o apoio da legislação – assumam funções que sejam modelo, que sejam exemplares porque as mais novas querem ver as mais velhas e pensar: também consigo chegar lá, também quero atingir este patamar. Se conseguirmos convocar homens e mulheres, será uma tarefa grandiosa .

Como funciona a FidAR? As associadas estão, de alguma forma, mais próximas do mundo empresarial?

A FidAR trabalha como um grupo de pressão política. Segundo, temos escritórios regionais que trabalham em rede com formações, participamos em ações de mentoring. O que nós não fazemos, mas pedimos com alguma frequência, é no sentido de os membros trazerem mais mulheres para as suas estruturas de topo. Mas pedimos, claro, a empresas de headhunters [caçadores de talentos] que estejam o mais possível atentas à diversidade. Recomendamos no sentido de reunir homens e mulheres no mundo empresarial, na ciência, na administração, na cultura e todos têm o mesmo desejo: levar esta matéria para o próximo nível. Queremos juntar os homens e as mulheres a falar do que não falava antes. A verdade é que todos, neste capítulo, têm os mesmos problemas – por exemplo, creio que esta questão das mulheres nos cargos de liderança se nota também na área dos media -, mas cada qual discute-os no seu pequeno círculo setorial. É preciso juntar todos, perceber que a questão é transversal. Se todos estivermos juntos, será mais fácil.

Imagem de destaque: Orlando Almeida/Global Imagem