Estou como o tempo

Era a resposta aos dias cinzentos que ouvia da minha avó, quando lhe perguntavam sobre a “saudinha”.

Mas “estar como o tempo” não era só estar com uma disposição nublada, ou melancólica. Não tinha a ver com fases menos felizes da vida, nem com quereres ou vontades.

O tempo cinzento, afinal, sentia-se mesmo a sério, sem que se quisesse, no corpo, nos ossos, nos músculos. Não me demorou muito tempo para entender o conceito na sua totalidade.

A minha avó tinha artrite reumatoide, e não fibromialgia, como eu. Nem nunca sequer, na altura, se tinha ouvido falar de tal coisa. Fosse o que fosse, a verdade é que a mudança de tempo lhe trazia dor. Percebi cedo que, a mim também.

Eu era daquelas miúdas que adivinhavam a chuva.

Normalmente, o meu joelho esquerdo conseguia sabê-lo 2/3 dias antes. Hoje, como já sou batida no assunto, consigo ir até aos 4 dias, avisada pelas mais distintas partes do corpo.

Já adivinhei chuva na China, na Austrália, nos Estados Unidos e Canadá, no Brasil e claro, nalguns países europeus. Em Portugal, consigo avaliar isoladamente cada cidade e fazer uma previsão mais específica. O meu marido chama-me borda d’água e os meus colegas dizem que eu sou daqueles galos que mudam de cor.

A minha avó ensinou-me a ouvir o vento e estar atenta às árvores e aos animais, truques que ela tinha desenvolvido para que, em tom de antecipação, se pudesse de alguma forma proteger. “Está o vento a puxar a chuva”; e era certinho.

Do coaxar das rãs, às vacas que se deitavam para sentir a terra, ou ainda, num dizer mais exótico, “Vem aí Nossa Senhora a cavalo num burro” quando se tratava de trovoada e

o céu ficava amarelado, eram tudo sinais que tinha aprendido a ler na natureza: “Está a chover e a fazer sol, estão as bruxas no farol, embrulhadas num lençol, a comerem broa mole”, era a cantilena que entoava para me fazer antecipar um arco-íris, acompanhado de uma pontadazita num joelho. Assim, nem tudo era mau. Um debutar no baile da dor, mas com um vestido bonito.

Duas décadas depois, de exames, despistes e respostas vagas, de sintomas que apareciam, outros que se agravavam e um filho, é me diagnosticada fibromialgia. Já tinha lido vagamente sobre a doença, numa altura em que conheci uma Senhora mais velha (bastante esclarecida) por sinal, que era doente de fibromialgia. Como automaticamente me reconheci nos sintomas, entrei em negação e encerrei a questão. “Nem pensar, eu não tenho nada disto”. É que, também aquela Senhora, ia estando como o tempo.

A gravidez potenciou o perímetro da minha cintura, tanto quanto os sintomas da doença e expôs um puzzle clínico, ao qual só faltava encaixar as peças. Ou um maestro, que conduzisse as infinitas partituras até ao fim da sinfonia, se quiserem ver as coisas por um lado mais romântico. Já não dava mais para tapar o sol com a peneira, neste caso, a chuva.

Tive a sorte de encontrar um médico especialista em medicina interna, que tão sabiamente uniu os pontos, nas duas horas que passou a ler o meu historial e que, meia dúzia de beliscões, aplicados estrategicamente, ao estilo “-Doi aqui?

“-Dóoooooi!”, me anunciou o veredicto.

Custou-me aceitar, mas ao mesmo tempo, desenrolou os nós no meu cérebro que eu não sabia desatar. Os meus e os de quem me é próximo. Li, então, alguma coisa mais a fundo sobre o assunto, não muito, o suficiente para perceber, de uma forma geral, como se processa tudo. O suficiente para me levantar um véu, que escondia outro mar de perguntas e nós de marinheiro, que ainda hoje não consegui aprender como se desatam. O suficiente para perceber que, há doentes que não são levados a sério e outros que não são doentes a sério.

O ceticismo, a desinformação e o pouco conhecimento sobre a doença, leva médicos a desacreditarem indivíduos doentes e indivíduos comuns a acreditarem que são doentes.

É injusto. Injusto quando se procura um especialista da dor e ele nos diz para esquecer a tanga da fibromialgia, que afinal é estômago. E também é injusto, quando alguém me diz que sofre de fibromialgia, só porque tem andado com pouca vontade de se levantar da cama e o médico é que não presta, ou, tem má vontade, por não querer assumir o diagnostico de algo tão evidente. “Filha, eu vontade de me levantar da cama, tenho, o problema, é que não consigo” Por favor, não confundam tudo.

Esta espécie de apropriação blaze de maleitas alheias, por quem, provavelmente, só ouviu falar delas no Sr. Dr. que vai aos programas televisivos da manhã, ou num meme do instagram, serve muitas vezes para se justificar opções infelizes que nada têm a ver com com uma doença propriamente dita, minimizando muito a situação de quem realmente sofre.

Bem sei que, cada caso é um caso, cada um com os seus alertas. Não são precisas pantominices como, saber adivinhar a chuva, para que, alguém que tenha um mínimo de informação sobre o assunto, se auto diagnosticar. Mas também não vamos querer ser mais papistas que o Papa. Resumindo, não gosto de nos ver assim, desacreditados por estas duas facções.

Não que me interesse para nada a opinião dos outros (para além dos que amo), mas se conta para estatística e estorva o estudo de algo ainda tão desconhecido, que se calem para sempre, Doutores e impostores.

A sério. Digo-vos já que, apesar de tomar medicação para o resto da vida, vou ter de vive-la na incerteza se consigo ou não trabalhar no dia seguinte, ou vestir o meu filho para ir à escola quando o Fernando não está. Logo eu, que não posso meter baixa. Aliás, já doseio a minha simples existência, que nunca se sabe se vou precisar de força extra para tomar um simples duche.

Afinal, que me interessa prever a chuva se não a posso evitar.

Serve hoje este chuvoso tempo de antena, não para falar das minhas maleitas, nem para mandar calar ninguém, antes pelo contrário! Eu quero é que se fale, que apareçam as Lady Gagas da vida a dar os alertas de que isto é sério, que eu, nunca tive jeito para pregar. Mas, que se fale com algum conhecimento e que se ouça com alguma abertura de espírito.

A informação é preciosa para os que vivem com a doença e sobretudo, para aqueles que vivem com quem sofre. Porque não é pera doce. Nem uma coisa, nem outra.

Longe de mim querer melindrar os vossos dias cinzentos, mas isto é importante e bastante mais complexo do que se tem em conta, no entanto, fácil de entender, como diz a outra. Envolve dor, muita dor, envolve privação de sono, cansaço, angustia, depressão, culpa, solidão. Vive-se com a necessidade constante de justificar que, não é preguiça, é doença e ao mesmo tempo, ter a habilidade de não justificar tudo com ela, porque, ainda que seja a verdade, pode ser mal interpretado, como desculpa para a preguiça.

É uma ginga joga de sentimentos sempre que muda o tempo. Porém, a sensação desconfortável que se tem, quando alguém nos diz que temos que ter força de vontade e assim, denunciando que não faz a mínima ideia do que está para ali a dizer, é transversal às estações do ano. Vontade tenho, o que me falta mesmo, é força nas canetas.

Como já não existem meninas do boletim meteorológico, não consigo ainda entender, neste caso, qual é o bright side of life para onde tenho que olhar, como a minha avó me ensinou. Resta-me ir viver para um país de sol brilhante 365 dias por ano, até encontrarem a cura, se existir. Até ter dinheiro para isso, vou estando atenta ao vento que sopra em Alcobaça e a uma ou outra Cornélia pestanuda que avisto no caminho para os concertos, que as rãs, há muito que se COAXatearam com as minhas lamúrias.

Sónia é vocalista dos The Gift