Sónia Tavares: ‘Custa-me levar desaforos para casa mesmo que não sejam meus’

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Fotografia: Paulo Spranger/Global Imagens

Os The Gift estão de regresso com novo disco e novos concertos. ‘Verão’ é o mais recente capítulo da banda de Alcobaça, um capítulo que dá seguimento direto a ‘Primavera’ e que, garante Sónia Tavares, em entrevista ao Delas.pt terá um ‘Outono’ e um ‘Inverno’. Entretanto, o sucessor de ‘Altar’ volta a contar com a produção de Brian Eno e traz dois temas em português, um deles a canção que dá título ao disco e que fecha o seu alinhamento.

Os concertos de apresentação das novas músicas são espetáculos pensados para auditórios, “muito calmos, solenes até”, diz a vocalista dos Gift, que mostram ‘Verão’ esta quinta-feira, na Aula Magna, em Lisboa, no dia 12 de maio, na Casa da Música no Porto, e no dia 17, no Teatro Académico Gil Vicente em Coimbra.

Além do novo disco e da mais recente digressão, na conversa com o Delas.pt, Sónia Tavares fala também dos desafios que se colocam aos artistas nacionais, das emoções que é preciso gerir depois da obra criada e do julgamento e apreciações exteriores, da Internet e das redes sociais e da forma como as figuras públicas lidam com a interação que estas promovem. Conhecida pela sua frontalidade, a cantora admite que lhe custa levar “desaforos para casa” e que, por isso, responde muitas vezes a comentários, mesmo quando estes não são dirigidos a si.”As figuras públicas também são seres humanos e têm o mesmo direito de se defender e de ripostar quando são agredidas”, afirma. Defende que Conan Osiris “não é pior pessoa” por atuar em Israel, apesar do apelo de Roger Waters para que não o fizesse, como forma de protesto pela situação dos palestinianos, e critica aqueles que chamam as feministas de “feminazis”.

Nesta entrevista, Sónia Tavares fala ainda sobre como é viver com fibromialgia, da sua admiração por Lady Gaga e recorda a importância do projeto ‘Amália Hoje’, que assinala 10 anos em 2019.

 

Fotografia: Paulo Spranger/Global Imagens

Este disco tem o nome de ‘Verão’, mas soa – e o próprio artwork parece refletir isso -, a um verão mais melancólico. Por que é que quiseram ter este um disco chamado ‘Verão’ com estas características?
O ‘Verão’ surge na continuação do nosso disco ‘Primavera’. É um conceito que o Nuno [Gonçalves] já tinha na cabeça desde que fez o ‘Primavera’. Não sabíamos muito bem quando porque achamos sempre que são discos de transição. Portanto, o próximo não terá necessariamente de ser o ‘Outono’. Haverá qualquer coisa antes do ‘Outono’, mas vai haver um ‘Outono’, com certeza, e um ‘Inverno’. E foi pensado precisamente neste conceito dos quatro. Seguindo a linhagem do ‘Primavera’ é certamente um disco mais melancólico, em tons mais escuros. O que não quer dizer que seja um disco triste. É efetivamente um pouco mais melancólico, mais denso. É o verão visto por nós. Não é um verão de Ibiza, é um verão de quem já tem 42 anos.

Ainda assim com muitas impressões.
Este disco acabou por tomar um pouco conta do processo todo, as canções pareciam que tinham vida própria e começámos por querer fazer um ‘Verão’ suave e leve…simples. E, de repente, escalámos para uma coisa muito mais densa, com orquestrações – e falo mesmo de orquestra – muito mais complexas. O ‘Verão’ tornou-se num ‘Verão’ gigante, mas ainda assim introspetivo

Voltaram, neste trabalho, a contar com a colaboração de Brian Eno. Que tipo de participação teve ele neste álbum?
Comparando com o disco anterior, o ‘Altar’, que foi feito de raiz com o Brian Eno, à exceção de uma ou outra música, desta vez não, as canções já estavam construídas, praticamente feitas. Aquilo que o Brian Eno fez foi abrilhantar, fazer aquela desconstrução que ele costuma tanto fazer nas canções, mas nunca lhe tirando a essência. Ajudou-me a escrever algumas letras, foi mais por isso que eu também o procurei, porque eu achei que o disco anterior estava tão bem escrito que este não podia ser pior. E para isso eu tinha de contar outra vez com aquela imaginação toda, juntamente com a minha. A participação foi diferente, mas não menos importante.

No ‘Altar’ não tinham nenhum tema em português, apesar de o Brian Eno até vos ter desafiado a isso como contaram em entrevista ao Delas.pt, nessa altura. Agora têm dois. Foi ele que vos desafiou, foi desejo vosso?
Não foi por imposição ou pedido de ninguém. Nós queríamos já fazer uma canção em português há mais tempo. Sentimos falta no outro disco, mas achámos que não se justificava, mas neste sim. Na continuação, lá está, do ‘Primavera’, e, sobretudo, porque é muito específico para o nosso público em Portugal. Sabíamos que este disco ia ter um impacto mais forte junto do nosso público que já nos acompanha há tantos anos e então decidimos que pelo menos uma canção seria em português, a outra foi a criatividade que a fez surgir.

Apesar de o disco já ter um conceito que o orienta, introduziram elementos que não estivessem previstos, durante o processo de composição e produção?
Lá está, as coisas foram fluindo e as canções acabaram por exigir elas próprias coisas muito específicas. E fomos escalando, acrescentando e fazendo… Os nossos discos são sempre um imprevisto. Nunca se sabe como é que acabam [risos].

Disse que vai haver um ‘Outono’ e um ‘Inverno’. Os conceitos desses discos já estão pensados?
Eles vão acontecer de certeza. Como? Não faço ideia. Nenhum de nós sabe, e, muito provavelmente, só quando chegarmos à execução e começarmos a trabalhar nisso é que o conceito se vai formar.

Até porque, como disse, costumam lançar outros discos pelo meio.
Exatamente. E não vale a pena estar a definir um conceito para um disco, enquanto se está a promover e a fazer outro. Porque, provavelmente, se o fizéssemos ou pensássemos agora, seria muito na continuação deste [‘Verão’] e o ‘Outono’, se calhar, pede uma coisa completamente diferente.

Um ‘Outono’ festivo, por contraponto e este ‘Verão’ mais melancólico?
Talvez não, porque eu não sou uma pessoa muito festiva e o Nuno também não, apesar de ele se convencer a ele próprio que sim [risos]. Não sei que tons terá o ‘Outono’, muito menos o ‘Inverno’, mas eles vão aparecer.

“Se um dia os The Gift acabarem, dedico-me à jardinagem ou a uma coisa que não mexa tanto com a alma”

Já fizeram vários concertos para apresentar este ‘Verão’ – seguem-se agora Lisboa e Porto – onde revisitam também alguns temas do ‘Primavera’. Como estão a correr?
Muito bem. São concertos, efetivamente, de auditório, muito calmos, solenes até – não é aquela alegria contagiante que andámos aí a espalhar com o ‘Altar’. Mas tem estado a correr muito bem. Sobretudo os fãs mais antigos veem neste disco uma proximidade às raízes, mas agora de uma forma adulta.

Brinca muitas vezes com aquilo que diz ser o seu mau feitio, mas admite que no fundo é um coração de manteiga. O que é que a tira realmente do sério?
A estupidez das pessoas. Basicamente, é isso que me tira do sério. E a ignorância. Quando digo ignorância, não falo em cultura, falo em poder enxergar um pouco mais aquilo que lhes aparece à frente dos olhos. E com a Internet e as redes sociais, acho que as pessoas estão a tornar-se piores e não vejo um bom futuro para a humanidade.

Em que é que sente, ou nota mais essa ignorância.
São más, gostam, sabe-se lá porquê, de ser más com as pessoas que têm alguma visibilidade, com estas pessoas vê-se mesmo que é por pura maldade, por puro deboche. E uma coisa que me desagrada particularmente no ser humano é essa capacidade de maldade, só porque sim.

Já a vimos inclusivamente vir a público defender outras figuras conhecidas, quando foram alvo de comentários maldosos e a responder a comentários. Já se arrependeu de responder a algum?
Nunca me arrependo de nada. Fico depois a pensar se devia ter sido mais branda ou não, mas custa-me porque vejo que as figuras públicas, vá, ou algumas delas não gostam de responder às pessoas, ou não fazem caso – e se calhar é o que elas fazem de melhor – ou não ligam e não dão azo a que a polémica se espalhe e então acabam por também não se poder defender. As figuras públicas também são seres humanos e têm o mesmo direito de se defender e de ripostar quando são agredidas. E acho que o medo de serem levadas a mal faz com que essas pessoas não respondam e não se justifiquem e isso custa-me. Custa-me levar desaforos para casa mesmo que não sejam meus. Então vou lá e respondo por elas. [risos]

Enquanto figura pública não sente esse constrangimento que outras poderão sentir, nesses casos que mencionou.
Sinto, obviamente, às vezes, mas não sinto nada, nem ninguém a impedir-me de dizer aquilo que me apetece – aquilo que me apetece, que eu acho que é correto, aquilo que me apetece, calma! Entre o apetecer, a liberdade de expressão e o sermos todos muito diretos e dizermos todos o que nos apetece há os perfeitos ‘assholes’ [idiotas] e maus que estão a dizer o que dizem porque querem atenção e isso é muito diferente.

“Detesto que as pessoas agora achem que as feministas são as “faminazis”. Se não houvesse radicalismos, o balanço da coisa não era equilibrado”

 

E com o que é que se derrete facilmente na Internet, com gatinhos? [risos]
[risos] Gatinhos! A minha Internet é só gatinhos. Gatinhos, basicamente, mesmo. O mundo, para mim, era dos gatinhos.

Mas também há coisas boas nos seres humanos. O que é que a tem enternecido ultimamente?
Nada! É impressionante! Não sou uma pessoa que saia muito e viajo só em trabalho, portanto rendo-me um bocado às redes sociais, de forma a também poder socializar e estar a par das coisas. E a única coisa que ainda me enaltece a alma é ver, por exemplo, pessoas absolutamente altruístas naqueles movimentos contra a morte de animais e a chacina de animais selvagens, ver que há pessoas que se interessam por isso e que, se calhar, o planeta ainda não está condenado… Mas acho que são tão poucas.

E os movimentos de mulheres ou feministas? Tem feito vários posts sobre essas questões.
Tenho, tenho. Eu detesto que as pessoas agora achem que as feministas são as “feminazis”, como algumas gostam de chamar. Se não houvesse radicalismos, o balanço da coisa não era equilibrado. As pessoas esquecem-se que essas feministas a que chamam de “feminazis” têm de ser como são se querem levar a sua palavra mais além, como foram as sufragistas. Sabemos que se podemos votar hoje em dia foi porque houve, pelo menos, uma feminista que andou a fazer barulho, se podemos ir não sei aonde de minissaia foi uma feminista que andou a fazer barulho. De outra forma as coisas não aconteciam, a posição não pode ser “suíça”, tem de ser um pouco mais forte para que as coisas se façam, para que se façam ouvir. Eu apoio o ser humano, não apoio nem o homem, nem a mulher, em particular. Mas se falarmos de violência doméstica, invariavelmente vamos parar às mulheres. E daí a minha posição. Se fosse ao contrário, também falaria. Mas depois é complicado dar uma continuação a todas as ideias e vontades. Porque, se por um lado, dou a cara contra a violência doméstica, depois vem um canal de televisão português que põe um programa absolutamente machista e retrógrado. Portanto, andam uns a puxar para um lado, para outros puxarem para outro. Está um bocado complicado, mas eu vou fazendo o que posso.

Vivemos numa época de contradições, de certa forma?
Mais do que nunca. Eu acho que as pessoas falam, “estamos em 2019 e tal, e tal…”. Mas eu acho que as pessoas andam a perder muitas carruagens e não estamos assim tão à frente como achamos que estamos.

Estamos em vésperas de mais um festival da Eurovisão, que se realiza em Israel. O Roger Waters escreveu uma carta aberta ao Conan Osiris a pedir-lhe que não fosse – como forma de protesto contra o que se passa na Faixa de Gaza e com os palestinianos…
Ele que vá lá fazer boicote, que tem dinheiro, tem nome, tem uma exposição imensa – toda a gente sabe quem ele é. Por que é que tem de estar a chatear o Conan Osiris, ou quem quer que seja. Eu percebo a intenção. É uma tomada de posição…

O Brian Eno também a defende.
Sim, o Brian Eno… Mas eles que vão para lá. O Brian Eno, o Roger Waters, esses todos que são grandes que se façam ouvir, que puxem dos galões, que façam qualquer coisa. Agora, estarem a por as pessoas entre a espada e a parede, só por uma questão de tomada de posição…O rapaz está a fazer pela vida, como todos nós que andamos aqui, que não somos o Roger Waters, e por muito que nós abracemos a causa, há coisas que são impossíveis, e não acho que o Conan Osiris seja pior pessoa por atuar em Israel.

Se o Brian Eno pedisse aos The Gift para não atuarem em Israel, por exemplo?
Eu tinha de ir atuar a Israel, o Brian Eno pode não ir atuar a Israel. Eu, é indiferente. Lá está, se o Conan não fosse atuar a Israel, por causa disso tudo [que é referido, politicamente], ninguém iria notar que ele não foi, não iria fazer diferença absolutamente nenhuma, porque o Conan lá fora, infelizmente, ainda não é assim tão conhecido, não vai fazer mossa absolutamente nenhuma e vai ficar a ver navios quando se calhar até poderá ganhar [o concurso].

Por cá, a música do Conan Osíris desperta paixões e aversões, parece não haver meio-termo. Qual é sua opinião sobre este artista?
Eu acho-lhe imensa piada. Simpatizo com a personagem. Real ou não, parece-me genuína. A música, enfim, ele que me perdoe, não acho “a última coca-cola do deserto”, mas acho diferente, tem atitude. E, ao contrário do que muitas pessoas pensam, eu acho que o Conan Osiris escreve muito bem. “Eu parti o telemóvel a tentar ligar para o céu” é uma coisa lindíssima e poética.

“Por muito que nós abracemos a causa, há coisas que são impossíveis, e não acho que o Conan Osiris seja pior pessoa por atuar em Israel”

 

Como é que olha para o panorama da música portuguesa atual?
Não olho.

Mas não gosta?
Não consumo, não oiço. Não há uma banda que eu diga que me enche as medidas…Gosto dos Moonspell por afinidade. Mas sei que a música portuguesa está bem, está viva e o hip-hop cada vez a crescer mais e os cantautores também a saírem-se bem. Desejo a maior felicidade a todos, eu é que não aprecio.

E há espaço para todos?
Acho que sim, sempre houve, por que é que não há de haver agora? São as pessoas, o público, que põem uma coisa cá em baixo, para por outra lá em cima. E dizer, por exemplo, “o rock morreu!”. Não é verdade. Pode, neste momento, estar um bocadinho mais em baixo, mas não morreu. Calma! Não vamos generalizar as coisas, até porque não somos americanos. Aqui há mesmo espaço para tudo, basta que quem esteja atrás da crítica, dos jornais, etc., dê a devida atenção a toda a gente, sem exclusão de partes. Não há parentes pobres aqui na música, há artistas que são levados menos em conta.

“[Este disco] é o verão visto por nós. Não é um verão de Ibiza, é um verão de quem já tem 42 anos”, diz Sónia Tavares. Fotografia: Paulo Spranger/Global Imagens

E há também projetos que promovem o cruzamento entre diferentes géneros e músicos. Há 10 anos houve um que participou, o ‘Amália Hoje’, com grande impacto no público e também na sua vida. Como é que recorda essa experiência? Repetia-a?
Ah, sim! Sim, porque as pessoas com quem o fiz são fantásticas. É o meu Nuno de sempre, é o meu marido [Fernando Ribeiro, vocalista dos Moonspell], é o Paulo Praça, que toca comigo. Só por aí vale a pena subir ao palco e é sempre uma diversão. E depois são as canções da Amália e eu acho que o Nuno deu-lhes uma volta muito gira e muito interessante e se ele quiser voltar a fazer…Das coisas que mais prazer me deu na vida foi fazer o ‘Amália Hoje’.

Mas, segundo li, não gosta muito de fado.
Não é o não gostar, não aprecio. Gosto da Amália.

Como é que se trabalha um género que, à partida, não se aprecia tanto?
Não se trabalha [risos], até porque o Nuno pediu-me para eu cantar canções pop e ele apresentou-me canções pop. E disse-me: “não oiças muito os fados, porque eu não quero que copies os fados”. E assim foi. Eu tive uma audição nada de especial para os fados que não conhecia, para poder dar o meu cunho.

Voltando ao disco ‘Verão’ e à respetiva tournée, como é que têm sido os concertos para a Sónia, uma vez que, e é público, sofre de fibromialgia? Tem sido uma fase particularmente exigente para si?
Felizmente, estes concertos têm sido um pouco mais calmos. Todo o ambiente e a exigência – não a vocal, porque essa é sempre a mesma –, pelo facto de ser um pouco menos dançável, de não haver aquela excitação toda, permite-me poder trabalhar sem ter tanta preocupação com o como é que vou estar no dia seguinte. Portanto, tem corrido bem.

Nos outros concertos, como é que se sentia?
Era sempre imprevisível. Posso andar uma semana a fazer concertos de seguida e estar ótima, e, de repente, ir passear o meu filho ao parque e ter a sensação de que me caiu uma bigorna de 500 quilos na cabeça. Portanto, é sempre muito imprevisível e eu vou gerindo da maneira que posso e não vale a pena estar a adiantar soluções quando não sei o que é que vai acontecer.

É uma condição que afeta mais as mulheres e sobre a qual não se sabe muito. E é invisível.
Sim, é complicado e às vezes perguntam-me: “Mas então e as pessoas que não têm uma profissão como a tua?”. A minha exige-me imenso fisicamente, mas como já estou tão habituada a fazer o que faço… Era como quando estava grávida e a minha médica me dizia que não tinha de mudar a minha vida só por estar grávida, devia continuar a cantar e a fazer o que fazia, porque era a isso que o corpo estava habituado e o bebé não estranharia. E é um bocado por aí. Eu como fui sempre cantora e tenho sempre andado nestas andanças sei reconhecer os sintomas. Depois, posso ter uma semana cheia de trabalho e depois ter uma semana livre em que posso recuperar. Há quem não possa. E do que vejo, e tenho lido, muitas pessoas não podem ter um emprego ou um trabalho porque não conseguem, não sabem se no dia seguinte conseguem ir trabalhar ou não.

Considerando isso, preocupa-a o facto de cada vez mais os músicos dependerem dos concertos, porque se vendem menos discos?
Sim, isso acontece já há algum tempo. Não é que seja preocupante, exige-nos o triplo do trabalho. Nós vivemos, bandas médias – não estamos a falar dos U2 – vivemos, sobretudo, dos concertos. O dinheiro gerado pelos discos, desde sempre, ou vai para as editoras, e os músicos têm uma pequena percentagem mínima, ou não vendem assim tanto para que os músicos possam fazer vida só da venda de discos. É tudo muito mais desafiante até em termos de criatividade, mas as coisas vão-se fazendo. É efetivamente um virar da história, mas não é o fim do mundo.

A Lady Gaga também sofre da mesma condição. Partilha muitas vezes posts que mostram a sua admiração por ela. O que é lhe admira mais?
É curioso, porque ela não anunciou há muito tempo que tinha fibromialgia. Mas eu já gostava dela. Gosto dela, da pessoa, da mulher, gosto que ela seja uma voz ativa em tantas coisas importantes. Faz falta pessoas que têm a visibilidade que ela tem venham dizer às outras isto ou aquilo. Deve ser uma mulher trabalhadora, com uma garra fora do comum. Já deve ter sido achincalhada por meio mundo, mas continua ali resiliente. É mais a sua força e resiliência aquilo com que me identifico nela, não tanto com a música. Gosto por simpatia, diverte-me, distrai-me, mas é sobretudo enquanto mulher.

“Posso andar uma semana a fazer concertos de seguida e estar ótima e, de repente, ir passear o meu filho ao parque e ter a sensação de que me caiu uma bigorna na cabeça.”

Ver-se ia a fazer um filme, como fez a Lady Gaga, ou uma participação no cinema?
Não, não tenho ambição nenhuma de ser atriz.

E uma banda sonora?
Ah, isso é diferente. Isso, sim. Mas sozinha não, sempre com o Nuno.

Na possibilidade de fazer projetos fora dos Gift, vê sempre o Nuno Gonaçalves como seu parceiro?
Sim, sim. Se um dia os The Gift acabarem, dedico-me à jardinagem ou a uma coisa que não mexa tanto com a alma.

O que é que mexe mais quando se faz música?
São as pessoas. Na realidade, são as pessoas que fazem andar isto tudo. São elas que nos motivam ou desmotivam. A vida de um músico ou de um artista anda sempre um bocado tabelada pela opinião. Num dia está ali e no outro dia, sem explicação nenhuma, está acolá. E gerir isto tudo, durante uma vida inteira, deve ser muito complicado. Eu falo disto numa escala pequena. Imagino o que sentiram o vocalista dos Linkin Park ou dos Prodigy, que estavam numa escala muito maior. Creio que nessa dimensão se deve sofrer ainda muito mais.

Falta algum acompanhamento psicológico a estas profissões?
Isto é a nossa arte, sai-nos do âmago, sai-nos da alma. É uma coisa muito particular, muito pessoal. E depois disso ser julgado é muito complicado, porque nós fazemos com a melhor das intenções, com o maior dos amores, das vontades e depois as pessoas conseguem estragar tudo.

O sistema de saúde devia estar mais sensibilizado para as profissões da arte, mais expostas publicamente, e para os seus impactos psicológicos?
Talvez. Tudo é importante, da mais pequena coisa à maior. E às vezes são estados de espírito tão densos que os outros nem sempre se apercebem dessa densidade toda, onde a pessoa se fecha, e é muito mais complicado ajudar. Não sei qual será a solução, mas sei que é preciso ter uma força de espírito e de vontade para andar nesta vida, é. Sobretudo, quando se é pobre [risos]. Se a pessoa é rica, paciência. Falam mal de mim, quero lá saber! Não interessa, sou rica [risos].

Mas também se diz que as artes e a música, em particular, nos podem salvar desses estados mais densos. Que música ou músicas ouve para ficar mais bem-disposta ou para apaziguar aqueles estados de alma?
Se é para deixar bem-disposta, a Lady Gaga, ou todo um role, se estiver mais em baixo, invariavelmente, vou parar à Björk.

Que expectativas tem para este novo disco e para os concertos que ainda se avizinham?
Não tenho expectativas nenhumas, o que é ótimo porque assim já não me desaponto. A ideia é ir com a corrente. Temos imensos concertos marcados, o verão também já cheio. É mais um disco, é mais um ano, é mais uma digressão.

Há planos para tocarem lá fora, de o levarem ao Brasil, por exemplo?
Este ano não, mas para o ano, se houver oportunidade, sim.