Publicidade Continue a leitura a seguir

Saúde mental: “Já há atletas que desligam as redes e mudam de número nas competições”

[Fotografia: Loic Venance/AFP]

Publicidade Continue a leitura a seguir

Simone Biles surpreendeu o mundo ao anunciar a desistência da competição por equipa nos Jogos Olímpicos que estão a decorrer em Tóquio. Uma das mais medalhadas ginastas da História e campeã olímpica tinha todos os olhares postos nela após a vitória colossal que tinha obtido no Rio de Janeiro, em 2016.

Um exercício menos conseguido na terça-feira, 27 de julho, levou-a, nos primeiros instantes, a sair da prova, regressando logo depois. E se inicialmente era de uma lesão latente no tornozelo de que se falava amiúde, Simone Biles rapidamente arrumou o assunto para lembrar que estava a recuar na prova, mas a razão era clara: “Tenho de me focar na minha saúde mental.”

Em declarações públicas, a atleta norte-americana justificou as razões. “Não confio tanto em mim como dantes, talvez esteja a ficar mais velha (…). “Não queria ir para competição e fazer algo estúpido e magoar-me. O facto de haver muitos atletas a falar sobre saúde mental ajudou-me imenso. São os Jogos Olímpicos, é algo muito importante. No fim do dia não queremos acabar a sair de maca”, afirmou, lembrando que quando a competição arranca o caso muda de figura: “Sou só eu e a minha cabeça a lidarmos com demónios”.

A atleta junta-se a nomes como a tenista Naomi Osaka, que em junho deste ano tomou atitude semelhante ao abandonar Roland Garros e priorizar a saúde mental, Tiger Woods ou Michael Phelps, que já veio a terreiro apoiar Biles. Uma atitude da atleta que mereceu aplauso mundial e uma resposta da própria ginasta, que agradeceu esta quinta-feira, 29 de julho, “a onda de amor e apoio”. “Fizeram-me perceber que sou mais do que os meus resultados e a minha ginástica, algo em que nunca tinha verdadeiramente acreditado antes”, escreveu na rede social Instagram

 

Ver esta publicação no Instagram

 

Uma publicação partilhada por Simone Biles (@simonebiles)

Ao Delas,pt, Jorge Silvério, psicólogo na área desportiva, com trabalho exercido ao longo de três décadas e com cerca de duas dezenas de atletas que acompanha regularmente a participarem nos Jogos Olímpicos, explica a natureza desta pressão psicológica.

“Já há alguns atletas que desligam as redes e mudam de número nas competições para não se desconcentrarem e não se sentirem pressionados”. “Eles só falam com quem é diretamente importante para eles”. Esta é uma medida de proteção dos atletas que está a ganhar corpo e que pretende evitar lesões… na saúde mental de quem está em prova.

Certo é que Simone Biles abordou esta mesma questão na hora de dizer adeus à competição e referiu: “Há alguns dias em que toda a gente te envia mensagens e tu sentes o peso do mundo”. Silvério alerta, porém, que há outros que preferem exatamente o contrário e acompanhar tudo.

No caso de Biles, o psicólogo desportivo lembra que as atenções estavam particularmente focadas na atleta. “Nestes jogos não há Phelps ou Usain Bolt e Simone Biles assumiu esse papel e concentrou em si todas as expectativas. Ela habituou-nos a isso”, contextualiza o especialista. E lembra: “Estamos num meio muito competitivo. Esta fragilidade não era habitual, mas começa agora a ser. Os atletas são seres humanos e têm problemas como todas as outras pessoas. Estes superatletas têm ainda mais devido à atenção que concentram sobre eles”. Daí que seja tão importante falar do tema.

Psicologia é paga pelos atletas e começa cada vez cedo

A procura de apoio psicológico no meio desportivo é cada vez mais recorrente. Aliás, André Nogueira, diretor técnico de Ginástica Artística da Federação de Ginástica de Portugal aborda isso mesmo. “Temos alguns ginastas que têm psicólogos que os apoiam, que consideramos ser uma parte importante, um complemento do treino, e mais do que a procura quando já há problemas, este recurso pode ajudar a antecipar”, revela.

Ambos, Nogueira e Silvério, registam o facto de este trabalho ter de ser pago na sua maioria pelos atletas – mesmo quando estão ligados a federações e representam Portugal em competições internacionais – e lamentam ainda haver estigma em relação à assunção de ser necessário apoio mental.

Ainda assim, o psicólogo na área desportiva nota uma cada vez maior procura e feita mais prematuramente. “Já trabalho com atletas com 11, 12, 13 anos. Nestes casos, são mais os pais e os treinadores que encaminham e o que procuram nem sequer é o rendimento desportivo, mas a procura de equilíbrio da pessoa nas suas várias vertentes”, explica.

O especialista considera que a procura tenderá a aumentar até porque “o rendimento desportivo alicerça-se em quatro planos: físico, técnico, tático e mental, e este último tem sido o menos trabalhado. Sabemos que para se estar ao mais alto nível é importante estar bem em todas as componentes”.

Importante vincar que o Comité Olímpico em Tóquio se faz acompanhar de uma equipa de psicólogos, liderada por Ana Ramires.

Primeiros sinais de alerta

A decisão de procurar ajuda pode começar por motu proprio e ainda antes de qualquer confrontação. Essa é a situação desejável. Contudo, nem sempre é assim e há sinais que denunciam a necessidade de um atleta recorrer a auxílio psicológico. “Começam por existir alterações de comportamento e a própria Simone Biles falou disso ao explicar o decréscimo de prazer em praticar a modalidade”, explica e contextualiza Jorge Silvério.

O especialista fala ainda em oscilações “de humor com alguma regularidade e, ao nível mais fisiológico, alterações no apetite e no sono”. Individualmente – prossegue – estes indicadores podem não querer dizer nada, “mas juntos são sobreaviso para pensar que alguma coisa se está a passar”.

Na prática clínica, o caminho passa pela definição concreta e consciente de objetivos. “O problema no desporto é sempre o ‘quase’ porque para que uns ganhem, outros não o fazem, e não se trata de perder. Lidar com isto não é fácil, falamos de atletas que estiveram cinco anos a treinar arduamente longe dos holofotes, são subitamente olhados por todos, têm poucos minutos para mostrar todo o seu esforço, fazem um trabalho fantástico e, mesmo assim, arriscam-se a ficar, por exemplo, em vigésimo lugar”. O que pode significar uma conquista, um passo mais além.

Por isso, a estratégia é, refere Silvério, “estabelecer objetivos e trabalhar em funções deles”. “Os individuais devem ser em termos de processo e não de resultado do atleta, porque é importante que não esqueçamos que a classificação final não está dependente exclusivamente dele, relaciona-se com o desempenho dos adversários e de múltiplos outros fatores”, ressalva.

Até à publicação desta peça, o Delas.pt tentou obter um comentário por parte do presidente da Federação de Ginástica de Portugal, Luís Arrais, que está em Tóquio, mas tal não foi possível.