Sérgio Praia: “Cada um de nós tem uma versão do Variações. O fascinante é que ele é muita coisa”

O processo foi longo, pelo menos 12 anos, desde que se cruzou com o desafio de representar António Variações, no grande ecrã. Durante este tempo deu-lhe corpo em palco, com a peça de teatro ‘Variações de António’, de Vicente do Ó, e no filme ‘Variações’, de João Maia, que ao fim de mais de uma década, chega agora aos cinemas, com estreia nas salas nacionais a 22 de agosto. “A peça e o filme são coisas completamente diferentes, mas para mim enquanto ator foi sempre uma continuação”, explica, em entrevista ao Delas.pt, Sérgio Praia.

Em todo esse período, o mais importante foi libertar para o exterior a sua construção da figura de Variações. “Eu queria, de qualquer das formas, trazer cá para fora esta minha versão, este António”. Dar vida a António Variações levou o ator, de 42 anos, a cantar, no filme, os temas do artista. Uma experiência que, de início, o deixou “aterrorizado”, mas que o levou, novamente, a deixar sair para fora mais uma versão que construiu, desta vez a vocal, a sua.

Cantar António Variações reforçou a exploração de um outro lado do autor de ‘Estou Além’: a obstinação em ultrapassar as tentativas e erros para seguir os sonhos. “Esse foco na vida, de querer alcançar o seu objetivo, apesar das dificuldades, impressionou-me muito”, diz.

Ao filme, seguir-se-á uma tour, com as versões das músicas que este filme, ‘Variações’, proporcionou, a serem transpostas para o palco numa última celebração de António e do seu legado. “O que mais me emociona, no meio deste processo todo, é que o António é como que uma massa que vive sozinha. É como se fosse quase uma espécie de santo e que há pessoas que o seguem e vão para onde ele for.”

 

Antes de este filme estar concluído já o tínhamos visto a dar vida a António Variações na peça de teatro ‘Variações de António’, do Vicente do Ó. Que diferenças há nestas duas experiências e de que forma a peça serviu – se é que serviu – para a construção de Variações no cinema?

Como o filme foi um processo muito longo – pelo menos 12 anos, em que eu estou envolvido – tive, a certa altura, necessidade de trazer a construção do António para fora. Falei com o João [Maia, realizador do filme] e disse-lhe que ia fazer um monólogo sobre o António, sobre a vida dele, porque tinha de encerrar este ciclo. Foi quando convidei o Vicente para escrever a peça. Mas em vez de “matar” a personagem acho que ela ainda ficou mais viva. Pelo menos, pela recetividade das pessoas, senti essa celebração. E nós recebemos o subsídio para o filme logo a seguir, no verão. Portanto, isto não parou. O que aconteceu foi que, desde o casting, em 2008, até agora, ao filme, é que foi sempre uma construção. É evidente que estava a ser difícil, mas havia alguma coisa também que não me deixava abandonar este projeto. E eu queria, de qualquer das formas, trazer cá para fora esta minha versão, este António. Cada um de nós tem uma versão do António Variações, um pouco diferente. O fascinante nele é que ele é muita coisa. Portanto, isso interferiu na minha construção. Claro que a peça e o filme são coisas completamente diferentes, mas para mim enquanto ator foi sempre uma continuação. Esse tempo todo e o ter feito a peça também me ajudou a perceber um bocadinho melhor o universo do António, no sentido da dificuldade de querer cantar, querer gravar e não conseguir.

O que mais o impressionou naquilo que foi descobrindo sobre o António Variações?

Confesso que o que mais me impressionou foram as coisas mais simples. Há algumas situações em que me revejo, talvez o querer sair da terra cedo, o querer sair da zona de conforto muito cedo, o querer fazer os outros sonhar. O que mais me impressionou foi, de facto, esse lado da busca do sonho e o ser muito focado. Ele era um homem muito focado, só que havia todo um outro lado histriónico, pelo qual ele era julgado e que eu acho que dificultou muito o caminho dele. Outra das coisas que admirei muito nele é que ele era um homem muito forte, era denso, era um homem fibroso e que não desistia. Esse foco na vida, de querer alcançar o seu objetivo, apesar das dificuldades, impressionou-me muito.

Fotografia promocional do filme ‘Variações’. Crédito: João Pina

 

Este filme é uma biopic. Teve liberdade para construir o seu próprio António Variações ou seguiu estritamente o retrato da figura?

Há momentos que aconteceram mesmo e, por isso, não pude fugir muito ao que aconteceu e está escrito, mas depois há todo um lado emocional sobre o qual não há informação. Aí sim foi-me dada liberdade. E nisso o João Maia foi fantástico, porque acreditou em mim desde o início. Pode não ser assim que o António era, mas ele teria de ser feito de alguma maneira. E não existe essa fórmula de como é que era, como é que não era. Claro que há pessoas que falam sobre ele, mas nunca tentei construir algo muito rebuscado. Tentei sempre ir por um caminho, que, para mim, é aquilo que o António Variações é e que acho que o torna numa daquelas pessoas que perduram na memória dos outros, como a Amália ou outros artistas. Portanto, tentei sempre não complicar muito e ter presente na minha cabeça que não sou o António, nem pretendo ser. O nosso trabalho sempre foi uma aproximação, qualquer coisa que faça lembrar aquela alma. Porque ser ele, isso nunca ninguém vai conseguir, e eu também não queria ficar preso a isso no filme. O João sempre me disse que queria que essa liberdade emocional fosse construída por mim, sem qualquer entrave. Por isso, é que digo que é a minha versão. E mesmo do contacto que tive com as pessoas que o conheceram, o que acho é que poucos o conheceram de verdade, pouca gente tinha noção de como é que ele era quando o chateavam, quando estava menos contente. Não há referência a isso, a referência é muito de neutralidade.

Com que pessoas é que falou?

Eu dividi a minha pesquisa em três vertentes: falei com alguns músicos que trabalharam com ele e depois dividi as pessoas “solares” e as pessoas do lado “mais escuro” do António. Em relação “solares”, falei com a Lena d’ Água, com a Xana Guerra, pessoas da família. Quanto à parte mais “escura”, digamos assim, mais densa, isso ficará para mim. Mas foi muito importante conhecer esse lado, porque eu acho que é onde está o verdadeiro António, no “estou bem, aonde eu não estou”. É esse lado mais desfocado que me interessa e é esse lado que o filme, de certa forma, procura às vezes, o lado mais solitário do António. O interesse do João no filme também não era reviver a vertente mais histriónica do António, ou as coisas que nós conhecemos hoje do YouTube. Ele queria-se focar um pouco mais no ato solitário, na relação que ele teve com o Fernando Ataíde. Mas chegou uma altura em que tive de tomar decisões, “fechei o livro” [a pesquisa] e foquei-me só nas letras dele, que é onde está todo o “mel”.

A relação entre o António Variações, o Fernando Ataíde e a mulher deste Rosa Maria, que no filme descreve como ‘família disfuncional’, era assim, foi ficcionada? Conseguiu saber, com algum detalhe, como era a relação entre os três?

Sim, sim. Falámos muito com a Rosa Maria [mulher de Fernando Ataíde, interpretada por Victoria Guerra], principalmente. O Fernando [Filipe Duarte] já faleceu, o António também, por isso, eu, o Filipe Duarte a Vitória falámos com a Rosa Maria. Aliás, o início da pesquisa dos três, desta “trindade”, foi feito todo com a Rosa Maria. Portanto, toda esta cumplicidade que tentámos criar no filme, foi dos momentos mais bonitos que tivemos – essa tarde, no fundo, que passámos com a Rosa Maria e em que percebemos que estávamos diante de um tesouro. Ela estava a abrir uma caixa que já estava fechada há algum tempo e todos sabemos que às vezes essas caixas são muito dolorosas de abrir. Mas ela foi muito sincera, e ao mesmo tempo percebeu que nós, principalmente eu e o João, andámos estes anos todos com o filme porque queríamos fazer um trabalho sincero sobre o António. E acho que foi por isso que ela nos recebeu, que nos contou como é que as coisas eram e que nos falou muito dos dois. Acho que ela percebeu que o nosso intuito era verdadeiro, que não queríamos fazer disto um espalhafato.

O António Variações parecia ter um carinho e respeito pelas mulheres, desde logo pela sua mãe. Na sua opinião, como era a relação dele com o sexo feminino?

O que posso dizer é que ele gostava muito da mãe e gostava muito da Amália – e do Fernando. O resto já era outra coisa…Ele sempre gostou das mulheres e respeitava-as imenso, mas, de facto, a mãe era a base e a raiz dele. E a Amália foi a mulher que lhe fez despertar todos aqueles sentimentos e que era a sua grande âncora [musical]. Com a Xana Guerra, a Lena d’ Água ele dava-se bem, com a Lara Li também, mas não eram relações muito aprofundadas.

Pode-se dizer que também era um homem focado no que diz respeito às pessoas e às relações, tal como era com a sua música? Teria a sua seleção de pessoas e concentrava-se nelas?

Sim, muito. Era muito díficil ele levar gente lá a casa, por exemplo, mesmo as pessoas que conseguiram ir lá, não quer dizer que fossem amigas dele, como a Manuela Gonzaga, que escreveu a sua biografia. Foi uma possibilidade que ele deu a uma pessoa de fazer um trabalho sobre a vida dele, e deram-se bem naquele momento. Mas ele sabia o que é que estava a fazer, sabia que aquilo era para ficar escrito, para história. Porém, isso não era confundido com amizade. As pessoas tinham muita dificuldade até conseguirem chegar a esse momento. Ele centrava muito as coisas nele, nas pessoas de que ele gostava e no seu objetivo. Era mesmo muito focado. Eu acredito que ele fosse capaz de passar o dia todo em casa – se não tivesse de ir para a barbearia-, a experimentar as letras, no seu gravador, na casa de banho, e não estar com ninguém, nem sair com alguém. E se saísse seria para ir ter com o Fernando e com a Rosa, porque, de facto, eles foram uma “trindade” durante muito tempo, andavam por Lisboa inteira e faziam muitas coisas juntos, embora tivesse sido uma relação que passou por momentos muito complicados. Mas acho que eles tentavam, se calhar, aliviar isso e pensar que o mais importante era o que eles tinham em comum, os três, e que era tão diferente das outras relações à sua volta.

O que lhe foi mais difícil de recriar, na construção da personagem do António Variações para este filme?

Eu acho que este lado emocional é difícil de recriar. É uma decisão que a pessoa toma, mas não sabe se é a certa. Isso foi uma dificuldade, mas a certa altura tive que abandonar isso e pensar que, pelo menos, estava a respeitar e a ser o mais sincero possível com a pessoa que foi o António. Estava a tentar aquilo que conhecia e o que não conhecia. E depois foi o lado da voz, cantada, que também foi uma parte complicada, porque eu canto durante o filme todo. Eu no início achava que não era a melhor opção, primeiro porque não sou cantor e, segundo, porque estava aterrorizado [risos]. O timbre do António era tão específico que ser eu a cantar poderia destruir o filme todo. Mas eu acho que o trabalho que foi feito com o João Maia, com o Rui Baeta e o Armando Teixeira, em relação ao timbre, foi muito importante. E foi todo feito antes das filmagens para depois também me sentir mais seguro quando começássemos a rodagem. E quando começámos a rodar, começámos a perceber que eu já estava a cantar um bocadinho melhor e que era muito importante para o filme poder mostrar a tentativa e erro…

Porque o filme mostra também esse lado do percurso do António Variações, de tentar e falhar.

Sim, que, no fundo, acabou por ser também o meu lado um bocadinho, enquanto Sérgio, à procura daquele timbre e daquele tipo de cantar – mesmo sabendo que nunca iria chegar lá. Mas só errando e tentando é que há uma aproximação. Portanto, esse lado vocal foi complicado, porque é uma grande responsabilidade, só que depois percebi que funcionava bem esta vertente live, de cantar no momento. O João decidiu que as gravações de voz iam ser todas feitas no momento. Nenhuma das músicas que nós fizemos antes das filmagens foram usadas, é tudo ao vivo. E eu percebi, ali na pele, que realmente era preciso aquela energia de estar à procura no momento. Acho que isso, de certa forma, sustenta o meu timbre ou a não parecença algumas vezes com o timbre do António.

 

Sérgio Praia cantou ao vivo as canções de António Variações. Fotografia. João Pina

 

Mas entretanto, esse lado vocal que explorou deu origem a uma banda sonora, que será editada logo a seguir à estreia do filme, e a uma série de concertos na última edição do NOS Alive.

Sim [risos], uma série de concertos, que foi um terror! [Risos]. Eu dizia: ‘eu não acredito que não queria cantar e agora vou cantar três dias no NOS Alive! Como é que isto vai acontecer?

E qual foi o resultado dessa experiência? Como é que ela resultou, para si e para o público?

Vai haver uma tour mais para a frente, mas aquele momento [no NOS Alive] foi muito bonito porque eu sei que isto não acontece muitas vezes na vida. E o que eu senti, basicamente, ali, é que tinha de estar disponível para cantar para as pessoas, mas rapidamente percebi que as pessoas estavam lá para cantar com o António Variações. Nem era comigo, era com o António. E o que mais me emociona, no meio desta história, deste processo todo, é que o António é como que uma massa que vive sozinha. É como se fosse quase uma espécie de santo e há pessoas que o seguem e vão para onde ele for. Senti muito isso com a peça e senti muito isso no NOS Alive. As pessoas estavam ali para o celebrar, com as músicas dele. As letras dele são tão próximas a todos nós, que qualquer um de nós já passou por qualquer coisa parecida. E isso é emocionante. É emocionante ver as pessoas todas a cantar e a vibrar com a música dele. Claro, comigo também, mas eu fui apenas uma via. Acho que as pessoas que estavam lá, se calhar, quando olhavam para mim, nem me viam a mim. Viam uma coisa desfocada, mais parecida ao António.

Há muitas pessoas que não tiveram a oportunidade ver o António Variações ao vivo. Talvez tivessem encontrado em si uma espécie de “reencarnação” do artista.

Sim [risos], eu acho que passa um bocadinho por aí e fico feliz também, claro. Esse é também um pouco o propósito disto tudo, porque quando começámos as filmagens, no Trumps, principalmente, começámos a perceber que aquela energia contagiava muito as pessoas e foi quando o Armando [Teixeira] me disse que achava que eu devia pensar com carinho em fazermos concertos, em celebrarmos com as pessoas, ao vivo, a música dele.

O António Variações, em vida, foi uma figura um pouco polémica, até pelo lado histriónico que mencionou. Hoje ele é consensual e muito acarinhado pelos portugueses. Há muita expectativa em torno deste filme. Sente alguma pressão ou nervosismo acrescido por isso?

Não, não. Estou tranquilo com aquilo que fizemos. Acho que o António, onde quer que esteja, também está feliz com o que fizemos. E estou feliz, principalmente, por trazermos à luz uma figura que muito cedo percebeu o que é que era e que muito cedo o mostrou às pessoas. E que foi também maltratada muito cedo. Ainda hoje muitas pessoas são maltratadas e quando dizemos que as coisas estão muito mais resolvidas, mesmo em relação a homossexualidade, o que este filme me mostrou é que é mentira. Há muito preconceito ainda à volta disto, há muita gente que ainda vive também à custa deste lado mais histriónico, mas quando é para investir no António à séria também foge. Acho que há muita coisa camuflada. De qualquer forma, o mais importante é trazer à luz o que é diferente. Felizmente, o António era um homem fibroso e conseguiu sobreviver a esse preconceito, por isso este filme também serve para celebrar todas as pessoas e o facto de toda a gente ter direito às suas opções e a viver a vida que quer e não a vida que os outros querem para elas.

Este é o trailer oficial do filme sobre António Variações

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