Sílvia Baptista: “Os homens não são responsáveis por nos darem orgasmos”

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Sílvia Baptista, séxologa (Orlando Almeida / Global Imagens)

‘Em minha casa ou na tua – para acabar de vez com as mentiras sobre as relações amorosas e com o sexo de luz apagada’ é o primeiro livro sobre sexualidade de Sílvia Baptista. Aos 41 anos tem-se ocupado até aqui dos livros dos outros, na editora Matéria Prima, chancela que também está no rodapé do texto que nos leva à conversa. A agora autora quis escrever sobre o comportamento em torno do sexo, sobre os mitos que nos são impostos e as ideias que quer desfazer. Ela chama as coisas pelos nomes – vulva e piça, por exemplo -, o livro pode fazer corar as almas mais sensíveis e esta entrevista, a páginas tantas, devia levar uma bolinha no canto superior direito. É que Sílvia gosta de chamar as coisas pelos nomes e não dispensa, quando faz falta, uma boa asneira ou um vernáculo carregado.

Porquê um livro sobre sexo? Ainda não temos a informação toda?
Eu acho que é mais um livro sobre sexualidade. Diria que o sexo é a parte das posições, das dicas, e a sexualidade é isso e o comportamento que temos em relação ao sexo. É esta parte que na verdade me interessa. Sendo que em relação ao sexo há já muita informação, nomeadamente nas publicações para o público feminino que fazem isso à saciedade. Talvez à sexualidade, à forma como nos vemos como pessoas sexuais à forma como nos sentimos enquanto temos sexo, se calhar nessa parte é que não há, em português pelo menos, tanta coisa escrita. A não ser que sejam manuais de psicologia, de sexologia, que são também muito importantes. Mas a minha ambição era para escreve para pessoas que estivessem algures no meio – que não fossem sexólogas e nem que estivessem, num outro pólo, super habituadas a ler sobre estas matérias, nem que estivessem em nichos já muito interessados por estas matérias como os poliamores, os swingers, etc. A maioria de nós está aqui algures neste meio enorme.

A forma como escreve parece transparecer que a maioria das pessoas tem uma sexualidade confinada. Por exemplo, em primeiro lugar assume que a maioria não dá tanta importância ao sexo como ele deveria ter, ou como tem para si, e depois que vivemos cheios de regras que não fazem sentido.
Eu acho que as pessoas dão muita importância ao sexo mas não fazem muito por ele. Na verdade não estamos habituados a pensar em nós enquanto pessoas, enquanto seres sexuais. Não estamos habituados a pensar nessa dimensão. Intuitivamente damos importância ao sexo, temos vontade, temos desejo, temos essas coisas todas. Porém, não damos importância à forma como estamos nele. Há muita gente que não se deve falar sobre sexo, que se deve fazer. Eu acho que não. Da mesma forma que pensamos sobre qualquer outra coisa que nos diga respeito também devemos pensar sobre o sexo que fazemos. Essa é a minha proposta. Em relação ao segundo ponto, eu acho, pela experiência que tive ao fazer coaching a mulheres durante 10 anos, e encontrar em 80% das primeiras sessões que tive as questões, de alguma maneira, passarem pelo sexo, ou começarem pelo sexo, iam sempre lá dar. As questões da autoestima e a forma como estamos em relação ao sexo estão de alguma maneira, na base do modo como nos vemos. É nesse sentido que digo que instintivamente queremos e procuramos sexo mas porque não estamos a pensar e a nos pensar dessa maneira, esse lado mais racional fica de lado. E o racional é tão importante como o outro porque se nós estamos um bocadinho encharcados de mitos e preconceitos, tudo bem. Se não os encaixarmos fica mais complicada.

Essa é uma questão exclusiva do sexo? Nós não refletimos muito sobre o que somos.
Sim, é da natureza humana. O que acho é que quando temos sexo somos o que somos da forma mais primária de todas. Ele compreende tudo aquilo que nós temos no lado mais lunar e no lado mais solar. Só nos conseguimos libertar desse jugo, desses preconceitos, se pensarmos sobre eles, se esses papéis nos colam ou não. De todos os mitos e ideias feitas que existem em relação às mulheres, vale a pena questionarmo-nos se essas ideias fazem sentido connosco ou não e se não fazem, então o que e que faz. Esta é uma formulação que nós não temos de facto em relação a muitas áreas da nossa vida, mas que eu escolhi fazer em relação ao sexo por achar que ele é transversal.

A masturbação feminina é a primeira mentira, o primeiro mito em relação às mulheres?
Acho que é um tabu puro e duro. Como a masturbação implica termos prazer sem a permissão do outro, embora a masturbação não signifique apenas uma prática individual, pode existir em casal. A verdade é que ela só se pensa de uma forma individual. Pensamos que uma pessoa só se masturba quando não tem parceiro ou quando não está contente em relação ao seu parceiro, isto sobretudo em relação aos homens. Em relação às mulheres, ela não existe. Se não estamos a pensar a sexualidade, a libido e o desejo ficam nas calendas gregas, e é neles que assenta a vontade de nos masturbarmos. E portanto não sei se é uma mentira. O que acho é que isso é tão estranho. No meu grupo de amigas somos muito poucas as que falamos sobre isso e não falamos mais porque não existe contracena do outro lado.

Fiquei espantada quando li que tem 41 anos, porque a experiência das mulheres não falarem de sexo não me parece uma coisa da nossa geração. As mulheres não falam de masturbação?
A masturbação é natural. Quando somos miúdos ela acontece de forma natural. Se ela existe, e se não for reprimida, se os pais souberem que isso vai passando naturalmente, nós crescemos a saber que há aqui qualquer coisa que é bom e que nos dá prazer. Se deixamos de fazer alguma coisa acontece. Não é porque deixa de ser bom. As mulheres não falarem sobre masturbação ou dizerem que não a fazem não tem a ver com facto de elas quererem mentir. Acho que primeiramente elas estão a mentir a si próprias. Felizmente existem mulheres que acham que as outras estão a mentir, isso é sinal de uma saúde imensa.

E a masturbação é o primeiro passo para uma vida sexual interessante?
Acho que sim. Porque a masturbação existe quase desde que percebemos que temos um corpo. Todos nós temos nem que seja um módico de memória de quando descobrimos que tínhamos uma pilinha ou um pipi. E por isso creio que sim, e que é preciso perceber que a sexualidade existe fora das parelhas ou dos grupos. Acho que quando nos masturbamos conhecemo-nos melhor, conhecemos melhor o nosso corpo, sabemos o que é que gostamos, o que não gostamos. Quando estamos em parelha, acaba por ser um conhecimento adquirido que se traz que é muito interessante. A masturbação existe dentro e fora de casal, a sexualidade existe dentro e fora de casal e creio que estas são duas ideias que contrariam as ideias feitas e que às vezes é difícil passar. Tendo em conta as reações que tenho tido ao livro, é talvez a ideia que vejo que as mulheres rejeitam mais. Isso e facto de dizer que os homens não são responsáveis por nos darem orgasmos, isso então… ficam malucas.

Tem um discurso praticamente feminista de cama, no sentido em que diz para a mulher se emancipar, para se fazer à vida e ir à procura do prazer. Nunca com aquela orientação da mulher dar prazer ao homem de mil maneiras.
Detesto isso. Acho que é das coisas externas que pior fazem à forma como a sexualidade feminina é entendida. Claro que cada um deve ter a responsabilidade de procurar o seu próprio prazer, e procurar as suas fontes quando quer saber alguma coisa e a qualidade das fontes que procura é da nossa responsabilidade.

Frisa muito a questão da sexualidade ser para cada um, individualmente, o que é muito diferente de estar à espera que o parceiro dê prazer, mas também de ver o corpo de cada um apenas como veículo de prazer do outro. Isto é o contrário de outro mito imposto, verdade? Há muitas mulheres que pensem que o sexo só serve para agradar o parceiro?
Na pós-graduação que estou a fazer em Sexologia encontrei um estudo a propósito de disfunções sexuais femininas, achou-se até aos anos 50, que uma mulher que não queria ter sexo com o seu parceiro teria uma disfunção sexual. Até que vieram duas académicas, feministas também, e que perceberam que nem tudo são disfunções sexuais e que a duração das relações tinha um papel muito importante na forma como as mulheres entabulavam, ou não, contacto sexual com o seu parceiro. Então percebeu-se que quanto maior a duração das relações menos as mulheres iniciavam esse contacto sexual mas uma vez lá, não estavam contrariadas, gostavam. Mas esse ensejo ficava cada vez mais retraído. As razões apresentadas para isso eram várias: com setenta e tal por cento, a primeira, as mulheres entabulavam contacto sexual para evitar conflito.

Então estes preconceitos prevalecem.
Sim. Acho que sim. Numa grande parte, sim. As coisas começam a mudar mas também só mudam quando nos responsabilizamos pelo nosso prazer e isso só acontece quando percebemos que temos uma sexualidade una, unitária, individual, que depois, a partir do momento em que entabulamos contacto sexual é porreiro se tivermos do outro lado alguém que está também para nós, que nos ouve, que está também preocupado com o nosso prazer para além do seu. Estas duas vertentes não são mutuamente exclusivas, mas acho que é de nós que parte tudo. Mas acho isso em relação a tudo na vida. Agora o que vejo muitas vezes é exatamente o contrário. Nós somos educadas a ter acesso igual a tudo, ao trabalho, à faculdade, já há uma paridade social e legal e depois, na sexualidade, continuamos a por tudo do lado de lá. Quando falo disto tenho reações de espanto, recebo e-mails muito irados, acesos. Coisas como “como é que é possível, andaram as mulheres a queimar soutiens para agora vir tirar esse trabalho aos homens”.

O que queriam dizer com essa argumentação?
Que eu estava a ser machista ao dizer que a responsabilidade do prazer era da mulher. Este é um pensamento muito rebuscado.

Uma parte importante do livro é sobre a casa dos homens. Eles estão emparedados entre preconceitos de muy machon, sensíveis, acrobatas de cama. Está difícil ser homem?
Não está fácil. Vivemos aqui períodos de um certo zeitgeist, está tudo a mudar e não se sabe muito bem para onde é que estas coisas estão a mudar. Faz parte da própria natureza da mudança. Nós, as mulheres, continuamos a ser muito escrutinadas mas para os homens também não está fácil, porque não existe uma perceção da necessidade de uma educação social a sério. A educação social fica na rua. Hoje em dia qualquer miúdo que tenha um telefone tem acesso à pornografia e tendo isso e mais nada faz com que eles cresçam a achar que os homens têm uma piça gigante, todos. Para ser homem é preciso ter uma piça gigante e depois, nesta falocracia, há uma questão quase identitária – quanto melhor for o tamanho, melhor eu sou. Depois há a questão da performance. Por um lado temos mulheres a achar que um homem que não nos dá orgasmos é uma merda na cama.

Mas por outro há aqueles tipos que demoram 40 minutos nos preliminares, a fazer uma verdadeira coreografia, quando a mulher queria uma coisa mais simples. Há relatos disto frequentemente.
Mas essas coisas podem ser faladas. Isso é que eu não entendo. Como é que alguém que só quer dar uma rapidinha aguenta 40 minutos vezes consecutivas. Depois, claro, o sexo desaparece, naturalmente. Uma pessoa farta-se. E é esta falta de comunicação sexual que é uma das razões principais pelas quais os casais se desagregam. E porquê? Porque não somos educados a pensar dessa maneira, como seres sexuais. Crescemos, na nossa geração de forma relativamente saudável. Mas as miúdas de 13 anos hoje já têm experiências sexuais para as quais não têm maturidade. É preciso ter uma cabeça e um lado emocional que acompanhe e, na verdade, acho que isso não existe aos 13 anos. E os rapazes crescem a ver pornografia e o que passa a importar são os tamanhos, as posições. Depois na cama, na performance, acham que têm de fazer várias posições e ginásticas, e têm de ser ioguis… isto por si só não tem mal se houver qualquer coisa de base, se houver os pais em casa e as escolas a dizer “está tudo bem, isso é um lado da coisa mas não é o único.” Quando isto aparece como o único lado da informação sexual não chega. Eles têm de saber que nem todos os homens têm uma pila assim e nem todas as mulheres fazem sexo assim.

É uma questão de falta de palavras? É muito evidente neste livro o recurso ao jargão, ao vernáculo, mas não temos muitas palavras para falar de sexo sem carga negativa, médica ou infantil. Não temos uma palavra como os brasileiros têm ‘transar’. Nós ‘vamos fazer sexo’. Precisamos de palavras novas?
Se calhar sim. Se aparecerem palavras novas isso significa que alguém sente a sua necessidade e que alguém quer falar sobre isto e elas não existem. Eu uso o vernáculo porquê? Para já porque gosto, falo assim, gosto de dizer caralhadas. Não digo, obviamente em todos os fóruns mas gosto. Acredito genuinamente que uma boa caralhada não é substituível. A maior dificuldade que eu tive em escrever este livro foi em perceber caralhada a caralhada, se ela fazia sentido ali, se ela não era posta debalde, se ela não estava ali a mais. Depois de 30 mil revisões pensei que estavam bem ali. Não é para chocar, eu sou mesmo assim. Eu tenho no meu íntimo um camionista alegre, que diz caralhadas, a torto e a direito. Eu não tenho medo dessas palavras. Na verdade, se calhar, não temos palavras adequadas.