“Há seis anos não conseguíamos ter oradoras no Talkfest”

Entrevista a Marta Azevedo
Lisboa, 24/02/2017 - Entrevista com Marta Azevedo, que é a vice-presidente da Aporfest (Associação Portuguesa de Festivais de Música). (Carlos Manuel Martins/Global Imagens)

Marta Azevedo é a responsável de comunicação do Talkfest, um ciclo de conferências internacional sobre festivais de música, que se realiza há seis anos em Portugal e que decorre nos próximos dias 9 e 10 de março, no Museu das Comunicações, em Lisboa. Da edição de 2014 do evento nasceu a primeira Associação Portuguesa de Festivais de Música (Aporfest), da qual Marta Azevedo é fundadora e vice-presidente. Da sua experiência com o setor, diz, em entrevista ao Delas.pt, que as mulheres começam agora a ganhar terreno e destaque no indústria musical, um meio ainda marcado pelo machismo, e dá como exemplo a edição deste ano do Talkfest, que tem a maior representação feminina de todas: 30, num total de 90 oradores e moderadores. A palavra de ordem é “conquistar”, sobretudo quando 74% dos frequentadores dos festivais de música em Portugal são mulheres (segundo dados de 2015 sobre o perfil do festivaleiro, divulgados pela Aporfest ). Um número que explica também que um dos temas em destaque no Talkfest de 2017 seja a violência sexual no contexto dos festivais.

Estamos a poucos dias de mais uma edição do Talkfest. Quais são os destaques do programa?
Esta é já a sexta edição do Talkfest e vamos ter mais de 90 participantes, especialistas, a falar sobre o mundo dos festivais. E há muitas coisas interessantes este ano. Algumas das temáticas mais relevantes para os tempos, por exemplo, ‘Terrorismo e Violência Sexual’.Vamos ter a presença do presidente do Observatório de Segurança e Criminalidade a falar sobre este tema e outros oradores que falarão sobre o contexto dos festivais. Felizmente em Portugal, não temos tido casos de terrorismo e de violência sexual também não temos muitos, mas é uma coisa que pode vir a acontecer e é importante saber de que forma é que os organizadores dos festivais estão preparados para este tipo de situações.

Em julho, num artigo sobre violência sexual nos festivais de música, a Aporfest disse ao Delas.pt que falar sobre esse tema era ainda tabu em Portugal. Que expectativas têm para esta discussão agora no Talkfest?
A nossa expectativa é que haja, de facto, planos de prevenção, que os organizadores de festivais estejam a pensar nisso, porque os casos podem ser poucos, felizmente são, mas podem acontecer e é preciso saber como é que os organizadores se estão a preparar para lidar com esse tipo de situações: a nível de segurança, cuidados médicos, de polícia e de como é que todo esse processo se irá realizar. Nós vamos falar disto. Nunca foi falado e daí também destacar esta temática, que acho que vai ser muito interessante para perceber em que ponto é que estamos atualmente em relação a este tema. Estamos preparados ou não?

Quantos oradores nacionais e internacionais vão estar presentes este ano e qual o peso feminino no evento?
Vamos ter pela primeira vez o maior número de mulheres a participar numa edição do Talkfest. Há seis anos não conseguíamos ter oradoras no Talkfest. Este ano estamos mais ou menos com 30, em 90 participantes. Ainda é pouco, mas já se nota aqui a mutação que está a haver na indústria da música de mulheres com cargos importantes no setor.

E isso deve-se só ao facto de haver mais mulheres no meio e nesses cargos ou elas também estão mais disponíveis para dar a cara nestes eventos?
Há mais mulheres. Dantes era muito complicado termos mulheres que ocupassem de facto posições importantes e relevantes na indústria da música. E nós em seis edições conseguimos mostrar que as coisas estão a mudar. Inicialmente contactávamos mais jornalistas e para serem moderadoras, sobretudo, mas na indústria era mais complicado. Agora sim começam a aparecer.

Apesar do maior festival de música, em Portugal, ser liderado por uma mulher, que é a Roberta Medina.
Exatamente, mas tirando esse caso excecional de uma presença feminina bastante relevante, as mulheres começam agora, e bem, a ocupar cargos importantes. E isso para mim é fantástico. E ter tantas mulheres no Talkfest também é muito bom.

E que áreas concretas da indústria é que as mulheres estão a representar neste Talkfest?
Muitas da área da comunicação, agenciamento e produção.

Qual é o balanço que a Aporfest faz destes seis anos de Talkfest?
Tem sido uma luta muito grande. Há seis anos não se falava de festivais em Portugal, não se falava da música em Portugal e tem sido uma luta muito grande para que este evento se torne sustentável e possa ser uma referência na indústria. Temos tido muita resiliência e teimosia, mas temos conseguido manter o evento. Por volta da quarta edição, não sabíamos se iríamos continuar se não, porque era muito complicado sustentar este evento devido a uma série de dificuldades: crise, falta de apoios, patrocínios. Mas conseguimos realizar outro projeto que era concretizar a Aporfest e que nos dá outra força para fazer o Talkfest e para continuar com este projeto, tornando-o cada vez melhor.

Paralelamente ao Talkfest realiza-se, pela segunda vez, os Iberian Festival Awards. É menos tempo, mas ainda assim que análise fazem desta iniciativa?
Foi muito bom termos inserido este evento também um bocadinho em parceria com os Festival Awards do Reino Unido. E foi muito bom porquê? Porque apesar de termos imensos festivais – 249 o ano passado, em Portugal – temos uma indústria que é relativamente pequena e que está agora a começar a profissionalizar-se e a ser cada vez mais sustentável. É interessante irmos aqui para Espanha e ver como as coisas são diferentes lá e como a forma como trabalham lá é interessante perceber, apenas como uma edição, que se podem criar muitas sinergias entre os dois países e que temos muitas coisas a aprender com Espanha e que os espanhóis também têm alguma coisa a aprender com Portugal.

O quê, por exemplo?
As indústrias são diferentes. Lá há mais corporativismo, há mais profissionalismo, talvez por ser uma indústria maior.

Tem alguns dos maiores festivais da Europa também.
Sim, o Benicàssim, o Primavera Sound, o Bilbau, o Sonar são grandes festivais que atraem gente de todo o mundo, mas nós também temos coisas muito boas. Estamos a começar a internacionalizar os nossos festivais e há promotores que o fazem muito bem aqui. E acho que pela discussão e partilha de experiências, portuguesas e espanholas, é um momento muito interessante. E é muito giro vê-los a falar e aproveitar o evento para o networking. Obviamente que interessa quem são os vencedores, mas o momento de partilha e interação entre as duas indústrias é muito engraçado de ver. Esperamos que na segunda edição em Barcelona aconteça o mesmo.

A existência da Aporfest acaba por acompanhar este boom festivaleiro dos últimos anos, no país. Porque é que há tantos festivais em Portugal? À partida, pensamos, porque há procura, porque há essa necessidade, interesse em realizá-los e porque há algum benefício em realizá-los. Se é sustentável uma indústria tão grande?
Acho que naturalmente se vai fazendo a triagem, se bem que nós temos registado a evolução nos últimos anos e, de facto, tem crescido e não reduzido. O que acontece é, muitas vezes, os festivais realizam-se uma ou duas vezes e depois não têm sustentabilidade para se aguentarem uma terceira ou quarta vez. Aí é que reside a dificuldade dos festivais, fazer com que sejam sustentáveis. Existem três fatores muito importantes para realizarmos um festival: bilheteira, apoios estatais e patrocinadores. Se um destes falha não conseguimos realizar um festival. E há festivais que têm bastante dificuldade em obter estes três financiamentos. Muitas vezes, tem de se optar por não realizar mais. Por exemplo, o Fusing, um festival que surgiu em 2013 na Figueira da Foz, a partir de 2015 deixou de se realizar e era um festival que tinha muito potencial. Uma dessas três coisas falhou. E isso acontece bastante nesta indústria. Depois há os grandes festivais e há um hiato enorme entre estes e os pequenos festivais.

Portanto, faltam médios festivais.
Não sei se faltam, mas sim, há uma diferença muito grande entre os festivais de maior dimensão e os pequenos, que têm dificuldade em manter-se.

Por outro lado, temos exemplos de sucesso de festivais em meses mais frios e em sala, como o Misty Fest ou o Mexefest, quando está quase tudo concentrado no verão.
Sim, isso também é uma tendência que começou a surgir, que é não termos só festivais concentrados no verão, mas durante todo o ano. E acho que o sucesso desses também se deve a isso, porque continua a haver procura. As pessoas continuam a querer ouvir música e a participar em festivais.

O interesse do público português por música e concertos é frequentemente notado e apontado por artistas, indústria e jornalistas, nacionais e internacionais. Agora são os festivais portugueses que se dão a conhecer lá fora…
Não é um caminho fácil, mas estamos a começar a estar dentro da Europa e a prova disso foi a nossa presença, da Aporfest, na Eurosonic, na Holanda, [o maior festival europeu dedicado à industria musical] e a música portuguesa foi muito bem aceite lá. Isto também é um reflexo da abertura de Portugal na Europa e se pensarmos bem fica muito mais barato para um inglês vir a um festival português e passar umas férias do que ir um festival no Reino Unido.

O Alive foi um dos primeiros festivais a assumir essa estratégia de trazer público estrangeiro, apostando forte no mercado britânico, mas agora também há outros.
Sim, o Primavera Sound do Porto tem, claramente, parte do seu público vinda de fora. Nós conseguimos aproveitar o bom que Portugal tem, este clima maravilhoso, mesmo no inverno, as praias, e captar a atenção lá fora para virem ouvir boa música, passar umas férias e ainda sobra dinheiro para irem para outro lado qualquer. Porque, de facto, a grande vantagem ainda dos festivais portugueses é as entradas serem bastante mais reduzidas que os festivais lá fora.

É esse o principal fator diferenciador…
Sim, mas há mais coisas diferentes. Por exemplo, em Portugal na maioria dos festivais a música começa às 16h e é até às 4h ou 5h da madrugada. Lá fora isto não acontece. A música começa às 11h e é até à meia-noite, 1h. Culturalmente, há coisas diferentes nos festivais e isso também agrada ao público de fora. Pode passar o dia todo na praia, depois vai ao festival, ainda vão curtir a noite da cidade, se for um festival urbano. Há aqui uma amplitude de coisas boas em Portugal e que não tem só a ver com os festivais. Nós realmente não só promovemos a boa música e os bons festivais que são organizados aqui como o próprio país. E essa vai ser novamente uma das temáticas do Talkfest. Falamos de turismo em todas as edições, mas nesta vamos falar mais dos fluxos. Muitas vezes os festivais ocorrem em locais que, normalmente, não têm eventos. Como é que a cidade se prepara para este fluxo momentâneo para a pequena cidade que vai nascer durante dois ou três dias?

A Aporfest começou com 153 associados no primeiro ano, agora tem 268, segundo os vossos números. O que é o que os associados procuram na Aporfest?
Apoio, alguma orientação, formação. Muitas vezes as pessoas sentem-se perdidas no meio de toda a legislação, no meio da problemática da sustentabilidade financeira. E a Aporfest está aqui no sentido de dar as ferramentas base para a criação de um festival, negócio ou projeto que seja sustentável e possa crescer. A nossa área formativa tem sido bastante interessante e temos tido muita adesão. Há muita gente empreendedora que quer fazer coisas muito boas e necessita dessas ferramentas para começar a trabalhar e florescer.

Têm também os festivais grandes como associados?
Também, alguns. Bastantes parcerias nas tais ações de formação. É necessária uma atualização e o Talkfest faz um pouco isso. Todos os anos se fala do ano que passou mas também se projeta o futuro. Na primeira edição falou-se de muitas coisas que estão a acontecer agora. Tenho a certeza que nesta edição se vão falar de muitas coisas que vão acontecer daqui a uns anos. E esta reflexão e continua profissionalização são muito importantes para que os negócios se possam adaptar à realidade e crescer.

Falou de que este ano o Talkfest tem mais mulheres. Isto numa indústria como a da música que é ainda muito percecionada como sendo muito masculina e até machista. No seu caso alguma vez sentiu desafios acrescidos por ser mulher e trabalhar neste meio?
Não, felizmente não, porque nós na Aporfest estamos no meio mas não estamos [risos]. Mas não senti que houvesse algum problema por ser mulher. Na Aporfest não somos muitos, a equipa é pequena mas todos nós temos capacidades diferentes e respondemos de maneira diferente às necessidades que nos são colocadas. Eu não estou a 100% na Aporfest. Ainda não é possível sustentar uma equipa muito grande, portanto eu tenho outra profissão.

Trabalha em quê?
Trabalho no Instituto da Vinha e do Vinho do Ministério da Agricultura, na área da Comunicação. Antes fazia a gestão na Aula Magna e como é uma área um pouco feminina, a parte da Comunicação, eu não sinto isso. Mas realmente a indústria da música é ainda muito machista e é muito difícil que uma mulher tenha um cargo de poder. Temos de facto um grande exemplo que é a Roberta Medina e muitas outras mulheres que têm posições de relevo. Mas as mulheres estão conquistar a indústria da música. A palavra é mesmo conquistar, estão a lutar.

Como é que se deu a sua aproximação a este universo da música e dos festivais?
Como trabalhava na área cultural, na comunicação da Aula Magna, foi essa a minha primeira aproximação. Depois levaram-me para este projeto e sempre gostei muito de festivais. Sempre fui muito festivaleira e então comecei a trabalhar nesta área, inicialmente por gosto, e depois por amor e dedicação total.

 

Imagem de destaque: Carlos Manuel Martins/Global Imagens