‘Snu’ : O filme que prova que “não há amor proibido”

A história de amor entre Snu Abecassis e o fundador do PPD/PSD, Francisco Sá Carneiro, chega esta quinta-feira, às salas de cinema nacionais, com Inês Castel-Branco e Pedro Almendra, como protagonistas. Apesar de retratar a relação amorosa dos dois – uma relação polémica numa época de transição política e social -, a realizadora Patrícia Sequeira decidiu dar ao filme apenas o nome de ‘Snu’.

Embora lhe tenha interessado, antes de tudo, “a história de amor e aquilo que ela representou na altura”, fazê-lo a partir de Snu Abecassis permitiu dar outro foco a uma figura que, no seu tempo, foi retratada e reduzida, por uma sociedade moralista e conservadora, ao papel da amante do primeiro-ministro, eleito então pela AD, coligação que juntava ao PSD, os partidos mais à direita e conservadores da altura – CDS e PPM.

“Nesta história há uma mulher que é uma protagonista sem protagonismo, que vive situações protocolares em que nunca sabe se se vai sentar na primeira fila ou na última, é uma mulher sujeita às críticas da sociedade – mais por causa da igreja e do aproveitamento político, de dentro e fora do partido”, diz em entrevista ao Delas.pt.

Snu “era a amante por via das condições da sociedade” – o marido de Snu, Vasco Abecassis, deu-lhe o divórcio, mas a mulher de Sá Carneiro, negou-se a fazê-lo. “Por lei tinham de esperar seis anos”. Muito tempo para a urgência de viver esse amor, pelo líder histórico dos sociais-democratas, segundo o que é retratado no filme, por Pedro Almendra.

“Quando nós temos urgência, não pensamos muito na forma como agimos. Agimos porque é assim que sentimos”, refere o ator.

Ao contrário de Inês Castel-Branco, a Pedro Almendra não faltaram registos sonoros e visuais de Sá Carneiro, discursos, entrevistas que pesquisou nos arquivos da RTP ou no Youtube, além das biografias que leu. O desafio foi passar de todo esse material sobre o político e a sua exposição pública para o seu lado privado e íntimo. “A construção desse lado tem uma abordagem pessoal, apesar de ter havido alguma informação de amigos próximos que contaram como é que eles se relacionavam nos momentos menos sociais e expostos. E a partir daí fui construindo a maneira de estar do Francisco, pensando muito como é que ele seria estando em casa, como se movimentaria nesse espaço, como é que reagiria a um toque – uma pessoa que parecia sempre de uma tensão enorme nos momentos políticos”.

Toda a informação recolhida ajudou realizadora e atores “a criar imagens”, que depois trabalharam de forma mais livre ou mais factual, se se tratava de cenas mais privadas, ou mais públicas e históricas.

“Foi um bocadinho ver o que é que foi esta história de amor nesta época, mas sempre com a salvaguarda que isto é uma interpretação nossa”, diz Inês Castel-Branco.

“O amor e a força que ele tem é uma mensagem que é transversal, que atravessa todas as épocas e que também é uma boa mensagem neste filme”, refere a atriz, que espera que o filme, estreado na véspera de se assinalar mais um Dia da Mulher, mostre às novas gerações quem era esta dinamarquesa que se apaixonou pela possibilidade de mudar um pouco de Portugal, “uma mulher que não tinha medo de uma ditadura e não tinha medo de uma cultura conservadora”, indo contra tudo e contra todos para assumir um amor.

Uma mulher diferente, num país diferente

“Interessou-me contar esta história através da Snu, porque era uma mulher que conseguia olhar para Portugal de uma forma totalmente diferente. Éramos um país com muito para fazer, e ela percebeu isso e quis fazer”, refere a realizadora.

Através dessa história de amor e de Snu, em particular, Patrícia Sequeira cumpre assim uma dupla vontade: falar de Portugal e da condição feminina. “Há uma mulher que está sujeita a uma situação que é de uma impotência extrema e tudo isto poderia ser interessante, mas é muito mais interessante quando se trata de uma mulher dinamarquesa, que viveu na Suécia, na Inglaterra, nos Estados Unidos da América… Chega a Portugal e não há país, talvez, mais diferente”.

Quando Ebba Merete Seidenfaden, nome verdadeiro da mulher que ficaríamos a conhecer por Snu, chega a Portugal, casada com Alberto Vasco Abecassis de quem teve três filhos, o país vive ainda em ditadura. Apesar disso, Snu decide fundar, em 1965, uma editora, a D. Quixote, que publicou vários livros que desafiavam os limites da censura.

Esta é uma vertente da sua vida que a realizadora confessa ter pena de não ter conseguido explorar tanto como gostaria: a sua importância na criação de uma editora que ia contra o regime, publicando autores incómodos, alguns Prémios Nobel, porque que queria, acima de tudo, informar e ensinar os portugueses. “A censura tirou-lhe essa possibilidade muitas vezes. Essa é uma zona que eu gostava de ter abordado mais, mas para contar a história de amor, tinha de abreviar”. A narrativa começa, por isso, em 1973, precisamente para dar a ideia dos desafios que enfrentou com a sua editora, mas rapidamente alcança os primeiros anos da democracia para mostrar a vivência da sua relação com Sá Carneiro.

Uma revolução social, como descreve a realizadora, que obrigou uma “mulher muito culta, muito discreta”, mas que queria “mudar o mundo”, começando por Portugal, como acrescenta Inês Castel-Branco, a sujeitar-se a “ser amante”, num país dividido entre a ânsia de abertura, o conservadorismo católico e um protocolo moralista.

“Por isso, eu amo tanto aquela fotografia em que eles estão a dar as mãos nas costas. Para mim, tem um simbolismo muito grande. Eles estavam unidos, e mais do que o elogio à Snu , isto é completamente um elogio ao amor. Quando as pessoas amam desta maneira não há nem lei, nem contrariedades que possam impedir este amor e esta urgência que eles tinham em estar juntos”.

Imagem que recria momento verídico da relação entre Snu e Sá Carneiro [DR]
Para Patrícia Sequeira, aqui “não há amor proibido e, sobretudo, eles provaram isso”. “Na verdade, se pensarmos, este amor contribuiu para que ele fosse eleito. O povo que votou nele via alguém capaz de ser transparente ao ponto de ver que ele estava ao lado da mulher que amava.” O país queria “ter essa permissão”social, considera, “identificava-se com aquela situação e encantou-se com aquela história: ela era linda, ele era carismático”.

Para fazer este filme, Patrícia Sequeira optou por não entrar na esfera privada das famílias de ambos. “É muito difícil falar de uma mãe quando se perdeu uma mãe aos nove anos”, começa por dizer. Além disso, consoante a ligação das pessoas, assim era feita uma versão do retrato da personalidade em causa. “Quem era verdadeiramente a Snu? Uma amiga grande amiga dela diz-me o que é que era ela nas amizades, a secretária diz-me como é que ela era no trabalho”, explica a realizadora.

A construção da sua esfera familiar, no filme, é, portanto, reduzida e interpretada pela realizadora, no respeito pelos limites de privacidade que estabeleceu para tratar um universo onde os factos lembrados, acerca de Snu, ficaram nas memórias de infância dos seus descendentes.

“A vida familiar da Snu, no filme, é muito particular. Eles [ela e Sá Carneiro] constroem uma família moderna, uma família que tem um filho dela e um filho dele, a viverem lá em casa. Isto é de uma modernidade incrível. Então eu achei que era bom ir interpretando o que me foi sendo dado pela família, com os cuidados que fui colocando nisso. Fui beber muito a pessoas que a tinham conhecido já no momento em que ela encontra o Sá Carneiro”.

Além dos livros, de toda a informação que leu, Patrícia Sequeira contou também com a ajuda da historiadora Helena Matos na investigação e na validação dos factos. A partir daí foi pegando em pistas e nos “espaços vazios que a história não preencheu” e ficcionou o resto. “Em ficção tenho essa arma fantástica que é ‘eu posso entrar naquilo onde o jornalista tem de ficar à porta.”

Os momentos, no filme, em que Snu e Sá Carneiro estão a sós, são exemplos disso, mas mesmo esses têm sempre alguma âncora nas fontes reais que Patrícia Sequeira usou. “Depois há toda uma liberdade, de mudar os sítios… Se calhar não foram dançar na noite eleitoral ou se calhar não dançaram no local que está no filme, talvez tenham dançado em casa, ele adorava dançar”. É uma forma, sublinha, de poetizar e humanizar a história de amor e o próprio filme.

Retratar a beleza dos anos 70

‘Snu’ é também um filme com um forte cuidado estético, evocando o glamour da década de 1970, no guarda roupa e no décor. Para isso, a realizadora recorreu a locais menos óbvios ou conhecidos do público, como o LNEC ou o Hotel Ritz, em Lisboa, que conservam traços arquitetónicos e de design dessa época.

“Quando se faz um filme que retrata os anos 70, acho que podemos recuperar o nosso património, que ainda existe e que é preciso manter, mas é tão difícil abrir a porta. Nós estamos a mostrar que o LNEC é um sítio espetacular e que faz parte da nossa história”, refere, ressalvando que não inclui determinados aspetos estéticos só pela beleza mas pela mensagem visual que podem trazer a cada cena.

Inês Castel-Branco:”A Snu era tudo menos fria e tinha uma noção de justiça gigante”