Cuidadores: “Tenho é saudades de cuidar de mim”

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[Fotografia: Shutterstock]

Deolinda Rodrigues tem 82 anos e, “há cerca de cinco anos” que está “a viver a mocidade”. O tempo que nunca teve para si – entre cuidar e educar os filhos, tratar dos sogros e, depois, do marido – chegou por altura de 2013, quando o companheiro acabou por morrer. Zé sucumbiu depois de um longo processo de debilitação provocado pela Doença de Alzheimer e por um AVC, aos 60 anos, e que o deixou sem falar até aos últimos dias.

Foram 18 anos de trabalho diário, nunca delegado a ninguém de fora ou nenhuma instituição e levado a cabo mesmo durante a recuperação a várias cirurgias ao joelho a que esta “mulher do campo” – como se apelida – teve de se submeter. Um trabalho que durou quase duas décadas e que começou quando Deolinda, residente na Barreiria, uma aldeia nos arredores de Fátima, não tinha mais do que 58 anos. “Levei esta cruz com paciência”, constata, de voz firme, mas sem um tom pesado.

“A vida começou tal e qual depois da morte, mas de outra maneira. Morreu, agora precisa que reze pai-nossos por ele. Voltei a gozar a minha vida”

Agora, numa altura em que se debate politicamente os temas em torno do Estatuto do Cuidador, o Delas.pt foi ouvir testemunhos de quem pôs a sua vida em suspenso para que a de outros não caísse em mãos erradas, que arredou os seus próprios interesses para, no caso de Deolinda, cumprir os desígnios de Deus e as promessas que fez no altar quando se casou: Amar e respeitar na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por todos os dias da vida, até que a morte os separasse.

“Tenho é saudades de cuidar de mim e dos meus”

É com a certeza do dever cumprido e com o pragmatismo de quem sabe que agora o que pode fazer pelo marido é “rezar”, – que cumpre todos os dias -, Deolinda diz não ter saudades do companheiro no sentido em que todos nós imaginamos este processo. Primeiro, cuidou-lhe do corpo, agora continua a olhar por ele: trata-lhe da alma.

“Não tenho saudades nenhumas, foi muito trabalho. Tenho é saudades de cuidar de mim, dos meus netos e dos meus bisnetos. A vida começou tal e qual depois da morte, mas de outra maneira. Morreu, agora precisa que reze pai-nossos por ele. Voltei a gozar a minha vida”, atira, de voz pronta e enérgica, esta mulher a quem o pai roubou à escola ainda na segunda classe para trabalhar no campo. “Mas sei que tinha capacidade para mais. Tenho pena”, desabafa.

Com estas características, esta leiriense inscreve-se no perfil-tipo da cuidadora informal em Portugal. É mulher, foi cuidadora informal na maior parte do tempo do intervalo previsto – entre os 45 e os 75 anos -, tem baixas habilitações literárias e rendimentos baixos. Valeram-lhe algumas poupanças.

“Às vezes, até diziam que parecíamos um casal de namorados”

Deolinda é uma das centenas de milhares de pessoas que, atualmente e em território nacional, têm um familiar a cargo, que poupam custos à saúde nacional e que, muitas vezes, guardam silencio das agruras e das dificuldades.

Partir de saúde, regressar doente

Anos depois de casar, Deolinda dizia adeus a Zé, que partia para a Alemanha, rumo a um sustento maior do que o que o campo, nas redondezas de Fátima, poderia gerar. Em Portugal e sob a tutela desta mulher, ficavam quatro descendentes: a mais velha, com dez anos, a mais nova, com três. Deolinda tinha ainda “a fazenda e a criação” a cargo, recebendo, depois, as ajudas monetárias do marido. E as visitas: “Ele vinha um mês no inverno para ajudar na poda e, em abril, para semear as terras. Eu fui lá três vezes”, recorda.

Com o passar dos anos, esta hoje octagenária teve de cuidar dos sogros: “fi-lo durante nove anos”, recorda. A sua nova profissão – a de cuidadora informal – tinha acabado de nascer e Deolinda não sabia ainda para o que estava guardada.

“Gostava de ser eu a dar-lhe as voltas, cá à minha maneira e com a minha paciência. Mesmo a não poder [quando recuperava das cirurgias], fiquei com pena de o perder”

Apesar de andar a pedir pedir a Zé que regressasse da Alemanha – uma insistência que durou mais de dez anos -, ele achava que ainda não era altura de fechar o cofre. Regressaria ao fim de 22 anos, com uma reforma de invalidez na mala.

Uma vida feita mesmo em comum

“Mesmo com o Zé doente, ia de férias com ele para a praia da Nazaré, todos os verões. Ia com ele à missa aos domingos, levava-o na cadeira de rodas. Até levava uma garrafa de água para que ele bebesse depois de tomar a hóstia. Ia comigo para todo o lado. Às vezes perguntavam-me por que não queria tirar férias sozinha? Não! Ia com ele para todo o lado, sempre.”

Deolinda chegou até a comprar peças de roupa iguais para si e para o marido, para usarem quando saíam juntos à rua. Mas nem sempre era possível. Quando não, esta mulher tentava ir com indumentária dentro do mesmo tom. “Às vezes, até diziam que parecíamos um casal de namorados”, ri-se, com orgulho.

Em casa, a vida era dura. De dia e de noite. “Eu é que lhe dava o comer, lavava-o, dava-lhe banho, às vezes duas vezes por dia, punha-o numa grua especial para conseguir fazer isso. Tive de fazer obras em casa, mas tratei sempre dele, tive ajuda das minhas filhas já mais na fase final”, relata. “Foi muito trabalho, mas o corpo tem muita força… e gostava de ser eu a dar-lhe as voltas, cá à minha maneira e com a minha paciência. Mesmo a não poder [quando recuperava das cirurgias], ficava com pena de o perder”. E Deolinda repete esta frase muitas vezes: “Nunca chorei, muito menos à frente dele.”

“Quando ele morreu, até a médica que foi lá a casa me deu os parabéns, porque ele está muito zeladinho e limpinho”

A recompensa chegava todos os dias. Era um gosto ver o marido bem cuidado, era um gosto levá-lo para todo o lado e perceber que todos reparavam no quão “bem tratado estava o Zé“, desfia a octagenária. “Quando ele morreu, até a médica que foi lá a casa me deu os parabéns, porque ele está muito zeladinho e limpinho. A minha filha, às vezes fazia-lhe a barba, mas aquilo não estava a meu jeito”, repara. “E ainda hoje digo aos meus netos – a quem ofereci máquinas de barbear – ‘Vocês não pareçam o [Franciscco] Lucas Pires!’. Bonito é um rapaz novo andar com a cara barbeada”, conta, entre risos.

E as dificuldades da doença’ Agressividade, por exemplo!

Mas se cuidar de uma pessoa já é, mesmo assim, uma coisa difícil, ainda há a questão da agressividade, que é uma realidade bem mais presente do que se possa imaginar, e que Deolinda diz ter conhecido bem. “Ele às vezes batia-me. Eu nunca lhe bati, tentei levá-lo com paciência, o que às vezes era difícil. Uma vez, empurrou-me de tal maneira que caí e bati com a cabeça no sofá. E disse-lhe que se voltasse a fazer aquilo, que o punha longe, num lar. E ele compreendia”, desabafa.

A frustração do doente, o desaire, a consciência de que está com faculdades diminuídas ou amputadas, todos esses pensamentos bailam, durante muitos anos, na cabeça de quem está dependente. A agressividade surge, muitas vezes, como resposta, logo eles que não dispõem de todas as capacidades para controlarem esses ímpetos, o que dificulta tudo. “Às vezes cuspia a comida de propósito, fazia coisas más, mas eu lá o tentava levar à minha maneira. Pior foi no início, quando ele tinha ainda muita força, andava e fugia-me, batia-me, empurrava-me. Mas eu ameaçava-o com a minha muleta se me continuasse a tratar mal e ele compreendia”.

“Ele às vezes batia-me. Eu nunca lhe bati, tentei levá-lo com paciência, o que às vezes era difícil”

Mas isto não era, nem foi, a vida toda de Deolinda e de Zé. Foram antes os “momentos mais complicados”. Hoje, enquanto fala com o Delas.pt, esta ex-cuidadora informal relata: “Tenho aqui a fotografia dele em casa, à minha frente, e todos os dias lhe rezo.”

“O que me fez falta? Era ele falar, não conseguia”

“Que doença? Não é coisa que se dê nem a um cão”, analisa agora esta mulher que se recusou a pôr o marido, com Alzheimer e também um AVC, num lar ou a pedir ajuda. “Num lar? Não! O lar é em casa, é a pessoa que lhe fala desde sempre, o que lhe dá muita saúde. Isso é meio caminho andado para uma pessoa que não fale”, reage, deixando uma mensagem: “Temos de ter carinho pelas pessoas e toda a vida. Se aquele homem trabalhou sempre e se teve o azar de cair nestas doenças, merece todo o carinho, dedicação e zelo.”

Mesmo quando a família perguntava por essa possibilidade, Deolinda chutava-a para longe e provocava: “Era um belo exemplo que vos deixava a vocês [filhos], aos meus netos e aos meus bisnetos…”

“Se aquele homem trabalhou sempre e se teve o azar de cair nestas doenças, merece todo o carinho, dedicação e zelo”

Hoje, mediante a pergunta sobre o que lhe fez falta – apoios, instituições, pessoas – Deolinda refere apenas: “O que me fez falta? Era ele falar, não conseguia. Nunca me prendi com os bens da terra e com o dinheiro. Só queria ter o dinheiro que chegasse para cuidar dele, para ter a certeza que podia comprar as melhores fraldas e os melhores cremes. E nunca me apanharam zangada, nem a chorar. Sempre disse que ia fazer o que pudesse”, relata. ” Jurei isso em frente ao altar, foi com isso que me comprometi.” E foi mesmo o que Deolinda fez até 20 de janeiro de 2013.

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