Sexismo, violência e bailaricos. “A ‘culpa’ não é do pimba, está nos valores societais”

LISBOA - Santos Populares em Lisboa
[Fotografia: Gonçalo Villaverde / Global Imagens]

Tempo quente, arraiais populares, sangria ou cerveja e, claro, bailarico a condizer com as festividades. As noites ficam mais longas ao som de música popular e pimba, e ninguém resiste a dançar ou a trautear os refrões mais orelhudos. Mas será que andamos a prestar a devida atenção às letras e às mensagens que grande parte dos temas acarreta sobre as mulheres?

Esta semana, o caso ganhou nova força depois de, em pleno mês de Orgulho LGBTQIA+, que se assinala em junho, o cantor Miguel Morgado, nas festas da Penha de França, em Lisboa, ter sido filmado a fazer um comentário homofóbico. “Homem que é homem agarra na febra! Os maricas podem ficar de fora”, leu-se no vídeo divulgado pelo influencer e youtuber Kiko is Hot e que gerou a polémica, levando Junta da Freguesia e o cantor a pedirem desculpa pelo sucedido. “Foi uma brincadeira”, acrescentou o artista.

A verdade é que à boleia de tamanha diversão, persistem estereótipos e ideias de violência que visam também – e muito frequentemente – as mulheres. Paula Guerra é professora de Sociologia na Universidade do Porto e Investigadora no Instituto de Sociologia da mesma Universidade, com trabalho científico desenvolvido na área da música, e revela ao Delas.pt que o ‘mal’ não está apenas nas músicas mais ouvidas no verão, está em todos os géneros. “Esta realidade está muito presente em quase todos os géneros da música popular”, afirma. E acrescenta: “Desde o hip-hop, onde temos exemplos de letras musicais repletas de sexismo e misoginia (que deram algumas polémicas nos últimos tempos, mesmo em Portugal), até ao próprio punk, que, diga-se, se considera um género anti-sexista, mas quando vamos ver as letras de várias bandas portuguesas (e não só), as mulheres não são bem representadas”, alerta.

A investigadora crê que a chegada de mais mulheres a este universo pode empurrar para a mudança a par da vigilância das redes sociais sobre os artistas, que os pode levar a pensar duas vezes antes de escreverem. Em véspera de nova conferência sobre cultura, a também fundadora e coordenadora da conferência KISMIF (KeepitSimple, Make it Fast) – que vai decorrer no Porto, em julho – antecipa também o tratamento deste tema nas conversas previstas.

Leia o retrato da música e da misoginia feito, por escrito, por Paula Guerra ao Delas.pt

Porquê esta relação entre as letras da música pimba e a violência de género e o sexismo?

Acho que não nos devemos centrar apenas no pimba, já que esta realidade está muito presente em quase todos os géneros da música popular. Desde o hip-hop, onde temos exemplos de letras musicais repletas de sexismo e misoginia (que deram algumas polémicas nos últimos tempos, mesmo em Portugal), até ao próprio punk, que, diga-se, se considera um género anti-sexista, mas quando vamos ver as letras de várias bandas portuguesas (e não só), as mulheres não são bem representadas. Ou seja, é uma questão, e não será diferente no pimba, de uma baixa representação feminina na música popular; e sobretudo, do facto de a musica popular plasmar as desigualdades estruturais da sociedade. Apesar de ter havido um crescimento significativo de mulheres a ingressarem no mundo da música, estas ainda estão em clara minoria e isso acaba por influenciar. Nunca nos podemos esquecer que a música popular é uma representação das lutas que ocorrem na sociedade e é por isso que vemos, de um lado, representações sexistas e machistas e outras claramente opostas a essas visões. O próprio facto de existirem estas polémicas reflete o facto de a situação estar a mudar.

De que forma perpetua estereótipos e legitima comportamentos contra as mulheres?

A música popular assenta muito no star system – cultura de celebridades -, isto é, nas estrelas para as quais olhamos e seguimos todos os passos. Nestas situações, quando uma estrela musical (pimba, rock, pop, seja o que for) exprime uma opinião, esta tem um peso ou uma legitimidade social maior do que a opinião de uma pessoa “normal”. Podemos olhar para o reverso da medalha: muita da influência de movimentos como o MeToo ou o Black Lives Matter veio da importância que demos às opiniões de famosos, muitos dos quais músicos com raiz no pop-rock. Então, pelo mesmo diapasão, as opiniões contrárias também podem legitimar certos comportamentos sexistas ou racistas. Mas isto nem sempre é linear e as pessoas, grande parte dos casos, sabem fazer uma destrinça entre o músico e as suas opiniões, da mesma forma que fazem o mesmo com escritores ou futebolistas.

[Fotografia: Gonçalo Villaverde / Global Imagens]

Que outros riscos este tipo de música pode acarretar para as mulheres ou para grupos de populações mais frágeis?

Se as pessoas podem sentir-se “empolgadas” após ouvirem a opinião ou as letras de um cantor famoso e de quem gostam (especialmente se se encaixarem com as suas opiniões já pré-existentes), o contrário pode ser dito para os grupos sociais que se veem visados nas letras, podendo criar um sentimento de apreensão e de ansiedade, que se um cantor famoso pode dizer aquilo, então torna-se legítimo para se dizer o mesmo nas conversas, nos cafés, etc., na sociedade.

As pessoas que trauteiam estes temas têm noção do que estão a cantar?

Se fosse algo em inglês, em que por vezes cantamos e nem estamos muito atentos às letras, tal poderia ser evidente. Quando se trata de algo em português, as pessoas sabem perfeitamente o que estão a cantar. Podemos associar isso ao contexto em que se deu, numa festa popular, muito próxima da lógica carnavalesca, em que tudo é permitido e o mundo durante um bocado fica de pernas para o ar. Pode ter sido por aí, terem achado que essa mensagem seria mais bem aceite neste contexto. Novamente, é uma possibilidade que tem de ser mais analisada.

O que deve ser feito para contornar esta realidade?

Acho que já se está a fazer alguma coisa. Veja-se esta polémica e outras que periodicamente acontecem, seja no pimba ou no hip hop, por exemplo: é a prova que vários setores da sociedade acham tais discursos inaceitáveis e acabam por utilizar as redes sociais para se manifestarem, criando uma onda de indignação que acaba por ser noticiada pelos média mais generalistas e chega a ainda mais gente. E o falar, o refletir, o problematizar são as melhoras formas de intervenção.

O que podem e devem os compositores e criadores fazer? O que podem e devem fazer os ouvintes?

Os músicos, no geral, já devem ter estas possíveis polémicas em mente, isto é, sabem que se abordarem certos temas acabam por provocar a indignação social muito potenciada pelas redes sociais. Ora, isso pode até ter efeitos negativos, de uma autocensura e pode acabar por uniformizar os temas das composições. Não há soluções fáceis, mas se estas polémicas continuarem, e com a importância crescente que as redes sociais e o online têm nas carreiras dos músicos, estes acabarão por evitar cada vez mais temas que possam ser polémicos. A sociologia não vive de essências: para mim, é muito difícil pensar no que se deve ou não fazer. Acho que a melhor forma é sempre discutir e optar por uma pedagogia critica de abordagem.

Há estudos em Portugal sobre o tema?

O pimba é um género musical pouco estudado em Portugal, é como se houvesse uma vergonha em lançar-se no seu estudo. Existe um sobre esse género, de 2006, chamado O Pimba. Um Fenómeno Musical, da autoria de Francisco Manuel Marques. Sobre a música popular portuguesa no geral, eu tenho trabalhos feitos sobre esses discursos sexistas e machistas em letras musicais de bandas punk portuguesas e de alguns rappers portugueses. E tal como na resposta à primeira questão, demonstram um desfasamento entre as pretensões progressistas destes géneros musicais e da realidade. O que vemos é que em géneros como o punk, em que a presença masculina é muito maioritária, quer a nível dos músicos quer das audiências, o que acontece é que as representações sobre as mulheres acabam por cair naquela ideia da “masculinidade tóxica”, em que são retratadas como conquista sexual ou, quando a coisa corre mal, de forma muito pejorativa e através de inúmeras metáforas insultuosas.

Vem aí um novo congresso sobre produção cultural, em julho, este é um tema que vai ser abordado? Que outros devem ser?

Sim, a questão das canções, da sua cristalização das desigualdades e perpetuação dos estigmas e algo que tem presença obrigatória na KISMIF Conference 2022. Tem sempre, quer numa perspetiva da importância das canções como reflexos da sociedade, quer como construtoras de um discurso acerca da sociedade. Afinal, as canções ainda são “armas”. A vertente da pedagogia critica e da intervenção são assuntos centrais na KISMIF, e existem avanços significativos que levaram conferencistas a abordar as canções de rap, mas também do queercore, do k-pop, do rock indígena como formas de protesto cruciais na contemporaneidade, mas também como formas de perpetuação de desigualdades.

Como socióloga, que alertas gostava de deixar?

Acho que a questão tem de passar por uma pedagogia crítica de abordagem como referi. Esta pedagogia levar-nos-á, porventura, ao cerne da questão e pensar que a “culpa” não é do pimba, mas está no âmago dos valores societais.