Tribunal Constitucional trava ‘barrigas de aluguer’. E agora?

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Há normas inconstitucionais na lei da gestação de substituição (conhecida vulgarmente como ‘barriga de aluguer’). Esta é a convicção do Tribunal Constitucional (TC) que, na terça-feira, 24 de abril, emitiu o parecer sobre o pedido de fiscalização desta norma feito pelo CDS-PP e por alguns deputados do PSD, incluindo o líder da bancada Fernando Negrão. Em causa, alegaram então os subscritores, estariam os direitos à identidade pessoal e genética, entre outros princípios constitucionais.

Esta posição não compromete os processos que já entraram em tratamentos. Porém, é importante sublinhar que, desde 13 de abril e ao fim de cerca de oito meses de vigência do clausulado, que já estão em autorizados dois procedimentos. Há mais sete – noutros momentos processuais – que podem, com esta decisão, vir a sofrer um duro revés.

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O TC decidiu, “por unanimidade, com fundamento em imperativos de segurança jurídica e em cumprimento do dever do Estado de proteção da infância, limitar os efeitos da sua decisão, de modo a salvaguardar as situações em que já tenham sido iniciados os processos terapêuticos de PMA (…), em execução de contratos de gestação de substituição já autorizados pelo CNPMA“. “Relativamente a tais situações, as aludidas declarações de inconstitucionalidade (…) não terão qualquer efeito”, prossegue o acórdão.

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A líder dos centristas, Assunção Cristas, já veio a terreiro aplaudir a decisão. “Aguardamos a possibilidade de ler com muita atenção e profundidade aquilo que foi a decisão do TC, mas achamos relevante que o CDS tenha tomado esta iniciativa, que tenha liderado este pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade“, defendeu, em declarações aos jornalistas na Assembleia da República.

[Fotografia: Octavio Passos/Global Imagens]

“Colocámos várias questões relacionadas com a dignidade da pessoa, quer da criança e a salvaguarda dos direitos da criança, quer da gestante de substituição, e foram vários os pontos que tocámos na nossa avaliação em relação aos quais colocámos a interrogação sobre se estavam ou não conformes à Constituição”, afirmou.

Aos jornalistas, Cristas ilustrou que “por exemplo, a possibilidade de uma criança nascida no decurso de um processo destes poder vir a saber quais eram os seus progenitores biológicos” foi uma das matérias sinalizadas, dado o “grande interesse do ponto de vista do património genético, da prevenção de doenças“.

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Um conjunto de pessoas está a contribuir para o aumento da infelicidade de outros seres humanos”, reage Eurico Reis. O juiz desembargador e responsável do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) – entidade responsável pela autorização dos processos de gestação de substituição – diz mesmo tratar-se de “um ataque” a uma “forma muito equilibrada que o legislador encontrou de dar felicidade às pessoas”.

Eurico Reis, presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida [Fotografia: Nuno Pinto Fernandes/Global Imagens]

Reis alertou para as consequências desta decisão. “Vai deixar de haver dadores, vamos gastar rios de dinheiro a importar gâmetas ou então para a Procriação Medicamente Assistida (PMA) toda, ficando a funcionar apenas para aqueles para quem ainda é possível realizar tratamentos com material dos próprios“, disse, em declarações à agência Lusa.

O magistrado apresenta ainda uma incongruência do documento produzido pelo TC vincando que o mesmo não levantou problemas em relação ao anonimato dos dadores, plasmado na lei da Procriação Medicamente Assistida (PMA), de 2006, levantando-os agora.

O que alega, afinal, o diploma?

A lei tem uma “excessiva indeterminação” em relação “aos limites a estabelecer à autonomia das partes do contrato de gestação de substituição, assim como aos limites às restrições admissíveis dos comportamentos da gestante a estipular no mesmo contrato”, escrevem os juízes do TC.

“A concretização de tais limites é indispensável tanto para o estabelecimento de regras de conduta para os beneficiários e para a gestante de substituição, como para balizar a definição pelo Conselho Nacional da PMA dos critérios de autorização prévia do contrato a celebrar entre os primeiros e a segunda”, lê-se no acórdão.

O TC considerou que a Lei da PMA “não oferece uma medida jurídica com densidade suficiente para estabelecer parâmetros de atuação previsíveis relativamente aos particulares interessados em celebrar contratos de gestação de substituição nem, tão-pouco, estabelece critérios materiais suficientemente precisos e jurisdicionalmente controláveis para aquele Conselho exercer as suas competências de supervisão e de autorização administrativa prévia“.

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O Tribunal decidiu que se encontravam lesados princípios e direitos fundamentais consagrados na Constituição na “limitação da possibilidade de revogação do consentimento prestado pela gestante de substituição a partir do início dos processos terapêuticos de PMA (…), impedindo o exercício pleno do seu direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade indispensável à legitimação constitucional da respetiva intervenção na gestação de substituição até ao cumprimento da última obrigação essencial do contrato de gestação de substituição, isto é, até ao momento da entrega da criança aos beneficiários“. Na mesma situação está, segundo o TC, “a insegurança jurídica para o estatuto das pessoas gerada pelo regime da nulidade do contrato de gestação de substituição“.

Um diploma de “gestação difícil”

A lei que regula o acesso à maternidade de substituição nos casos de ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez, foi publicada em Diário da República em 22 de agosto de 2016.

A legislação foi publicada depois de introduzidas alterações ao diploma inicial, vetado dois meses antes pelo Presidente da República, que o devolveu ao parlamento para que a lei fosse melhorada e incluísse “as condições importantes” defendidas pelo Conselho de Ética.

Na altura, Marcelo Rebelo de Sousa justificou a decisão com o argumento de que faltava na lei “afirmar de forma mais clara o interesse superior da criança ou a necessidade de informação cabal a todos os interessados ou permitir, a quem vai ter a responsabilidade de funcionar como maternidade de substituição, que possa repensar até ao momento do parto quanto ao seu consentimento”.

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A lei de gestação de substituição foi aprovada, com alterações após o veto presidencial, em 20 de julho de 2016, com os votos favoráveis do BE (partido autor da iniciativa legislativa), PS, PEV, PAN e 20 deputados do PSD, votos contra da maioria dos deputados do PSD, do PCP, do CDS-PP e de dois deputados do PS e a abstenção de oito deputados sociais-democratas.

As alterações introduzidas pelo BE estabelecem essencialmente a necessidade de um contrato escrito entre as partes, “que deve ter obrigatoriamente disposições sobre situações de malformação do feto ou em que seja necessário recorrer à interrupção voluntária da gravidez“.

CB com Lusa

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