Teresa Procopiak: “A anorexia era uma entidade à parte de mim, sabia que aquilo não era eu”

Teresa Procopiak, é brasileira e vive em Portugal há cinco anos. Ficou conhecida como sósia de Irina Shayk, depois de um jornalista a ter confundido com a manequim russa. Mas o seu percurso é bastante diferente. A lançar-se como designer de moda, acaba de lançar o seu primeiro livro, uma biografia sobre a anorexia. Teresa foi um dos casos mais severos de anorexia conhecidos e uma das poucas jovens a sobreviver nessas condições extremas. Tem mais de um metro e oitenta e chegou a pesar 29 quilos.

‘Do outro lado do espelho’ é a biografia de uma adolescente, agora mulher, que aos 15 anos desenvolveu um transtorno alimentar grave e que, não raras vezes, viu a morte bater-lhe à porta. Desde arritmias a feridas nos pés de tanto exercício físico compulsivo que fazia, foram várias as dificuldades por que que a autora passou ao longo dos 10 anos em que, como diz, “foi assombrada”, pela anorexia.

Refere-se à anorexia como ‘Ana’, nome que alguns usam para designar esta doença, da mesma forma que o transtorno alimentar bulimia é algumas vezes designado como ‘Mia’. Em torno destas designações, começaram a surgir há alguns anos movimentos com os nomes de ‘Pró-Ana’ e ‘Pró-Mia’, que incentivam ao não tratamento da doença.

Teresa sofreu de anorexia durante 10 anos e teve várias recaídas, mesmo após sair de tratamentos internos que lhe deram alta por acharem que se encontrava estável. Fez seis tratamentos ao longo dos anos e tem a noção de que foi um milagre ter sobrevivido. Admitiu, ao Delas.pt, que este é apenas o seu primeiro livro e que o seu objetivo é fazer algo que nunca – ou muitas poucas vezes – foi feito: acompanhar a vida, do início ao fim, de alguém.

‘Do Outro Lado do Espelho’, o livro de Teresa Procopiak, foi lançado esta sexta-feira (preço €16,60) [Fotografia: DR]

Comecemos talvez pelo início, ainda antes de a Teresa ter sido assombrada pela anorexia (ou ‘Ana’). Os seus pais são diplomatas, a Teresa viveu em vários países diferentes. O facto de andar sempre de um lado para o outro poderá ter influenciado a ansiedade que descreve no livro e a sua relação com as pessoas?

Depois de uma certa idade, sim, afetou. Até aos meus 12 anos, levei a situação de uma forma tranquila, estava tudo bem. Vivi no Brasil, dos 10 aos 12 anos, fui muito feliz lá. Quando chegou o momento de ir embora… Nas minhas fotografias tenho sempre a cara inchada de chorar e lembro-me como se fosse ontem que aquilo me afetou muito. Tinha uma base incrível de amigas, era muito bem aceite na escola, era feliz, adorava o sítio onde estava. Tinha uma vida muito ativa, organizada, os meus pais ainda estavam juntos e éramos muito felizes. Não queria deixar aquilo, foi como se o meu mundo fosse abaixo e tinha que começar tudo do zero. Quando cheguei a um novo país, a Argentina, o choque cultural foi tão grande, senti-me tão deslocada, que tive febres altíssimas e até delirava. Ficava tão ansiosa, porque não falava ainda o espanhol, e por mais que as pessoas pensem que é igual ou muito parecido ao português a verdade é que não é. Isso foi talvez o mais difícil: o choque de não falar o idioma. Depois na escola, nessa idade, já estava a crescer muito.

Como assim?

Já estava a ficar muito alta, comparativamente com os outros alunos, era mais alta do que os rapazes e as raparigas. E também mais magra. Mesmo quando comia muito era muito magra e ainda o sou, naturalmente, e isso marcava a diferença. Tinha também os lábios grossos e feições diferentes, o que já era suficiente para que começassem a gozar comigo. Depois, com a ansiedade, comecei a ter flatulência e aqueles barulhos na minha barriga eram muito acentuados na sala de aula, ouvia-se mesmo muito. Aí sim, começou mesmo o pagode, eu comecei a ser o pagode de toda a gente. Mais do que na sala de aula era mesmo no refeitório e em todo o sítio. Lembro-me de ter havido uma epidemia de piolhos e toda a gente tinha, mas como eu era o alvo fácil, mal começava a coçar a cabeça já toda a gente me estava a chamar de ‘piolhenta’. Chegou ao ponto de eu pedir autorização para ir à casa de banho, só para conseguir coçar a cabeça e para tentar acalmar a minha ansiedade. Isto continuou assim até aos meus 15 anos.

O bullying também influenciou a sua vida ou arranjou mecanismos para que esta questão não a afetasse tanto?

Foi algo mesmo muito marcante na minha vida, mas em nenhum momento eu pensei em, por exemplo, tirar a minha vida ou fazer algum disparate do género. Era mais forte do que julgava, na altura. O que eu fazia era tentar faltar às aulas, deitava copos de água para cima de mim e colocava a ventoinha ao pé para ficar doente e ter uma desculpa verdadeira para faltar às aulas. O meu pai era muito rigoroso e não me deixava faltar, além disso tínhamos faltas contadas, por isso tive mesmo de enfrentar a situação e o meu mecanismo para lidar com isso era criar um mundo à parte onde eu podia ser a Teresa de sempre. Eu também era ‘a Teresa de sempre’ em casa. A partir de sexta-feira já me sentia livre para ser eu mesma.

Tinha 15 anos quando teve a primeira crise de anorexia. Porque é que se refere à anorexia como ‘entidade’?

Na minha experiência, no meu caso, a anorexia era mesmo uma entidade à parte de mim. Eu sabia que aquilo não era eu. Com o tempo cheguei mesmo a ficar confusa sobre quem era eu e quem era ela, a Ana. No início, ela instalou-se em mim e era uma voz separada da minha, que me dava ordens, era como se fosse uma manager da minha vida. Qualquer pergunta ou dúvida que eu tinha, era ela [a anorexia] que respondia. Era ela que ditava o que eu comia ou fazia fisicamente.

Está a par de alguns blogues que existem e que se chamam ‘Pró-Ana’ e ‘Pró-Mia’, ou seja, que são a favor tanto da anorexia [Ana] como da bulimia [Mia]. São criados por mulheres que sofrem destas perturbações alimentares e que incentivam outra mulheres a desenvolver esta doença, por considerarem ser algo seguro. Deparou-se com estes blogues durante a sua doença?

Estes blogues já existiam na altura, e eu nunca os abri para não adoecer ainda mais. Até porque a minha anorexia já era muito forte e inteligente e não precisava de mais incentivo. Aliás, a anorexia de cada vítima é diferente, porque cada uma quer as coisas ‘à maneira dela’.

Fez vários internamentos. Quais foram os procedimentos que mais a ajudaram a seguir em frente e encarar a anorexia de vez?

Os tratamentos mais flexíveis e mais permissivos, que dão mais liberdade à pessoa, como comer o que gosta e o que quer, não são tão assustadores, são os melhores. Porque há tratamentos que são muito assustadores. A vigilância, por exemplo, é algo natural e normal nos tratamentos, que têm que acontecer, bem como as regras, que sempre existirão. E têm mesmo que existir regras, porque senão a anorexia faz o que quiser connosco. O que resultou melhor para mim foi mesmo o último tratamento, porque permitia mais liberdade. Por exemplo, se nós gostássemos de comer pastilhas, nós podíamos fazê-lo. A maioria dos tratamentos proibia estas coisas, que a maioria das vítimas desta doença tendem a gostar e a ter o hábito de comer: as pastilhas elásticas para matar a fome, refrigerantes de dieta, produtos de dieta e também o exercício físico. No último tratamento podíamos ter tudo, desde que seguíssemos o resto. Era um tratamento à base de quanto mais cumpríamos com as metas, mais éramos premiadas. À medida que comíamos e ingeríamos a comida necessária por dia, tínhamos mais liberdade e benefícios. E isso era muito encorajador. Porque nós tínhamos direito de fazer até duas horas de exercício físico por dia, caso quiséssemos. Eu acabei por optar ter essa vida quase de atleta. Acordava às seis da manhã, começava a fazer o meu exercício, depois tomava o pequeno-almoço, também fazia caminhadas. Precisava mesmo disto, porque a minha ansiedade era tão elevada que precisava de fazer esse exercício e isso também ajudava o peso ir para ‘os sítios certos’ e a conseguir ganhar massa muscular. A psiquiatra tinha noção disto e sabia que era importante nós olharmos e gostarmos daquilo que estamos a ver, da nossa imagem. Nos outros tratamentos que fiz, o peso ficava localizado e ficava com barriga ou com celulite. Ganhava mais massa gorda do que magra e não é necessário. O importante é ter o IMC que nós necessitamos, e podemos tê-lo com massa magra, com um balanço saudável entre a massa magra e a gorda. Portanto, o exercício físico ajudou-me imenso, bem como a liberdade de poder comer aquilo que eu queria.

“no meu caso, a anorexia era mesmo uma entidade à parte de mim. Eu sabia que aquilo não era eu”

A anorexia faz de vítimas não apenas quem passa pela própria doença como também quem está ao redor dessa pessoa. Se tivesse que dar três conselhos às mães que passam, tal como a sua passou, por esta situação, quais seriam?

Baseado na minha própria mãe e no que ela fazia e, por vezes, sem querer, é, primeiro, ler muito. Informem-se o máximo possível para conseguir perceber a doença o melhor possível. Número dois: tentem não obrigar ou forçar a vítima a comer ou a não ter os comportamentos típicos de quem sofre de distúrbios de alimentação, porque é impossível uma vítima deixar de o fazer só porque um pai ou familiar o está a dizer. Só quando ela estiver preparada, for o seu tempo, quiser, porque já teve o ‘click’ é que a vítima o vai fazer. Quando a pessoa fica doente, ela não sabe o que está a fazer, não tem a capacidade de pensar nos outros, porque está doente. Não consegue nem ajudar-se a si própria, como é que vai ajudar os outros? O terceiro e último conselho seria conversar. Apenas conversar, apoiar ao máximo e oferecer alternativas. Alternativas para ver se a vítima está ou não preparada para elas, seja um tratamento interno ou externo. Dar essa liberdade e essa opção, sem forçar, é muito importante. Porque, se for forçada, a vítima pode até ‘melhorar’ e subir de peso, mas a cabeça vai continuar doente.

Já afirmou algumas vezes que consegue, de longe, ver quando outras raparigas têm uma ‘Ana’, uma “entidade”, a “assombrá-las”. Considera que existem algumas formas precoces de a identificar e neutralizar a doença, ou é difícil de prever quando chega e como chega?

Para cada vítima é diferente, até porque quando a Ana [anorexia] vem, ela pode vir em intensidades diferentes. E se ela vier com a força toda, é a força toda que fica até ao fim. Seja um ano ou 10 anos, como foi o meu caso. Acho, no entanto, que a vítima pode estar preparada ou sentir o ‘click’, por exemplo, em seis meses. Ou logo a seguir a entrar. A minha Ana foi identificada logo e não foi por isso que não me levou para o fundo do poço. Eu tinha perdido apenas cinco quilos e a minha mãe começou logo a ficar alarmada. E nem por isso ela deixou de atuar, agir, e levar-me com ela. Há raparigas que, e eu já vi isto acontecer, nunca chegam ao fundo do poço e conseguem recuperar com terapia cognitiva e uma nutricionista, por exemplo. Outras não, outras precisam, como eu, de ser internadas. E há fatores para isto acontecer: se já perderam a menstruação, se têm um IMC abaixo de 16, se estão medicamente instáveis e a correr risco de vida… Se a vítima está a correr risco de vida então vai ser internada, tem de ser internada. Quando eu tive o meu ‘click’ eu sabia disto: sabia que tinha de ser internada.

Afirmou várias vezes, nas últimas páginas do seu livro, a importância que o Marcus, um ex-namorado, teve para si. Continua a acreditar que todas as ações dele, incluído enviar mensagens maldosas à sua mãe, foram por amor? De que forma a sua presença marcou a sua vida?

É importante que as pessoas saibam que na altura em que eu escrevi o livro, portanto, há dois anos, eu ainda estava muito ligada ao Marcus, porque ela tinha voltado à minha vida, depois de quatro anos ausente. Portanto, isso fez com que os meus sentimentos voltassem a estar à flor da pele. Enquanto nós estivemos juntos ele realmente foi um homem incrível, foi o “homem perfeito”, sabendo que isso não existe, mas foi o melhor que eu pude imaginar num ser humano e num parceiro, foi tudo o que eu queria. Até ao momento em que o deixei. Aí, ele transformou-se completamente. Ele ficou com ira, desolado, nós estávamos noivos, embora fossemos muito jovens. E ele ficou arrasado. Cada pessoa reage de uma forma diferente à dor. E muitas vezes as pessoas acabam por lidar com a dor de uma forma destrutiva, como foi o caso dele. Não estou a justificar o que ele fez nem a dizer que aquilo foi bom, mas também não posso julgar.

 

“Não se comparem fisicamente, esteticamente, psicologicamente a ninguém”

 

Sendo um livro biográfico houve algum momento especialmente difícil de escrever, seja porque a recordação era turva devido às circunstâncias ou porque o momento era realmente doloroso de recordar?

Não foi nada tranquilo, foi uma experiência extremamente intensa e bastante traumática porque tive que volta a viver e até sentir todos aqueles momentos, e eu comentei mesmo isso com a minha editora. Nenhuma parte do livro foi fácil de escrever. A memória está lá toda, fui abençoada com uma memória muito boa e fui capaz de me lembrar de tudo o mais real possível. E quanto mais escrevia mais me lembrava e mais escrevia. É muito difícil apontar uma parte que tenha sido mais difícil de escrever, porque foram várias e foram anos muitos intensos. Se calhar poderia dizer o que foi mais fácil, que foi o final. Foi um final feliz. Foi uma resolução feliz, porque nunca mais voltei a recair nem ao ponto onde havia chegado há uns anos. Também, com o tempo, e isto ainda não está neste livro porque é apenas o primeiro, consegui ir resolvendo os meus sentimentos em relação ao Marcus. Consegui ir superando e acho que não há nada que o tempo não cure ou pelo menos ajude. Mas o livro foi mesmo muito intenso e muito difícil de escrever. E na parte da anorexia revivi o medo, o trauma, as mesmas sensações, a ansiedade e até os sintomas. Tudo veio à flor da pele. Chorei muito, houve muita tristeza. Mas também houve momentos em que me ri, porque há partes do livro que são hilariantes.

Portanto, um dos planos para o futuro será, pelo menos, escrever outro livro?

Mais do que um, porque a ideia é fazer uma coisa que acho que, pelo menos em Portugal, ainda não foi feita. E no mundo, se foi feito, foram muitas poucas pessoas a fazê-lo: que é acompanhar a trajetória de uma vida do início ao fim. É essa a minha intenção e irei fazê-lo.

Houve um momento, de vários no seu livro, que achei um pouco chocante, que foi quando a Teresa foi à Disney com o seu pai e acabou por desmaiar sem que ninguém a fosse socorrer. Por vezes, as pessoas estão tão absortas que acabam por não ajudar ou nem sequer se aperceber do que se está a passar à sua volta. Sentiu isto durante a sua doença?

Acho que tem que ver com aquilo que na psicologia se chama de ‘bystander effect’ [efeito espectador], que é quando há muitas pessoas à volta e há uma que precisa de ajuda, as pessoas acabam por passar a responsabilidade umas para as outras. Quando há uma pessoa só, normalmente, essa pessoa vai ajudar quem precisa, a menos que seja mesmo má, um monstro. Quando há mais do que uma pessoa, passa a responsabilidade a outra e pensa que vai haver alguém a ajudar. Normalmente é por medo de ter essa responsabilidade. Em relação ao meu pai e aos meus irmãos, que estavam lá comigo quando eu desmaiei, eles não viram. Eles acharam que como eu tinha acabado de sair de um tratamento, estava bem. Principalmente o meu pai. Todos eles queriam que eu estivesse bem e essa vontade era tão grande que eles não sabiam, na verdade, o quão mal eu estava. Talvez se o meu corpo não estivesse tão fraco eu nunca tivesse reagido daquela forma à comida e desmaiado.

Se tivesse que usar a sua voz para dar lições fundamentais que retirou para a sua vida a todas as pessoas do mundo, sofram elas ou não de alguma doença, quais seriam?

Em primeiro lugar, não se comparem. Não se comparem fisicamente, esteticamente, psicologicamente a ninguém. Tentem ser os melhores que são de acordo com vocês mesmos, respeitem o vosso corpo, confiem em vocês. Se querem melhorar algo em vocês, melhorem dentro daquilo que são. Não queriam ter o nariz daquela ou as pernas do outro. Porque isso nunca vai acontecer. Números dois, não se importem com o que as outras pessoas pensam sobre vós, porque não conseguimos agradar a todos. Eu já tentei ser a mulher e a pessoa perfeita e mesmo assim não consegui agradar a todos. Sejam autênticos e genuínos e não tentem ser quem não são. Número três: sonhem em grande. Tanto quanto conseguirem, porque se não o fizerem estão a limitar-se.

Percorra a galeria de imagens e veja algumas imagens da Teresa Procopiak durante o lançamento do seu livro.

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