“O consentimento sexual não deve ser medido só pela verbalização do ‘Não'”

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Bastará dizer ‘Não’ para provar que não houve consentimento numa relação sexual? E quando as circunstâncias impossibilitam a vítima de se pronunciar não há crime? Sonia Núñez Puente, diretora da Unidade de Igualdade, da Universidade Rey Juan Carlos, em Espanha, trouxe essas e outras questões ao seminário ‘Novos Media, Novas Violências: da Misoginia Online aos Contextos das Resistências’, que se realizou, no passado dia 22 de junho, em Lisboa.

Sonia Núñez Puente e diretora da Unidade de Igualdade, da Universidade Rey Juan Carlos, em Espanha, e esteve recentemente numa conferência, em Lisboa.

A investigadora das questões de género, que falou sobre a temática da violência de género e a disputa do espaço da vítima, baseou a sua apresentação no caso ‘La Manada’ e na forma como foi exposta e descredibilizada a vítima que apresentou queixa, por violação, contra os cinco homens que a abusaram sexualmente, em 2016, nas Festas de San Fermin. Em entrevista ao Delas.pt, Sonia Núñez Puente explica que a indignação generalizada com a última decisão do Tribunal de Navarra, de colocar os cinco homens em liberdade condicional, enquanto esperam recurso da sentença de nove anos de prisão, a que tinham sido condenados, vai obrigar a que a legislação sobre violência sexual seja revista. Uma das alterações que apoia passaram pela proposta, já apresentada pelo partido Podemos, para redefinição do enquadramento do consentimento, considerando as circunstâncias – como o espaço – em que a agressão ocorre e não apenas a verbalização da palavra ‘não’ por parte das vítimas como forma de apurar os casos de violação e abusos sexuais.

Como interpreta a decisão do Tribunal de Navarra de permitir que os membros de ‘La Manada’ saiam em liberdade condicional enquanto esperam pelo resultado do recurso da sentença? Era uma decisão, de alguma forma, esperada?
Creio que tem a ver com esta ideia de reagir contra a justiça popular, como se os juízes dissessem “nós somos a justiça objetiva” (quando não existe tal coisa como a objetividade) e então não vamos dar a razão à opinião pública que está contaminada pelo ativismo, por questões relacionadas com os direitos das mulheres. E, por isso, os argumentos aplicados a esta decisão são puramente legais: a não repetição dos atos, não terem capacidade económica para fugirem de Espanha… Apresenta-se a justiça como um instrumento aparentemente objetivo, quando se constroem, readaptam leis ou ordenamentos jurídicos em função dos contextos sociais. A justiça e a lei devem evoluir e adaptar-se aos tempos, às exigências e aos contextos sociais em que estes julgamentos se realizam, não podem viver à margem.

Alguns partidos que reagiram e condenaram a decisão de imediato, como o partido do governo, o PSOE, e o Ciudadanos, pedem mais formação aos juízes e magistrados, no geral, para lidar com este tipo de crime. É suficiente?
É uma forma, sem dúvida. Mas não apenas para os juristas. Deve ser também para os médicos e para todos os profissionais que trabalhem em qualquer vertente social. Isso é necessário, porque sem perspetiva, sem visão de género… Não se pode ver aquilo para que não se olha. Se não se olha com uma perspetiva de género nunca se vai encontrar esse lado. Sobre os factos provados, uns juízes do coletivo produziram a sua interpretação com uma determinada perspetiva, e outros interpretaram os factos de outra maneira, numa perspetiva diferente. Portanto, a formação é necessária para focar a visão numa perspetiva de género. Mas não é suficiente. São precisas reformas legislativas. É preciso, por exemplo, uma reforma para uma lei sobre violência sexual, que não foi incluída na legislação de 2004, onde se falou muito sobre a importância do problema da violência doméstica. Mas onde estão as outras violências sexuais que sofremos, desde o assédio sexual nas ruas, por exemplo? Isso também precisa de uma regulação. Porque o que antes estava enraizado e se permitia socialmente já não tem razões para se continuar a permitir.

A primeira decisão relativa ao caso ‘La Manada’ – a pena de nove anos de prisão por abuso sexual – também gerou polémica, porque se descartou o crime de violação.
Abuso. E não apenas não se considerou ter havido violação, como não se considerou ter havido agressão.

Na conferência falou do projeto do Podemos para alterar a questão do consentimento sexual.
Sim. O consentimento sexual não deve ser medido só por um consentimento verbal, apenas pela verbalização do ‘Não’. Têm de se contemplar os espaços simbólicos que possibilitem essa verbalização do ‘Não’. Se esses espaços simbólicos impedem que a mulher diga que não porque está aterrorizada – porque há muitas maneiras de intimidar uma pessoa. Se uma pessoa está num espaço limitado, com cinco homens, de estatura física maior, a pessoa pode estar tão aterrorizada e paralisada que não é capaz de verbalizar esse ‘não’. E se não se verbaliza esse ‘Não’ é porque o quis e porque o consentiu. Portanto, trata-se de evitar essa posição redutora da verbalização do ‘Não’ e de abrir esse espaço simbólico de como se organizam as obrigações e as resistências. Quem pode obrigar e quem está na posição de submissão.

No julgamento de ‘La Manada’ houve um escrutínio da vida da vítima, pelos advogados de defesa dos membros do grupo de ‘La Manada’. Há mudanças a fazer, na formação dos profissionais, sobre a imagem que se tem do que deve ser uma vítima?

Nem todas as vítimas são iguais. A apropriação do conceito de vítima, desses cinco indivíduos, por exemplo, para não irmos mais longe, de parte das suas namoradas, das suas famílias, dos seus advogados, de que são bons rapazes, de que estão é a ser vítimas de um linchamento, etc. Eles sim, se permitem ser vítimas. Inclusivamente, no coletivo de juízes não se levou em conta o seu comportamento anterior entre eles, nas redes sociais, no whatsApp.

Mas foi admitido o da vítima.
Sim, para julgar o seu caráter. Quando se fala em violências sexuais, violências machistas, o que o discurso patriarcal faz é singularizar aquele facto. O historial para trás não importa. Mas apenas quando eles são os agressores. Para a vítima, esse historial importa. Importa o que ela era antes, o que sucedeu no momento em discussão e o que fez depois. Porque se foi vítima de uma agressão sexual, não tem direito a ir de férias, a seguir com a sua vida nas redes sociais. É uma dupla aniquilação, uma revitimização. É-se vítima no momento e tem de se continuar a ser aquilo que é entendido como ser-se uma vítima.

Também é um paradoxo se se pensar que, culturalmente, a mulher sempre foi instruída, em caso de abusos sexuais e violação, para continuar com a sua vida e não falar sobre assunto.
Claro. É isso mesmo. Por isso há um vídeo de ativismo feminista, que tem feito muito sucesso em Espanha, que questiona: ‘Diz-me tu como deve ser uma vítima? Não devo denunciar, devo estar calada? Se sorrio é porque não sou uma vítima? Devo estar angustiada? ‘ Ensinaram sempre as mulheres a estar caladas, mas como forma de vitimização, de não exercerem o poder. E também porque é uma vergonha pessoal. Há a ideia de que se algo se passou é porque ela fez alguma coisa para que isso acontecesse. Em relação a esta rapariga, a palavra que se usou mais vezes foi “vaca”. Ela é que procurou o que lhe aconteceu. Quem a mandou entrar naquele portão. Ela é que originou aquilo, porque deu um beijo a um deles. Eles não interessam. O seu comportamento, em grupo, e com aquilo que se pode fazer em grupo, isso não se julga. Ela, por seu turno, deveria ter resistido e se não resistiu é porque gostou, como disse um dos juízes. É profundamente contraditório. Não apenas como se julgou, mediaticamente, uns e outros, mas sobre o que significa ser vítima quando se é mulher e quando são um grupo de homens. Eles tiveram todo o direito a comportar-se como vítimas, e a que não se julgasse o seu comportamento anterior como um padrão. Enquanto o dela…

Qual é o sentimento da sociedade espanhola sobre o desenvolvimento deste caso?
Bom, além das manifestações organizadas, a ministra da Justiça, do partido que está agora no poder, o PSOE, disse que é preciso haver formação para as questões de género. Há determinados limites a partir dos quais já não é fácil voltar atrás. E este é um deles. Por isso, vai ser difícil não legislar. Aconteceu quando o ex-ministro Alberto Ruiz-Gallardón [PP] quis reverter a legalização do aborto. Ele não sabia que o contexto já não era o mesmo, que a sociedade espanhola já não ia voltar atrás. E neste caso é igual. Não são duas pessoas, são manifestações em muitos lugares de Espanha, daquelas que exigem uma mudança na lei, e creio que mais cedo do que se imagina vai haver essa mudança.

Acredita que o facto de Espanha ter agora um governo maioritariamente feminino pode significar mudanças nestas matérias de violência e desigualdade de género?
Sem dúvida, se bem que este governo tem uma duração muito curta. Mas está a mostrar aquilo que pode ser feito. E creio que é um gesto determinante, não só o facto de haver um maior número de mulheres – porque a desculpa antes era que não havia mulheres preparadas ou que quisessem esse papel; estão muito preparadas e querem, como se vê –, mas também o facto de o Ministério da Igualdade ter sido recuperado, ser elevado ao nível da vice-presidência e de o tornar transversal. Isto significa que se pretende que as políticas [de género] sejam transversais [às outras pastas]. Quando houver eleições, se este governo se mantiver no poder, creio que se poderá abrir uma segunda etapa, que continue a iniciada por Zapatero, com a qual se fez a lei de 2004, a lei da igualdade, a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Até porque não se trata de uma posição só do presidente do governo, ou da vice-presidência, mas de cada membro do governo. Os símbolos e os gestos terão de ser acompanhados de medidas. Mas primeiro, precisamos desses símbolos e gestos, de forma a que se normalize esta realidade. Se há uma maioria de ministras, por que não começar por dizer Conselho de Ministras em vez de Conselho de Ministros? Mas também acho que há que trabalhar no aspeto educacional. Porque para conseguir cidadãos e cidadãs com esta perspetiva de género, não o podemos fazer quando já têm 40 anos. As crianças quando não são socializadas na desigualdade de género, vêm as coisas muito mais próximas daquilo que realmente são, do que quando crescem. É muito importante intervir logo nessa altura, porque sabemos que é a chave para educar cidadãos e cidadã comprometidos com a igualdade, que é afinal é uma questão de Direitos Humanos.

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