Com quase 23 anos de carreira, a banda portuguesa The Gift prepara-se para iniciar a Altar Tour 2018. Uma série de espetáculos nacionais e internacionais que vão dar a conhecer ao vivo Altar, o sétimo álbum e mais recente trabalho da banda de Alcobaça. Lançado em abril de 2017, o disco é composto por dez músicas, todas elas com letra inglês e contou com a participação do produtor Brian Eno e foi considerado pelos Gift o melhor álbum que realizaram até ao momento por vários meios especializados.

Em entrevista ao Delas o quarteto, composto por Sónia Tavares (vocalista), Nuno Gonçalves (teclista), Miguel Ribeiro (guitarrista e baixista) e John Gonçalves (teclista e baixista), falou sobre Altar e temas da homossexualidade e transexualidade. Sónia Tavares falou ainda sobre o seu gosto pela moda, de como é ser a única mulher da banda e ainda da liberdade e a emancipação da mulher portuguesa, afirmando que a figura feminina estereotipada “já foi com o Salazar”.

The Gift, banda portuguesa formada por qutrao elementos. Da esquerda para a direita: Nuno Gonçalves (teclista), Miguel Ribeiro (guitarrista e baixista), Sónia Tavares (vocalista) e John Gonçalves (teclista e baixista). [Fotografia: Orlando Almeida / Global Imagens] (Orlando Almeida / Global Imagens)

Consideram o último álbum, Altar, o vosso melhor trabalho até ao momento. Porquê?

Nuno Gonçalves (NG): O facto de termos trabalhado com Brian Eno acabou por influenciar o gosto que tivemos em fazer este trabalho. O que se retira desta experiência é mesmo o processo em si. O resultado também, claro, mas para nós enquanto músicos, pessoas e banda, o processo de gravação e de descoberta do personagem Brian Eno foi a grande chave deste disco. Esse processo em que desdobramos um bocadinho a personalidade dos Gift e experimentamos coisas novas, assim como o momento em que percebemos como Brian nos punha, quase todos os dias, em confronto connosco mesmos enquanto músicos. Isso foi a grande conquista do disco e, talvez por isso, o consideremos o mais bem conseguido. Foi um trabalho notável e quando ouvimos o álbum, de uma ponta à outra, percebemos claramente que é um disco grande. Então quando comparado com outros, consideramos que é o disco mais bem conseguido, mas também que o próximo será ainda melhor. Temos quase 23 anos de carreira, continuamos a conquistar público novo, inclusive além-fronteiras, e isso acaba por ser o melhor para uma banda com a idade dos Gift. Além disso, sempre achámos que o melhor ainda estava para vir e que o futuro acaba por ser muito mais inspirador do que propriamente olhar para trás.

A língua predominante dos temas The Gifts é o inglês, embora também tenham alguns em português. Este último disco é todo escrito na língua inglesa. Aconteceu ou foi propositado?

Sónia Tavares (ST): Nunca fazemos nada de propósito, a inspiração surge como ela quiser e se às vezes surge em português, outras vezes surge em inglês. Na realidade, foi por acaso que não fizemos nenhuma canção em português, ainda que o Brian nos tenha desafiado a fazê-lo. Mas já tínhamos estas dez, que faziam parte do alinhamento do disco, e achámos que o trabalho estava completo assim, não havendo necessidade de colocar mais nenhuma canção, fosse em português ou noutra língua.

“Nós todos éramos e continuamos a ser grandes fãs de Brian Eno e o início foi um pouco como ir para a cama todos os dias a pensar se aquilo tinha sido um sonho, porque conhecer uma pessoa daquela dimensão, para nós foi algo gigante”, Miguel Ribeiro.

Como conheceram Brian Eno?

ST: O Brian Eno cruzou-se no nosso caminho há alguns anos, no Brasil. Na realidade cruzou-se com o Nuno e foi uma excelente aventura, porque o facto de eles terem travado conhecimento no Brasil deu azo a uma amizade. Depois, por acaso, estávamos a fazer um espetáculo em Vigo e ele estava lá. Foi ver-nos, gostou da banda, gostou do que viu e ouviu e passado algum tempo estávamos nós na casa dele a convidá-lo para fazer parte deste projeto, um plano que ainda não tinha nome e no qual decidiu embarcar. Percebemos de antemão que ia ser uma experiência pelo menos diferente.

“O Brian para nós é… Talvez o melhor produtor do mundo”

E como é que foi trabalhar com Brian Eno?

Miguel Ribeiro (MR): Bem, temos de dividir a parte de músico da parte pessoal. Nós todos éramos e continuamos a ser grandes fãs de Brian Eno e o início foi um pouco como ir para a cama todos os dias a pensar se aquilo tinha sido um sonho, porque conhecer uma pessoa daquela dimensão, para nós foi algo gigante. Como músicos, já nos cruzámos com pessoas com algum nome, mas nunca tivemos ninguém que nos ensinasse tanto em tão pouco tempo, esse pouco tempo foram dois anos. Aprendemos muito. Além de toda a parte de experiência pessoal, porque ele é um excelente contador de histórias, contou-nos histórias de bandas e artistas com os quais já trabalhou diretamente e de quem nós somos fãs. Toda esta experiência foi fantástica. É algo que vai ficar na nossa vida e que não vamos poder repetir desta forma, porque o Brian para nós é… Talvez o melhor produtor do mundo.

Esse contacto próximo que tiveram com Brian Eno possibilitou mostrarem-lhe Portugal?

MR: Ele já tinha estado cá, mas connosco acabou por ter a oportunidade de conhecer Alcobaça, que é a nossa terra natal. E, por acaso, houve uma frase com muita piada. Brian sempre achou que as músicas do Nuno eram grandes, gigantes, e muitas vezes queria até criar algo mais contido, não tão orquestral, não tão gigante. Então, quando chega à frente do Mosteiro de Alcobaça, diz que percebe porque é que o Nuno faz as coisas daquela forma. Conseguimos mostrar pouco, porque grande parte do disco foi gravado em Espanha, mas ele é uma pessoa muito observadora. Aprende por ele próprio e não precisa de grandes professores para conseguir absorver tudo aquilo que o rodeia e isso faz dele a pessoa especial que ele é. É alguém que cresce todos os dias e também faz com que os outros cresçam à volta dele.

Um dos temas do álbum Altar, o tema ‘Big Fish’, é descrito como uma ode ao presente. Este é um disco que traz alguma mensagem à sociedade?

ST: Este disco traz sobretudo música à sociedade. Nunca temos na cabeça uma mensagem escrita. Falamos de pessoas, falamos de nós, de histórias, de ficção, mas sobretudo de sentimentos que é uma coisa recorrente na música dos Gift e que em conjunto com Brian Eno deu-nos azo à criatividade de uma forma muito engraçada e diferente. Mas primeiro a mensagem é para nós, porque quando fazemos música é para nós, depois se as pessoas gostarem tanto melhor.

“Se tudo correr bem, os nossos filhos já vão pensar: ‘Como é que antes não era permitido, duas pessoas que se amam, apesar de serem homens ou mulheres, não se poderem casar?'”

Em 2005, a banda The Gift recebeu por parte da Associação ILGA (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero) o prémio Arco-Íris, pelo videoclipe Driving You Slow, onde a figura central é o transexual Luna. Mais de dez anos depois, consideram ainda haver muito a fazer neste campo?

MR: Se nós pudermos ajudar em alguma coisa e se, na altura, ajudámos e fomos reconhecidos por isso claro que temos orgulho. Mas ainda muita coisa há para fazer até acabar com essas diferenças e mostrar que não faz sentido haver essa diferenciação de seres humanos.

ST: Há sempre muito para fazer, ainda que as coisas tenham avançado no nosso país. Se há uma coisa que os The Gift são é uma banda livre de preconceitos e quanto mais pessoas monopolizarmos para o nosso lado, melhor. Na realidade somos pessoas livres, vivemos num país livre. É claro que somos a favor do casamento homossexual, estamos a falar de seres humanos, de sentimentos, de partilha. E temos muita pena que o resto da sociedade ainda não esteja adaptada aos sinais dos tempos. Mas o panorama está a mudar e, felizmente, os nossos filhos já vão encarar o facto de os colegas terem dois papás ou duas mamãs. E o que para os nossos pais ou os nossos avós era uma coisa completamente absurda – nós acho que somos a geração que faz a transição –, se tudo correr bem, os nossos filhos já vão pensar: ‘Como é que antes não era permitido, duas pessoas que se amam, apesar de serem homens ou mulheres, não se poderem casar?’ Porque isso perante os olhos de Deus, do Diabo, do que quer que seja, é uma aberração.

E essa mudança de pensamento e atitude por parte da sociedade é algo que se pode conseguir através da música?

ST: Não.

NR: Eu acho que já não. Pelo menos não da maneira que ouvíamos John Lennon na altura de toda a libertação dos anos 60, altura em que a política tinha muito a ver com a música. Hoje em dia, não há mensagens que se possam abstrair, acho que a música é mais para consumo próprio, não para consumo social. Mas se conseguirmos evoluir uma sociedade através de uma música, melhor ainda. Embora a nossa intenção enquanto músicos nunca tenha sido essa.

MR: Nós agimos da maneira de agimos porque achamos correto. Nunca pensámos que estaríamos a fazer alguma coisa nesse sentido e ficámos surpreendidos nessa altura [em que receberam o prémio Arco-Íris]. É algo natural da nossa parte e qualquer banda ou pessoa que tenha exposição acaba por influenciar outras pessoas, não tanto como no tempo de John Lennon ou The Beatles, mas claro que se os media dão exposição e se a pessoa fala, provavelmente vai acabar por influenciar, bem ou mal.

“‘Estou a falar com o senhor?’, e eu: ‘Senhora. Sónia Tavares’. ‘Ah desculpe!’. ‘Não faz mal… Toda a vida me aconteceu’. Sim, continua a acontecer, mas é por esta voz andrógina”

Além do vosso posicionamento enquanto banda nestas questões de LGBT, em 2008, Sónia Tavares foi capa de uma revista gay portuguesa, Com’Out, em que revelou que havia quem ficasse na dúvida quanto ao seu género dada a sua voz. Ainda hoje isso acontece?

ST: Claro que acontece e eu acho imensa piada. Ainda a semana passada, a senhora da companhia telefónica disse: ‘Estou a falar com o senhor?’, e eu: ‘Senhora. Sónia Tavares’. ‘Ah desculpe!’. ‘Não faz mal… Toda a vida me aconteceu’. Sim, continua a acontecer, mas é por esta voz andrógina. Algo que até gosto de cultivar um bocadinho, tal como o look. Tenho-a [a voz] desde que nasci, não a comprei. Acho que é uma das fortes marcas dos The Gift, ainda que as composições do Nuno sejam muito especiais e muito específicas. Julgo que aos primeiros acordes se percebe que são os The Gift, se havia dúvidas depois entra a Sónia a cantar e percebe-se que são os The Gift!

De facto, a Sónia apresenta um estilo bastante próprio. A moda é uma área que a fascina?

ST: É, é uma área que me desperta muito a atenção, ainda que eu não seja uma seguidora assídua às tendências. Mas gosto de fazer eu o meu próprio look, ter o meu próprio estilo. Não me rejo pelo que está na moda, ainda que me influencie de alguma forma, porque também gosto de estar atualizada e sendo eu a cara e estando à frente de uma banda, dita moderna e independente, não faz sentido que assim não seja.

E essa mudança agora nas sobrancelhas, a que se deve?

ST: Revela que as pessoas não sabem se estou a brincar ou a falar a sério, porque não conseguem perceber a minha expressão. Não tenho.

The Gift, banda portuguesa formada por qutrao elementos. Da esquerda para a direita: Nuno Gonçalves (teclista), Sónia Tavares (vocalista), Miguel Ribeiro (guitarrista e baixista) e John Gonçalves (teclista e baixista). [Fotografia: Orlando Almeida / Global Imagens]
A imagem da mulher tem vindo a alterar-se ao longo do tempo, começando-se a esbater o estereótipo de mulher?

ST: Isso era um bocadinho mais dos anos 50, altura em que havia livros que ensinavam as mulheres a agirem perante os homens. Como serem, como diz o Marco Paulo: ‘Uma lady na mesa e uma louca na cama’. Era precisamente isso que se ensinava nos livros dos anos 50. Hoje em dia acredito que, em Portugal, a mulher está cada vez mais livre e cada vez mais emancipada. Agora até são os homens que estão a ficar um bocadinho capacho. É verdade. Mas a imagem da mulher estereotipada, de como deve fazer, porque deve fazer… Acho que isso já acabou. Já foi com Salazar.

E como é ser a única mulher da banda?

ST: É igual. Creio que se fosse um homem era precisamente o mesmo. A única diferença é que não levanto tanto peso a carregar o material, mas de resto é tudo igual. Somos mais do que homens e mulheres, somos irmãos. Não há essa distinção, nunca houve, nem entre nós, nem entre qualquer membro da nossa equipa e se isso acontecesse eu não ia deixar, como é evidente.

“Este disco ainda tem coisas para dar, havemos de continuar a tocar e depois para o ano logo se vê”

Vêm aí concertos. Onde podemos assistir ao Altar dos Gift?

ST: Vamos começar por Londres, no dia 24, na Union Chapel, que é uma sala emblemática, uma antiga capela onde já passaram grandes artistas e da qual nós vamos ter o prazer e o orgulho de poder usufruir para mostrar este ‘Altar’. O ano passado tocámos numa sala muito mais pequena em Londres, este ano estendemos ao público mais lugares, isto significa que qualquer dia estamos a tocar no Palácio de Buckingham. Estou a brincar. Depois temos os Coliseus, esses sim são a nossa grande prioridade. No dia 2 e 3 de março, Porto e Lisboa, respetivamente, mas depois disso ainda há muito para fazer. Vamos estar em Luxemburgo, Amesterdão, Suíça, França e Rússia. Portanto, o Altar segue caminho para o Norte da Europa.

E novos projetos?

NG: Este disco ainda tem coisas para dar, havemos de continuar a tocar e depois para o ano logo se vê. Mas à partida teremos que fazer coisas novas. Enquanto criadores nunca ficámos muito colados às coisas feitas, queremos fazer mais. É natural e normal que os Gift continuem a fazer música nova.

 

[Imagem de destaque:Orlando Almeida / Global Imagens]