Susana Damasceno, uma portuguesa que ensina o mundo a ler

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Susana Damasceno: “O livro é a ferramenta mais poderosa que podemos dar a um ser humano”

Susana Damasceno fundou a AIDGLOBAL há 12 anos. A Organização Não Governamental para o Desenvolvimento (ONGD) propôs-se a tornar possível que todas as crianças portuguesas e moçambicanas tivessem acesso à educação e aos livros. Não imaginou, nesse início de 2006, a dimensão que este projeto iria alcançar. Hoje esta ONGD tem projetos que ultrapassam as fronteiras dos primeiros países em que se instalou. A mulher que a dirige diz que a motivação maior provém do “salário emocional” e afirma ser essa a sua maior recompensa.

O que é a AIDGLOBAL e que tipo de trabalho tem realizado desde a sua fundação?

Susana Damasceno: A AIDGLOBAL trabalha na área da Cooperação para o Desenvolvimento e na área da Educação para o Desenvolvimento, também chamada de Educação para a Cidadania Global. O nosso core business, onde investimos o nosso talento, as nossas competências e crenças, é na educação. Educação de qualidade em Moçambique, através do acesso aos livros em bibliotecas e, por outro lado, Educação para a Cidadania Global, que promove no ensino formal em Portugal. Trabalhamos com escolas, tanto em Portugal como em Moçambique, capacitamos os professores e outros técnicos relacionados com bibliotecas, por exemplo, ou técnicos em Portugal que trabalhem na área da museologia e, com eles, arranjamos estratégias para abordar os temas da cidadania global a partir do património local. Trabalhamos também na área das migrações, sempre numa lógica de sensibilização, consciencialização, informação factual, para despertar as consciências da comunidade para as migrações, para os refugiados – ao fim e ao cabo, sempre na área dos direitos humanos. Queremos ajudar o mundo a colocar-se no lugar do outro e perceber qual é a nossa co-responsabilidade para resolver estas assimetrias, estas desigualdades, em que é que podemos contribuir enquanto cidadãos para reivindicar mais direitos humanos, melhores oportunidades para todos, e maior justiça social.

“existem desigualdades à nascença, mas quando morremos somos todos iguais. E as pessoas esquecem-se disso”

Em termos práticos, de que forma conseguem concretizar esses objetivos?

Trabalhamos numa lógica de projetos. Temos ideias que se materializam em soluções para dar respostas aos problemas sociais e tentamos, através da submissão de projetos a linhas de financiamento, encontrar financiamento para implementar estas ideias que são por si tentativas de melhorar a sociedade, e são muitas. Atualmente temos cerca de 10 projetos a decorrer em Portugal e 3 em Moçambique. Por exemplo, um projeto muito direcionado para as juventudes partidárias, no sentido de as sensibilizar para as questões da cidadania global, para quando no futuro forem decisores políticos terem o tema do Desenvolvimento como prioridade nas suas agendas, e a questão da própria participação cívica como elemento chave para uma maior e melhor democracia. Temos também um outro projeto, Education for Glocal Issues, em que a AIDGLOBAL é parceira como Organização de desenvolvimento local, o Monte, e aí estamos também a sensibilizar os jovens alunos de escolas do Alentejo para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Tentamos colocar os alunos no centro dos problemas e com eles desconstruir ideias pré-concebidas sobre certos assuntos, e levá-los a agir. Fazemos este trabalho nas bibliotecas – é um lugar onde se pode abordar temas relacionados com o Desenvolvimento através de leituras disponíveis. Temos um projeto que terminou recentemente, o “Educar para Cooperar”, que já vai na oitava edição, e que envolveu seis concelhos da Rota Histórica das Linhas de Torres. Refletimos os temas da cidadania global à luz do património local, através daquilo que nos é próximo.

E em Moçabique?

Em Moçambique, temos uma rede de bibliotecas muito especial. Seis em edifício, 11 em modelo de Bibliotchova (um carro de mão, o tchova, que adaptámos e distribuímos por escolas que não têm edifício que possa ser reabilitado e transformado em biblioteca), e ainda temos as maletas de leitura, baús que levam cerca de 100 livros e que também distribuímos por escolas. Lançámos também a campanha “Embaixadores da Leitura”, e qualquer pessoa pode ser embaixador fazendo um donativo para a nossa conta. Impulsionamos o gosto e a importância da leitura, que é transversal. Quem não gosta de ler?

Qual é a reação das crianças quando vêm livros?

Temos variadíssimas. Algumas crianças, das comunidades mais rurais, recuam, com medo, quando lhe entregamos um livro, mas temos crianças que já têm o hábito de ir à biblioteca municipal do Chibuto, que fica na cidade, apoiada pela AIDGLOBAL, e que já se deixam encantar pelos livros e pelas histórias. Não basta oferecer um livro, é preciso criar a cultura da leitura, sobretudo nestas comunidades onde existe uma forte componente de literatura oral. Colocamos lá os livros e responsabilizamos os professores e os técnicos bibliotecários para dinamizarem a leitura dentro da sala de aula.

“A minha empatia por África é grande, a oportunidade de fazer algo surgiu depois desta experiência em que estive imersa na pobreza extrema”

Como surgiu a ideia de criar a AIDGLOBAL?

Às vezes digo, com toda a humildade, que se soubesse que seria assim, nem teria tido a coragem de ter fundado a AIDGLOBAL. Mas a vida acontece, e nós aceitamos ou não. Tive esta iniciativa, mas não foi uma coisa calculada. Foi completamente espontânea. Um ato de amor, de loucura, de paixão. Só pensei: tenho de fazer alguma coisa, não posso deixar de o fazer. Trabalhava como professora e fui para Moçambique durante um mês, numa experiência de voluntariado, em que trabalhei num orfanato, fazendo animação de leituras, teatro… Foi depois disso que se deu o clique. Esta minha experiência de voluntariado nunca foi por si uma necessidade exótica de ir experimentar a vivência do país, porque sempre tive o hábito de poupar durante o ano inteiro para depois poder viajar. Lembro-me que aos 10 anos escrevi um poema sobre a paz e fui lê-lo na festa de Natal da empresa onde o meu pai trabalhava, num auditório cheio de pessoas. Por isso estes temas da justiça social, da paz, da guerra, sempre me preocuparam desde criança. Provavelmente porque nasci com esta sensibilidade, mas esta sensibilidade também se desenvolve. (E no fundo este é o grande objetivo desta Organização, desenvolver a empatia pelo outro.) A minha empatia por África é grande, a oportunidade de fazer algo surgiu depois desta experiência em que estive imersa naquilo que é a pobreza extrema, em termos de acesso à água, higiene, alimentação, e senti na pele o que é não ter nada. Comparei com tudo o que eu tinha – uma casa, um carro, trabalho, tinha estudado, na época estava a tirar a minha segunda licenciatura, tinha pais que sempre me apoiaram em tudo, e achei que era rica. Então quando uma pessoa é rica tem de partilhar o que tem. E foi isso. A AIDGLOBAL é uma tentativa de partilha e de devolução, porque quando uma pessoa recebe tanto, também quer dar um bocadinho. Lembro-me bem de uma criança que eu costumava agarrar, abraçar e beijar, e que nunca sorria. A única altura em que sorriu foi no momento em que lhe dei um balão. O momento mais feliz daquelas crianças foi quando receberam os balões que eu tinha levado na bagagem e quando os levámos à praia pela primeira vez. Isto são gestos muito pequenos que marcam a vida destas crianças, mas não fazem a diferença. O que faz a diferença é a educação, e não há uma educação de qualidade sem livros. Os livros são uma das ferramentas mais poderosas de que o ser humano dispõe, porque o livro é um diálogo entre duas pessoas – entre alguém que já refletiu sobre o que escreve a pessoa que o está a ler.

 

 

Quem era a Susana antes da AIDGLOBAL?

Era a mesma Susana. O meu empenho na AIDGLOBAL era o empenho que tinha com os meus alunos nas escolas por onde passei. Nunca quis ser nada na vida senão professora. Aliás, era apelidada de “abelhinha”, porque era a última a sair da escola. Fui professora 5 anos na Casa Pia, os mais felizes como docente. Os meus alunos diziam-me “A professora é muito má, muito exigente, mas consigo a gente aprende” [risos]. Tinha muita liberdade para agir, levava atores, escritores para dentro da sala de aula, levava os alunos ao teatro, à ópera… E fui sempre igual, muito empenhada, muito numa lógica de partilha de conhecimento, do mundo, de falar das coisas. Venho de uma família humilde, mas com fortes valores. E há uma coisa que sempre tive muito consciente em mim: “Se tu queres, és tu que tens de ir buscar”. Trabalhei para ter a cultura que tenho hoje. Os meus pais não tinham dinheiro para me levar aos museus, eu levantava-me cedo ao domingo de manhã e ia sozinha visitar os museus todos, porque eram gratuitos. Comecei a trabalhar com 16 anos e o meu dinheiro era praticamente todo investido em livros. Há algo que temos de ter em mente: existem desigualdades à nascença, mas quando morremos somos todos iguais. E as pessoas esquecem-se disso. Estou muito grata por ter vindo a este mundo, por ter nascido no seio da família em que nasci, por ter a educação que tive, por ter nascido num país que não vive em guerra, onde as mulheres ainda se podem afirmar e ter liberdade para andarem sozinhas na rua, num meio de transporte, de ir a uma discoteca, de conduzir, de votar, tudo isso. Olho para a minha vida com enorme gratidão. Fui dotada de oportunidades, e agarrei-as.

“Lembro-me bem de uma criança que eu costumava agarrar, abraçar e beijar, e que nunca sorria. A única altura em que sorriu foi no momento em que lhe dei um balão”

Tem sido fácil levar a bom porto esta missão?

D.: Não, não tem sido fácil. Aliás, no âmbito desta Organização criei um lema: “É difícil, mas é possível”. O segredo tem muito a ver com termos as pessoas certas nos momentos em que mais precisamos. Tenho e quero ter esta leitura, porque me faz acreditar que o que temos é o que devemos ter, mas não me faz deixar de lutar para ter melhor. E isto é muito importante, porque há uma enorme mobilidade de pessoas, em Organizações desta natureza, há que garantir salários no final do mês, honrar os compromissos e não descuidar as expectativas que os beneficiários dos nossos projetos têm. Estou aqui há 12 anos, sempre com vontade de encontrar alguém que tenha vontade de dar continuidade a este projeto, porque tenho a crença de que não devo permanecer à frente desta Organização até ser velhinha. Ambicionava ser presidente da direção, e não bombeira para todo o serviço. Tudo está centrado em mim, desde a questão mais micro até à mais macro. Isso exige uma capacidade de combate, de resistência ao cansaço, de resiliência, otimismo… há momentos muito difíceis. Eu própria tenho tido no meu percurso de vida situações de saúde preocupantes, mas nem sequer tenho tempo de ter baixa, nem para recuperar. Não há tempo para férias, tive 9 dias de férias no ano passado, e num deles estava em frente ao computador logo às 7 da manhã. Agarro-me ao enorme retorno emocional que este trabalho me dá. Costumo dizer que sou uma sortuda: há muita gente que ganha mais do que eu, trabalha menos do que eu, mas está sempre insatisfeita. Eu farto-me de trabalhar, mas nunca estou insatisfeita. Estou sempre a tentar perceber como posso ser melhor, para que esta Organização possa ser melhor, viver menos dependente de mim, e seja capaz de abraçar mais jovens que queriam ter uma oportunidade de trabalhar neste setor.

Que ambições ainda tem para o futuro?

Entrei num doutoramento, estou a encará-lo como um desafio. Nunca pensei fazer um doutoramento, fui incentivada por uma pessoa que me viu cheia de vontade de voltar a estudar. Neste momento considero que era importante para aprender e ser capaz de perceber melhor este mundo. E também ambiciono ter uma participação cívica mais próxima: gostava de ser presidente da Junta de Freguesia onde me formei enquanto cidadã.

“Costumo dizer que sou uma sortuda: há muita gente que ganha mais do que eu, trabalha menos do que eu, mas está sempre insatisfeita.”

E no tempo livre? Aquele que não tem?

De facto tenho muito pouco tempo livre. Ocupo esse tempo com o meu filho, temos ambos um momento muito particular: à noite lemos sempre uma história, e aí tudo para. A minha cabeça para, é um momento nosso, os dois na caminha dele a ler o livro, e a refletir. Gosto quando ele me faz perguntas sobre o que lemos e me interrompe. Este é sem dúvida o meu melhor momento – esse e quando o acordo de manhã, o cheiro e o agarro [risos]. Nem vou falar muito nisso, senão desmancho-me [risos]. Também descobri recentemente a jardinagem, tenho um quadrado onde ponho as mãos na terra e percebo o quanto isso é importante para mim. Desde que descobri a jardinagem, é onde me resolvo. É muito gratificante, apaziguador. Também faço zumba e hidroginástica – aliás, na aula de hidroginástica é onde tomo as melhores decisões. Tenho muitos amigos e tento que eles vão lá a casa. É fundamental estar com quem gostamos, sempre valorizei muito as minhas amizades. Estar, sentar, rir, receber pessoas, é o que me faz feliz. E leio, tenho quatro livros que vou lendo ao mesmo tempo, consoante a minha disponibilidade mental, cansaço… Em casa gosto de fazer as coisas devagar, quando não tenho de as fazer depressa. Já tive uma vida muito mais interessante quando era professora, porque viajava muito, já fui a mais de 30 e tal países, já vi muitos espetáculos, já fiz muitos cursos, já fiz muita coisa, mas agora o mais importante é “estar”, é a tranquilidade. O “agora”, o “momento”, é muito importante.

O que ainda falta fazer?

Gostávamos de atuar na Guiné-Bissau. E quero também criar uma fundação, que se chamará A Damasceno, dedicada à minha avó materna. Uma mulher por quem eu tenho uma enorme admiração e que me inspira muito, pela sua história de vida. Partilharia a história de vida da minha avó e com essa fundação iria ajudar mulheres vítimas de violência, mulheres cujas vidas são duras, exigentes, famílias monoparentais, ajudar a empoderar essas mulheres.

Carmen Saraiva