Simonetta Hornby: “Ou te juntas ao sistema, para depois o derrubares, ou vais-te embora”

Entrevista - Simonetta Agnello Hornby
Lisboa, 26/06/2017 - Simonetta Agnello Hornby, escritora, fotografada esta manhã na Avenida da Liberdade em Lisboa, antes duma entrevista. ( Gustavo Bom / Global Imagens )

Simonetta Hornby esteve em Portugal para lançar o seu mais recente livro, Café Amargo. Numa conversa sem cronómetro, a advogada e romancista mostrou o ADN da personagem principal do romance, contou a sua história, explicou a sua identidade siciliana, falou sobre a máfia, violência doméstica, descriminação, igualdade de género, e partilhou o que considera ser a hora certa para morrer.

Numa entrevista para uma rádio Australiana, partilhou que o seu pai um dia lhe terá dito: lembra-te, tu és siciliana. O que é que significa ser siciliana?

Significa ter identidade; nós somos de uma Ilha e por isso temos a nossa identidade muito clara. A minha família está na Sicília há mais de 600 anos. A Sicília já pertenceu a gregos, romanos, tunisinos, franceses, espanhóis, e por fim italianos. Nunca fomos independentes e quando a Itália – por Garibaldi – nos conquistou, foram aniquilados muitos sicilianos. Mais tarde, depois da Guerra, as pessoas mais pobres emigraram para Turim e para Milão e em alguns lugares havia placas a dizer: Sicilianos, não. De um certo modo, olhavam para os sicilianos como seres inferiores. Tudo isto terá ajudado a que as pessoas da Sicília, como reação, se tenham tornado muito orgulhosas de si e das suas origens.

Deixou a Sicília, casou com um inglês e mudou-se para Inglaterra. Estava grávida quando tentava exercer Direito num país que não era o seu. E isto no início da década de 70. Sentiu algum tipo de descriminação por ser mulher e emigrante?

Fui viver para Inglaterra quando tinha 23 anos. Tive de fazer uma requisição à Ordem de Advogados para voltar a estudar Direito, porque a minha licenciatura não era reconhecida, o que estava correto, era justo, já que a lei italiana é muito diferente da inglesa. Acontece que, para ser aceite, teria de passar num teste em que a minha pessoa seria avaliada. Eu já tinha trabalhado na Zâmbia, como advogada, durante dois anos, também tinha estudado Direito na América, estava bem qualificada, mas eles queriam uma entrevista.

Estava grávida nessa altura. Sentei-me a uma mesa e do lado oposto estavam sete homens, todos muito cordiais, muito British. Perguntaram porque é que eu gostaria de exercer a minha profissão em Inglaterra e eu respondi que me tinha casado com um inglês – o Sr. Hornby – que vivia em Oxford e, como eles próprios poderiam ver, estava grávida por isso fazia todo o sentido trabalhar naquele país, já que era ali que tinha a minha vida. Depois desta resposta, um dos entrevistadores coloca a hipótese: Então e se vivesse entre cá e lá? Bem, a conversa continuou até que chegaram ao meu marido, indagando: Foi em Cambridge que conheceu o Sr. Hornby? E pronto, a partir daí as perguntas deixaram de ser sobre mim e começaram a ser sobre o homem com quem eu era casada.

Nessa altura, tive de tomar uma decisão: ou me levantava e ia embora; ou ficava e me comprometia a estar ali, a ocupar o lugar deles, em 10 anos.

Fiquei e fui aceite. Não cheguei ao lugar deles em 10 anos. Cheguei passados 15. Ou te juntas ao sistema, para depois o derrubares, ou vais-te embora. E se vais embora, ganhas zero.

E passados esses 15 anos, quando era a Simonetta a entrevistar as candidatas estrangeiras, emigrantes, as coisas já eram diferentes?

Obviamente que as coisas mudaram mas, bem lá no fundo, quem é diferente será sempre diferente. Ainda hoje, em Inglaterra, como acredito que em Itália, continua a haver descriminação, mas acho que, em parte, esta descriminação é resultado da falta de conhecimento da cultura do outro.

Como podemos inverter isso?

Talvez devêssemos fazer o que os parses fizeram. Zoroastrianos, da Pérsia, foram expulsos por volta do séc. VII e seguiram para a Índia, para Mumbai. À chegada, perguntaram-lhes quem eles eram e o que queriam naquele lugar, ao que os parses responderam: Queremos viver aqui, estamos a ser perseguidos. Depois de pensarem sobre o assunto, os locais aceitaram que os parses ficassem se cumprissem três requisitos: só falariam a língua local, mesmo nas igrejas parses; vestir-se-iam como os locais, e dar-se-iam a conhecer. A verdade é que, até hoje, os parses vivem na Índia.

Eu tenho uma amiga parse que está sempre a falar da sua cultura, a explicá-la. Os meus amigos hindus, não o fazem. Se estás a viver num país estrangeiro e queres ser tratado como um deles, deves falar a língua e vestir-te de forma semelhante, para não te sentires diferente, e sobretudo, deves explicar quem és, dar a conhecer as tuas diferenças.

Não partilha, portanto, da opinião de que essas premissas de que falou aniquilam a própria identidade…

Os parses estão na Índia há uns 1400 anos e continuam parses. Falares outro idioma e vestires-te como se vestem as pessoas do lugar onde vives não mata a tua identidade. Não pode. Repara, a língua está em constante evolução sem que nós sequer nos apercebamos. Se eu tentar falar com alguns emigrantes italianos na América nós não nos entendemos, porque o italiano deles é pobre e o meu siciliano é do tempo dos meus avós. Para que se mantenha a identidade, é importante preservar a cultura e eu acredito que o idioma não representa a cultura.

E o que representa, então, a cultura de um povo?

A comida, por exemplo. O que come, como o prepara, como come, os rituais envolvidos no processo. Não estou a falar de cozinha gourmet: isso é moda. Estou a falar do que se come em casa. Aliás, basta que nos lembremos que a evolução do Homem acontece através da comida, e da possibilidade de cozinhar.

Voltando às suas raízes, como foi crescer na Sicília com a máfia, que lá existe desde 1812?

Eu nasci, e cresci, a conhecer a máfia. Na verdade, a máfia não gosta de matar, só mata se necessário, e naquele tempo ela tinha poder, por isso não havia mortes. Mussolini não derrotou a máfia, pelo contrário: chegaram a um acordo que levou elementos da máfia para vários lugares da política.

Mas depois da Guerra as coisas mudaram. A minha família tinha terras e houve raptos – um primo do meu pai foi raptado, o filho de um amigo meu sofreu tentativa de rapto. Portanto, eu cresci sabendo da existência, próxima, da máfia mas naquela altura eles não tocavam em raparigas o que, num certo sentido, era uma grande injustiça – ainda que a meu proveito.

Diz-se que hoje em dia não há máfia, porque está tudo silencioso. Não é verdade: o que acontece é que agora a máfia tem muito poder, não precisa de matar.

De que forma esse contexto que descreveu influenciou a sua personalidade?

Fez-me devota à Justiça.

Simonetta Agnello Hornby, escritora. ( Gustavo Bom / Global Imagens )

Sobre o seu mais recente livro, Café Amargo: a ideia inicial era contar a história da sua avó materna, que se chamava Maria. Porquê?

Eu nunca cheguei a conhecer a minha avó. Ela morreu aos 54 anos, doente do estômago. Eu tinha quatro meses e o meu primo, também seu neto, tinha um mês… Parece-me que este não seria um bom momento para morrer, mas a minha avó, perante a possibilidade de se tratar em Roma, disse ao seu irmão, que a tentava convencer a viajar: Não fazes ideia do quão doce é morrer. Ora, é uma coisa bastante bizarra de se dizer! Eu não conseguia entender o porquê destas palavras e então disse à minha mãe que queria escrever um livro sobre a minha avó para a tentar perceber melhor.

Mas a dada altura dá a Maria, personagem principal do livro, vida própria. O que aconteceu?

A minha avó, tal como a Maria do livro, fora, aos 15 anos, escolhida pelo meu avô para casar. O meu avô jogava, perdeu muito da sua fortuna, tiveram quatro filhos. Fiz perguntas a muitas pessoas sobre a minha avó e as respostas eram sempre as mesmas: tudo o que ela fazia era maravilhoso, tocava piano muito bem, cozinhava muito bem, ajudava os pobres, era linda e perfeita. Face a estas respostas, fui ter com a minha mãe e disse: Eu não posso escrever um livro sobre uma mulher perfeita. É rápido. Eu gostaria de lhe dar um amante maravilhoso.

Com o consentimento da minha mãe, assim fiz. Bom, a minha mãe morreu sem ler o livro e acho que se o tivesse feito talvez achasse que fui longe demais! (risos)

Acima sugeriu que há bons e maus momentos para morrer. Como identificá-los?

Eu acredito na existência de timings mais decentes do que outros para se morrer e os decentes estão relacionados com os momentos em que conseguiste alcançar algo ou os momentos em que assumes que não conseguiste alcançar o que querias.

Vou dar-te um exemplo. Quando o meu filho mais novo tinha 15 anos, descobriram que eu tinha alguns tumores no útero. Na altura, não se sabia se eram benignos ou malignos e eu disse ao médico: Eu não posso ser operada agora. Eu não posso morrer agora, tenho ainda de encaminhar o meu filho mais novo até à Universidade. Quando ele completou 18 anos, fui operada, não era cancro e estou aqui hoje.

Há dois ou três anos atrás, a minha família estava bem, 4 netos nascidos, o meu filho mais velho estava doente, mas a recuperar, e lembro-me de ter pensado: Eu poderia morrer agora. Não que o quisesse, mas teria sido um bom momento para ir embora. Agora, por exemplo, não posso morrer. Acabei de trocar de casa, tenho de reorganizar as finança; se morresse agora, deixaria uma bagunça para os outros resolverem.

Em Café Amargo, há uma personagem que a dada altura pára de amamentar, cedendo à pressão familiar, e uma outra que tem um caso com o cunhado com o consentimento do marido. Há repressão e transgressão…

Em todas as sociedades, quanto mais as mulheres são reprimidas mais transgressões acontecem.

A vida das mulheres dessa altura, início do século passado, e a das mulheres de hoje é muito diferente?

A Lei mudou, mas não me parece que a vida das mulheres tenha mudado assim tanto. A única coisa verdadeiramente nova e transformadora desse século foi a pílula. Até então reprimimos a nossa sexualidade, o que levava a transgressões.

Mas no geral, não acho que coisas estejam assim tão diferentes. E quanto mais olho para os últimos anos mais me convenço de que as mudanças que ocorreram foram, sobretudo, cosméticas.

Como assim?

Nós continuamos a tratar o nosso corpo como algo para atrair homens, ainda vivemos com a velha ideia de que a mulher tem de ser conquistada. Dou um exemplo: tenho dois filhos, ambos casados (um deles entretanto divorciou-se). Regularmente, as minhas noras perguntavam-se se eu podia ficar com os netos no Dia dos Namorados. E a frase era: Nicki vai levar-me para sair. Ora, é vergonhoso. Deveriam ‘levar-se a sair’ um ao outro. Ambas trabalhavam, tinham boas formações académicas. No Mundo Ocidental, não houve a mudança que nós achamos que houve. Aparentemente somos mais livres – hoje podemos trabalhar, divorciar, viajar sozinhas – mas lá no fundo, nos relacionamentos familiares voltamos ao estereótipo. Mesmo com os filhos. Sempre disse aos meus que nós (família) somos um negócio em que todos colaboramos, todos temos o nosso trabalho. Eles sabem limpar, coser, cozinhar, passar a ferro.

Outro exemplo. Olha para a cirurgia plástica. Hoje fazemos inclusive cirurgia plástica aos genitais. O que é que nós conquistámos? Pedimos para nos cortarem, para ficarmos mais bonitas? Para quê?

A chamada igualdade está na Lei, mas não está nas pessoas. Eu sou advogada de família e vejo isso muito claro nos processos de divórcio.

Simonetta Agnello Hornby, escritora. ( Gustavo Bom / Global Imagens )

O facto de ser advogada faz com que sejam os factos sempre a guiar as suas narrativas?

Sim, sou advogada e tornei-me escritora há 15 anos; é muito recente. Eu gosto de verdade e de pesquisa. Cada pedaço de história neste livro está absolutamente correta. Eu acredito nos factos e na realidade. Não sou uma sonhadora.

Neste livro, deixa a sugestão de que uma das personagens femininas terá sido vítima de violência doméstica. A Simonetta trabalha com a Global Foundation for the Elimination of Domestic Violence. Quando será a violência doméstica eliminada?

A violência doméstica nunca vai acabar. Tal como os suicídios e os homicídios não vão acabar. Haverá sempre psicopatas violentos; pessoas más a fazer coisas más a crianças, a adultos, a velhos. Por outro lado, nós perdemos o medo de ser excluídos da sociedade para sempre. A vida na prisão pode até ser confortável, podes inclusive estudar… É civilizada e não tenho nada contra. Mas por causa disso, as pessoas sente-se mais seguras em fazer mal.

Em relação à violência doméstica, o que nós temos de fazer é tentar eliminá-la para a maioria das pessoas.

De que forma?

Nós estamos a dar a outros a tarefa que os Governos deveriam assumir. Estamos a privatizar tudo, incluindo a violência doméstica e, a partir desse momento, cada um faz o que quer porque é tudo uma questão de dinheiro. Vivemos numa época em que o dinheiro é o deus. Nada mais. Eu pessoalmente já não acredito em Governos. Nós, os cidadãos, temos de nos ajudar uns aos outros.

Na prática, o que sugere?

Acho que deveríamos trabalhar em dois sentidos. Um passa por explicar às crianças que o seu corpo é o seu santuário. Ninguém pode ordenar o que fazer ao seu corpo. O corpo é de cada um.

Depois, o outro, passa por educar pessoas como tu e eu a reconhecer os sintomas da violência doméstica, detectáveis sobretudo através do comportamento da pessoa violentada. No trabalho, devemos ajudar essas pessoas, dar-lhes suporte, mesmo que não elas não nos digam nada. É também importante conseguir identificar o agressor, porque na maioria das vezes também ele precisa de ajuda. São por norma pessoas que foram vítimas de violência, em crianças, ou viram violência nas suas famílias. 98% dos jovens presos, em Inglaterra, sofreram violência doméstica.

Como podemos aprender a reconhecer os sintomas da violência doméstica?

Eu aprendi através do meu trabalho e de especialistas com quem trabalhei. Mas qualquer um pode aprender fazendo um curso. Não é difícil.

Começámos esta conversa a falar sobre o que é ser siciliano. Agora, para terminar, gostaria de lhe perguntar: o que é que a Simonetta não é?

Não sou uma cidadã do mundo. Sou alguém que nasceu na Sicília, que se mudou para Inglaterra, viajou muito, mas se me perguntares onde é o meu ponto no mundo digo-te que é o Monte Pellegrino (Palermo). Não tenho uma cidade a que pertenço, ou uma casa, ou uma pessoa. Eu pertenço a uma rocha.

Como prefere o seu café: doce ou amargo?

Amargo.