Testemunho: “Filho, és tão mais que a simples hemofilia”

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17 de Abril. Dia Mundial da Hemofilia. O Delas.pt recolheu testemunhos de mulheres que, sendo portadoras da doença genética, tiveram que se confrontar com a difícil decisão da maternidade, com a dura angústia de ter um filho sobre quem a doença poderia exercer toda a sua ação e limitar muita da vida quotidiana.

Ana Cristina Barbosa foi uma das mulheres que, muito antes de engravidar, viu o que a doença era capaz de fazer às pessoas de quem gostava. Carregou receios durante décadas, mas hoje olha para eles com outra atitude. Com a alegria de quem tem construído uma família que, tal como tantas outras, tem as suas vicissitudes, mas que não cedem, não baixam os braços, não desesperam.

Leia o testemunho na íntegra e na primeira pessoa abaixo:

“Chamo-me Ana Cristina Barbosa, tenho 37 anos e vivi sempre a Hemofilia. Nasci numa casa com dois hemofílicos, o meu avô e o meu irmão mais velho. Duas gerações tão diferentes, mas tão iguais no querer “não mostrar a hemofilia”. Queriam tanto não “A” ter que faziam de conta que ela não existia. Mas, na prática, ela estava todos os dias ali, bem presente. Mesmo com todos a ignorá-la, ela gritava. Agora sei que gritava bem alto.

A minha mãe descobriu que tinha um filho com hemofilia já ele tinha mais de um ano, depois de muitos pontos levados e rebentados, depois de muitas hemorragias que não paravam, depois de muitas lágrimas, de dor, e depois do meu avô decidir contar aos meus pais que podia ser Hemofilia. (Avô eternas saudades tuas).

O meu irmão é mais velho seis anos. Sempre vivi a hemofilia. Sempre. Mas ao longo da minha vida fui mudando a maneira como a vivo.

Quando o meu avô decidiu “apresentar” a Hemofilia foi, sem dúvida, um grande marco na vida dos meus pais, na vida do meu irmão e, consequentemente, na de toda a família. A realidade tão escondida não podia mais ser camuflada. Aquilo que o meu avô escondia, acredito que na tentativa de lhe tirar qualquer tipo de importância, era agora inevitável. Tinha de ser vivida e ponto final. A tentativa do meu avô “A” esconder infelizmente arrastou-se. E assim vivíamos a Hemofilia.

Tentávamos todos proteger o meu irmão. Fazíamos o melhor de nós para que ele não sofresse. Mas viver a doença há 40 anos não foi, de todo, nada fácil. A falta de informação, as dúvidas, o medo que nos fazia tremer por dentro, a tentativa frustrada de fingirmos que tudo era normal. A impotência. O sofrimento de todos sabermos que, por muito que fizéssemos, ele tinha de passar por aquilo. Ele tinha de sofrer. E sofreu… E com ele, nós, num silêncio gigantesco.

“A falta de informação, as dúvidas, o medo que nos fazia tremer por dentro, a tentativa frustrada de fingirmos que tudo era normal.”

Digo muitas vezes que é na dor que o amor se fortalece. Digo muitas vezes que a experiência pessoal molda cada um de nós. Digo-o porque me revejo em cada palavra. O que vivi fez de mim o que hoje sou. Se esta realidade influenciou o meu percurso de vida? Não tenho qualquer margem para dúvidas. Sou o que sou porque todos somos o somatório do que vivemos.

Fui vivendo a hemofilia até que, já adolescente, veio o resultado de exames que fiz no Hospital São João: tal como a nossa, minha, mãe, eu e a minha irmã éramos portadoras da doença. Quando soube, nada me pesou, mas agora a esta distância, sei que me fez pensar. Dava por mim a fazer cenários na minha cabeça, o que poderia acontecer e fui, ao longo do tempo, camuflando os meus pensamentos, a minha opinião, a minha voz.

“Fui vivendo a hemofilia até que, já adolescente, veio o resultado de exames que fiz no Hospital São João: (…) eu e a minha irmã éramos portadoras da doença”

Cresci, tornei-me adulta, com uma profissão, uma casa, um marido, e uma filha linda para cuidar. A vida totalmente programada e desejada. Com 30 anos e uma vida totalmente confortável, e depois de uma ida à dentista, comecei a ter sinais que poderia estar grávida. Nem queria acreditar. Convencia-me que não queria e que não estava.

Não estava programado, como poderia eu estar grávida? Ainda por cima, tinha descoberto um grande nódulo na mandíbula. Fui sujeita a muitas radiações, por isso não era, de todo, uma boa fase para estar grávida.

Mas, Ana Cristina, estavas! E sem saberes começava a melhor fase da tua vida.

Quando soube, chorei durante uma semana (hoje até me rio de mim própria). Mas eu sabia-o. Eu sentia-a. A minha voz interior sussurrava-me. Tentei silenciá-la com ecografias atrás de ecografias, na tentativa de descobrir rapidamente o sexo do meu bebé. Até dizia aos outros, muito para me convencer a mim própria, que queria outra menina e tudo…

[Fotografia: DR]

Mas não era uma menina! Nasceu o Santiago!!! Passadas 48 horas do seu nascimento, foi-nos informado que era hemofílico. E foi aqui que a nossa vida mudou. Sim, mudou muito! Mas não por causa da Hemofilia, mas porque um ser maravilhoso veio completar ainda mais a família que estou a ver crescer e a tentar bem construir.

O meu filho tem 6 anos. Ele vive a hemofilia nesta geração. Uma geração já tão privilegiada de muito.

Que sorte, meu filho!!! Que sorte de termos ao dispor os melhores tratamentos, de nos tranquilizarem por serem tão eficazes e seguros, de quase todos os profissionais de saúde saberem o que é Hemofilia, de termos uma associação forte, coesa, focada naquilo que acredita ser o melhor para nós. Que sorte meu filho de termos tanta informação e verdade disponível.

Que sorte a minha te chamar meu, meu filho! Tu és tão mais que a simples Hemofilia. E eu, que tanto acreditava que quando nascesses ia ter a grande missão de mostrar o que era a doença, de gritar ao mundo que seres hemofílico não era ser menos, que a Hemofilia não era mais tabu, que não eras um “tadinho”, que poderia mudar mentalidades. Podermos falar da hemofilia como quem fala da diabetes. Queria tanto mudar o mundo, pelo menos o nosso…

Não foi preciso. Fizeste tudo por mim. Tu és a prova viva do que é viver agora a Hemofilia. Óbvio que com preocupação, com receios… mas iguais de quem é simplesmente MÃE. Não me sinto nem mais nem menos.

Devemos viver a Hemofilia em consciência, mas com leveza, com confiança que o presente é muito bom e que o futuro se avizinha melhor, bem ‘gargalhante’.

“Tu és a prova viva do que é viver agora a Hemofilia. Obvio que com preocupação, com receios… mas iguais de quem é simplesmente MÃE”

A hemofilia trouxe-me várias camadas ao longo da minha vida, diferentes sentimentos e sensações, que me permitiram crescer por dentro e ser o que sou. A melhor parte de mim traz a hemofilia aliada.

A todas as futuras mães o desejo profundo que a hemofilia tenha o peso e a medida certa nas vossas vidas. O amor supere sempre tudo. Os nossos filhos poderão ser sempre o que quiserem. O meu, só o quero feliz com umas valentes asas para dar vida a cada sonho.”

Texto editado por CB

Imagem de destaque: Shutterstock

https://www.delas.pt/testemunho-nao-ignoro-a-hemofilia-mas-tambem-nao-a-sobrevalorizo-ana-pastor