Susana Bettencourt: “Se queremos igualdade não podemos ser tratadas como flores”

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A designer portuguesa Susana Bettencourt cresceu nos Açores, na Ilha de São Miguel, mas foi em Londres, no Reino Unido, que procurou tornar-se uma profissional de excelência na área da moda. Nas duas escolas onde estudou, a Central Saint Martins College of Art and Design e London College of Fashion, exigiram que vivesse só para a moda, para que pudesse tornar-se uma das melhores do mundo.

Hoje cria coleções com o material que fez com que se apaixonasse pela área e já se tornou a sua imagem de marca: a malha. As suas clientes são, sobretudo, mulheres descontraídas e práticas que adoram quimonos, sweatshirts e vestidos.

Na sexta-feira, 19 de outubro, Susana Bettencourt apresentou no Portugal Fashion a sua coleção para a primavera/verão de 2018. Com o nome de “Creative Resistance”, o conjunto de coordenados foi inspirado num movimento de luta pela igualdade nos Estados Unidos.

Em entrevista ao Delas.pt antes do desfile, a designer que já vestiu a cantora norte-americana Lady Gaga falou-nos das dificuldades que tem vivido durante a carreira, explicou porque não é feminista e revelou o que trouxe de novo com esta nova coleção.

De onde veio o seu gosto pela moda?

Costumo dizer que o meu gosto começou nas malas.

E continua nas malhas.

Sim, a moda acaba por ser uma forma de me expressar dentro das malhas. Sempre que estou a pensar na coleção começo pelas malhas, pelo padrão, pela manipulação de superfície e só depois vêm as formas. Até a minha forma de trabalhar e a criatividade seguem primeiro as malhas.

A Susana licenciou-se em design de moda em Londres. É importante, para quem está nesta área, ir estudar para o estrangeiro?

Penso que já temos em Portugal muitos cursos e escolas em que, se a pessoa for dedicada e quiser mais além, vai sempre conseguir. No entanto sei, e não posso deixar de admitir, que as escolas em que estive [Central Saint Martins College of Art and Design e London College of Fashion, ambas em Londres, no Reino Unido] abriram-me muitas portas, criaram-me profissionalismo e deram-me algumas ideias do que se passa nas feiras em termos de preços, logística e organização. Foi tudo muito prático e, por isso, venho mais calejada. A faculdade lá é muito mais prática e menos teórica. Sinto que cá, onde agora sou professora em várias escolas, temos de pressionar mais e subir a fasquia de exigência, não nos trabalhos em si ou daquilo que se está a ensinar mas no que toca à prática. É preciso mais trabalho em menos tempo. Lá fora fazia muitos mais trabalhos, de três em três semanas tinha coleções para apresentar. É mesmo suposto vivermos só para aquilo e acredito que isso faz a excelência.

Ontem tivemos oportunidade de ver o trabalho de vários jovens estilistas que apresentaram as suas coleções na plataforma Bloom, do Portugal Fashion. Dos trabalhos que conhece e do contacto que tem com os designers mais novos, o que podemos esperar para o futuro da moda nacional?

Penso que a crise acabou por nos trazer, de alguma forma, coragem. Temos várias marcas novas e designers novos que estão a apresentar trabalhos. Claro que temos de pensar que o design português também está em marcas grandes, na indústria, e espero que o futuro nos traga mais colaboração entre a indústria e os designers mais novos. Quando, finalmente, juntarmos as sinergias vamos finalmente conseguir distinguir-nos como país. Enquanto estivermos a trabalhar cada um para seu lado nunca vamos ficar excelentes. Estamos cada vez melhor, fazemos concorrência a outros países e exportamos imenso, mas a verdade é que neste momento temos o dinheiro do lado da indústria, que está a aumentar imenso, e depois temos designers como eu em grande esforço, em que isto acaba por ser um quinto do nosso trabalho. Temos de fazer quatro ou cinco trabalhos em simultâneo para poder sustentar o sonho. Não sei se a geração mais nova tem esse espírito de sacrifício.

Antes de se lançar em nome próprio trabalhou para outros designers portugueses como a Alexandra Moura e a Fátima Lopes. O que ainda tem delas nos trabalhos que tem apresentado?

Quando estive na Fátima Lopes era muito novinha, acabei por fazer só um projeto de marketing que durou três meses, foram umas férias no primeiro ano de faculdade. Na minha universidade havia férias, mas durante esse período tínhamos de fazer um estágio ou trabalho, levar qualquer coisa. Se chegássemos lá sem ter feito nada durante as férias éramos convidados a sair. Lá só ficam com os alunos de excelência, de muito boa nota, não existe meio-termo. Não acredito que isso seja justo, mas na faculdade cria excelência. A pressão, obviamente, faz com que todos se queiram esforçar mais. Na Alexandra Moura identifico-me muito com a forma como ela trabalhava os conceitos, ela levava um conceito até cada detalhe que ela estivesse a trabalhar e espelhava-o nos cortes, tecidos, texturas, cores e essa forma de trabalhar ajuda-me imenso a trabalhar os meus conceitos. De resto somos, efetivamente, muito diferentes.

“A minha inspiração para esta nova coleção começou com a eleição de Donald Trump”

Na coleção outono/inverno 2018 que apresentou na última edição do Portugal Fashion foi buscar inspiração a contas de Instagram de várias artistas plásticas. Desta vez decidiu inspirar-se na ERA, um movimento de luta pela igualdade. Porquê?

Foi no Instagram que encontrei as artistas que me inspiraram para a coleção anterior, a Alyssa Rosev e a Camielle Walala, mas foi o facto de elas serem artistas plásticas com uma base muito geométrica que me inspirou verdadeiramente. Penso que este movimento de geometria, padrões e complexidade é novo, mas infelizmente, a partir do ano 2000, deixámos de contar os movimentos por época. Acredito que há um movimento novo, diferente de todos os outros, que é este e se espelha na Camielle Walala, nas paredes e na arte urbana e na Alyssa Rosev nas fotografias que ela tira e na forma como ela comunica também no Instagram dela. Faço parte do movimento delas e achei que era importante inspirar-me em duas artistas cuja linguagem não passa para a roupa mas, a nível estético, são muito parecidas comigo. A minha inspiração para esta nova coleção começou com a eleição de Donald Trump. Nessa altura começaram os movimentos da ERA – Equal Rights Amendtment – nos EUA, através dos quais vários estados dos Estados Unidos estão a tentar pôr esse amendtment na Constituição e estão a tentar criar regras no país para proteger e conseguirem implementar essa igualdade. Costumo ler e estudar os conceitos para que a minha vida não seja simplesmente moda e ao estudar o movimento ERA li um artigo que se chamava “Creative Resistante” [o mesmo nome da coleção primavera/verão 2018 de Susana Bettencourt] e referia todos os artistas que começaram a usar a sua voz e arte para enfrentarem as medidas que Trump estava a impor e que os fez andar para trás uns 10 ou 15 anos. É daí que vem a minha inspiração.

E também se inspirou em Amelia Earhart.

A Amelia Earhart surge por ter sido a primeira piloto a fazer um voo transatlântico e por ser uma das primeiras mulheres a criar esse movimento. Ela tem uma história muito engraçada. Desapareceu no mar, está dada como morta, mas ainda pode andar por aí e nós não sabemos. Várias séries falam dela, os próprios Friends têm um episódio em que se referem a ela. Por isso achei importante juntar os conceitos, que acabam por ser a mesma coisa.

Sente que ainda há muito desigualdade na moda?

Entre homem e mulher não há desigualdade. Nesse sentido, nós designers temos tantas dificuldades que estamos todos ao mesmo nível. Não que isso seja bom, claro. Há muita desigualdade na parte financeira, mas isso acaba por fazer parte da vida, vai haver em todos os lados. Nenhum de nós deve trabalhar a pensar na desigualdade, devemos simplesmente dar o nosso melhor para sabermos que, pelo menos nós, fizemos de tudo para que nenhuma condição externa mande na nossa vida.

Apesar de afirmar que esta coleção se inspira na luta contra a desigualdade fez questão de sublinhar que não se trata de uma coleção feminista. Acha que estes dois conceitos confundem-se muito atualmente?

Quero que se entenda que igualdade não é a mesma coisa que feminismo. As pessoas estão a confundir as coisas. Se uma mulher quer igualdade tem de ir à luta e passar pelas mesmas coisas pelas quais o homem também passa, e quando digo isto refiro-me também a gays e lésbicas. Tudo. Para mim somos todos iguais. Se estamos a exigir igualdade também temos de estar preparados para as consequências dessa igualdade, não é só pedir. Depois não podemos estar à espera que nos abram a porta ou que nos estendam uma passadeira para passarmos. Se queremos igualdade não podemos ser tratadas como flores. Vai haver sempre uma linha muito ténue entre o feminismo e a igualdade.

Nesta coleção conta também com o apoio da Fifitex, uma fábrica de tecidos de algodão de Moreira de Cónegos. Quais foram as mais-valias que esta parceria trouxe para a sua coleção?

Esta parceria foi muito importante para mim porque toda a minha inspiração começa na malha e o meu processo criativo começa mesmo na manipulação da superfície, não penso nas tendências. Para mim, o mais importante é chegar à superfície, à minha malha, aos pontos que vou inventar. Quando tive oportunidade de fazer esta parceria, com quem tenho muito que crescer, pude inventar o meu próprio fio e cor. Não há Pantone nem é igual a ninguém, não vem em nenhum cartaz. O fio e a cor são completamente meus. Como o fornecedor faz este investimento em nós, porque tem de parar máquinas para fazer uma quantidade mínima de um fio específico, torna as nossas peças ainda mais únicas. Uma das coisas que é muito importante na minha marca, que faz parte da minha visão e missão, é querer que os tecidos sejam somente Susana Bettencourt, que não se encontrem em lado nenhum e que ninguém os faça para mim. Somos nós que o fizemos desde o fio. Neste momento posso dizer que fizemos a coleção desde a rama, desde a parte crua de onde vem a matéria-prima que depois se transforma em fio. Isso para mim foi um passo muito importante.

“O que mais vendo são os quimonos, as sweatshirts e os vestidos largos”

Durante o desfile optou, mais uma vez, por calçar as modelos com a marca internacional Birkenstock. É uma marca de calçado que conjuga bem com os coordenados Susana Bettencourt?

Sim, para mim a Birkenstock é a mulher relaxada do dia-a-dia, uma pessoa prática. É a minha cliente. O que mais vendo são os quimonos, as sweatshirts e os vestidos largos. Não posso fugir dessa realidade, portanto ter a Birkenstock como parceira para mim foi perfeito. Já é a nossa terceira edição juntos e o apoio deles tem sido incrível. Também acho que a ligação entre a Fifitex e a Birkenstock faz sentido porque eu sou o elo de ligação.

Na edição de março da Moda Lisboa, o designer Dino Alves aproveitou o desfile para fazer uma sátira onde lançou duras críticas à indústria da moda. Na quinta-feira, Miguel Vieira utilizou as redes sociais para fazer o mesmo, criticando quem pede convites para os desfiles com o objetivo de ser visto e não para escolher roupa das coleções para comprar. Também costumam pedir-lhe convites e roupa emprestada sem investirem no seu trabalho?

Vim de Londres, onde a minha marca esteve durante dois anos antes de vir para Portugal, e vim de uma forma de trabalhar muito profissional onde existe a agência, o relações públicas e o empréstimo, que é o simple request. Comecei há sete anos, uma altura em que o Instagram e as bloggers não tinham este poder que têm agora. Neste momento é mais uma linha ténue na nossa vida e nas nossas regras. Quando comecei tive Lady Gaga e mandei peças para a Beyoncé que ou foram devolvidas ou compradas, se quisessem ficar com elas. Estamos a falar de celebridades que podiam dar-se ao luxo de dizer: “Esquece lá que esta peça já não volta para ti.” E não aconteceu isso. Isto de cobrar pelo product placement acaba por ser outro novo serviço que já faz parte do plano de negócio delas.

É preciso estabelecer novas regras de negócio?

Tal e qual como na Internet, onde no início tivemos muitos problemas com a lei, neste momento os designers precisam de criar regras novas. Temos de traçar os nossos limites e saber até onde queremos deixar essas pessoas irem, infelizmente é isso. Esforçamo-nos muito para ter estas amostras, das quais só fazemos uma de cada. Todo o nosso negócio é feito em esforço. Sabemos que a primeira década e meia de uma marca não é sustentável, é um investimento que fazemos e quando digo investimento refiro-me a conciliar outros trabalhos para conseguir manter isto. Em Portugal, tracei logo os meus limites ao início porque vinha mal-educada de Inglaterra e, inconscientemente, tracei esses limites de não mandar nada para ninguém. Respeito a crítica dos meus colegas, e é oportuna, mas temos de pôr mãos à obra e traçar regras, contratos e delinear agora como vai ser o negócio daqui para a frente.