Tráfico humano, prostituição e casos reais em destaque no teatro

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Peça de teatro 'Silêncios e Tanta Gente'[Fotografia: Boutique da Cultura/Facebook]

Tráfico humano, prostituição, migração, proxenetismo. Quatro histórias, quatro testemunhos, quatro vidas no sombra que agora chegam ao placo e para trazer à luz o drama de quem sobrevive àquelas realidades e de como prossegue ou não a vida.

Silêncios e Tanta Gente é a peça de teatro que revela estas realidades, escrita pela responsável do Movimento Democrático de Mulheres (MDM), Sandra Benfica, que tem estado em cena na Boutique da Cultura, em Lisboa, e que viu as datas já serem alargadas para novas exibições.

Ao Delas.pt, Sandra Benfica explica porque escreveu esta peça e porque escolheu trazer estes casos “invisíveis” até aos palcos. “Teve a finalidade de contribuir para quebrar o silêncio e a ignorância que ainda persiste em torno deste crime”, afirma a responsável e autora da peça que conta com os atores João Borges de Oliveira, Joana Tavares, Rita Dias e Rúben Ferreira.

Porque decidiu abordar estes temas do tráfico humano e da prostituição?

A verdade é que decidiram por mim. Nunca me passou pela cabeça escrever, muito menos para teatro. Esta peça nasceu da teimosia do João Borges de Oliveira, diretor artístico da Boutique da Cultura, projeto a que também estou ligada, e também encenador desta peça. Há muito que falávamos sobre estas temáticas. Portanto, foi tomando forma a ideia de encenar histórias de vida de pessoas vítimas de tráfico humano com a finalidade de contribuir para quebrar o silêncio e a ignorância que ainda persiste em torno deste crime. Coube-me, numa primeira fase, escolher as histórias, bem conhecidas pelo trabalho realizado pelo MDM, e depois colocou-se o desafio maior: dar vida à vida destas pessoas. Falo em desafio, a par de um grande atrevimento, porque o que norteou este trabalho foi a verdade e a justiça. E desejava muito ter o engenho necessário para não defraudar esse objetivo.

[Fotografia: Boutique da cultura/Facebook]
[Fotografia: Boutique da cultura/Facebook]

Porque escolheu aqueles quatro casos que integram a peça?

Porque os seus relatos de cativeiro, exploração e violência me perseguem há muito. Geralmente, quando se recolhe histórias de vitimas quer seja para exploração sexual, laboral, servidão ou extração de órgãos, ficamos pelo estrito registo desse período das suas vidas. Reduzimos, sem querer, essas pessoas à condição única de vítimas de uma realidade que é tão distante para a esmagadora maioria de nós. Mas sempre me interroguei: quem são e foram estas pessoas? Que sonhos acalentavam antes de os roubarem? Que futuro desenhavam antes de ser brutalmente interrompido? As histórias da Makahiya, da Tikirit, do Marco e do seu amigo Prasat e do Pablo respondiam a algumas dessas interrogações, permitindo que o público as olhasse como pessoas de corpo inteiro, próximas, e reais. Tão reais como a notícia, chegada na véspera da estreia, de que uma menina de cinco anos tinha sido resgatada no Aeroporto de Lisboa. Que fim lhe estava destinado? Quem trafica e compra uma menina de cinco anos?

É uma convocação à consciência?

É preciso que se saiba que o tráfico de pessoas não acontece lá longe. Acontece aqui, o que também é da nossa responsabilidade. A história dos quatro está seguramente a ser vivida, neste exato momento, por muitos outros milhões de pessoas. O tráfico de pessoas é um dos mais lucrativos negócios ilícitos do mundo. Alimenta-se da pobreza e das guerras. Da extrema vulnerabilidade económica e social em que vivem milhões de pessoas, forçadas a partir em busca de uma vida melhor. Alimenta-se da ganância infinita que não hesita em tratar seres humanos como objetos, como mercadoria transacionáveis, descartável. E persiste protegido por uma tremenda hipocrisia.

[Fotografia: Boutique da cultura/Facebook]
[Fotografia: Boutique da Cultura/Facebook]

De onde lhe chegaram estas quatro histórias em concreto?

Makahiya, Tikirit, Marco e Pablo (nomes fictícios) são pessoas resgatadas. Os relatos foram propositadamente escolhidos de fontes de agências e projetos das Nações Unidas. Contudo, muitos dos sentimentos expressos pelas personagens contam histórias de outras pessoas que conhecemos de perto. É que a dor e a humilhação sofrida são universais. Makahiya, explorada na prostituição, morreu, creio que em 2004, de HIV/SIDA, mas deixou-nos mais do que a sua história. Deixou-nos um poderoso apelo para que lutássemos com todas as armas ao nosso alcance para acabar com este flagelo.

Em alguns dos casos percebe-se que o agredido se transforma em agressor. Onde é que a sociedade e as políticas falham? O que pode ser feito para mudar?

Esta realidade revela à saciedade a face mais negra do sistema capitalista onde não há qualquer limite à exploração e à violência. É urgente combater este crime que atravessa fronteiras, castiga sobretudo as mulheres e arrasa os valores da dignidade da pessoa humana. E esse combate não pode ser desligado das suas causas. São hipócritas todos os que agitam a bandeira da luta contra o tráfico com uma mão e com a outra defendem e aplicam políticas que colocam as pessoas numa situação de extrema vulnerabilidade e insegurança. Também não se pode desligar o crime de tráfico do fim a que se destinam as suas vítimas. Por exemplo, na Europa, mais de 76% das vítimas de tráfico são mulheres, e pelo menos 15% são crianças, quase todas para fins de prostituição. Isto só acontece porque o tráfico incorporado em ramos empresariais “legítimos”, concretamente da dita “indústria do sexo”, em países como a Alemanha e a Holanda, onde o sistema prostitucional foi legalizado ou regulado pelo Estado. São portanto estados proxenetas, que lucram, e muito, com este crime.

É a primeira peça que escreve. Porque o fez agora? O que a levou a este processo?

A primeira e julgo que a última. Nunca me passou pela cabeça. A oportunidade surgiu como descrevi e materializou-se, primeiro, por um imperativo de consciência e segundo porque foi sempre assumida como uma obra coletiva. Ninguém dá vida a nada sozinho. Esse texto, esse espectáculo, só foi possível pelo trabalho único e insubstituível do MDM ao longo de muitos anos e da disponibilidade, arte e sensibilidade da equipa da Boutique da Cultura. Cabe-me apenas agradecer a confiança depositada e o privilégio de fazer parte destes dois maravilhosos projetos.

Sandra Benfica [Fotografia: Boutique da cultura/Facebook]
Sandra Benfica [Fotografia: Boutique da Cultura/Facebook]

É possível que venha a preparar mais textos? Se sim, quais?

A única coisa certa é continuar a chatear amigos para escreverem algumas histórias que gostava de ver registadas.

Que realidades gostaria de abordar?

No início do século passado a minha avó paterna saiu da sua terra e veio servir para Lisboa. Sozinha. Tinha 8 anos. Nunca soube reconhecer uma palavra escrita para além da que compunha o seu nome próprio: Carolina. Deixou-me a sua história contável, mas sei que a outra, a que a ela apenas dizia respeito, é simultaneamente a história de muitas outras meninas invisíveis e a história do nosso país que precisa ser resgatada. São estas as realidades que me interessa abordar: a das invisíveis.

[Fotografia: Boutique da Cultura/Facebook]
[Fotografia: Boutique da Cultura/Facebook]

A exibição da peça foi estendida nas datas, mas pode vir a apresentar-se noutros pontos do país? Se sim, o que está já agendado?

Vamos voltar já nos dias 13, 14 e 15 de outubro na Boutique da Cultura e estamos a preparar digressão integrada no projeto do MDM “para além do amor” que aborda a multiplicidade das violências contra as mulheres. É possível também que brevemente cruze o Atlântico.