TV: programas estão a alimentar o regresso ao Estado Novo?

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[Fotografia: Pexels/Koolshooters]

Tânia Ribas de Oliveira entrevistou, no programa da RTP que conduz A tarde é Sua, Nuno Cláudio Cerejeira, para falar sobre a paternidade extremosa e da experiência de ter três filhos.

O problema – que está a resultar em polémica – é que o entrevistado tem um passado ligado à extrema-direita, tendo, segundo o DN, pelo menos duas condenações no cadastro em processos relacionados com violência, racismo e extrema-direita.

´Tânia Ribas de Oliveira entrevista Nuno Cláudio Cerejeira no programa da RTP, 'Nissa Tarde'
´Tânia Ribas de Oliveira entrevista Nuno Cláudio Cerejeira no programa da RTP, ‘Nissa Tarde’

Um caso que levou SOS Racismo a condenar o caso que ocorreu a 24 de outubro, considerando tratar-se de “suavizar a imagem de um indivíduo comprovadamente envolvido num crime de ódio racial” e que já levou a RTP a explicar-se sobre o sucedido.

Uma polémica que volta a ser reacendida depois de a TVI ter recebido Mário Machado e de os canais em sinal aberto, SIC e a estação de Queluz de Baixo, terem feito campanhas de marketing dos novos programas da manhã com iconografia e conceitos que recuam no tempo. Uma reportagem que pode ler abaixo.

Imagens da comunicação dos programas da manhã da TVI e da SIC em finais de 2018, início de 2019 [Fotografia: DR]

Aventais, capotes alentejanos, rolos na cabeça e ruralidade. A isto junta-se a ideia da casa aberta e honesta, que se apresenta ao público tal como é. Quem tem visto televisão no último mês, sobretudo durante o dia, dificilmente tem escapado a estas imagens (pode recordar algumas na galeria acima). E porquê? Porque aqueles têm sido os principais elementos de promoção da maior guerra televisiva dos últimos anos: a que opõe Manuel Luís Goucha, na TVI, e Cristina Ferreira, na SIC.

Para Irene Flunser Pimentel, todos aqueles símbolos “podem ser completamente agregados a uma nostalgia do passado”. Mas pior mesmo é que a forma como está a ser feito é “completamente acrítica, o regresso deste passado não está a ser contextualizado”, refere a historiadora ao Delas.pt confrontada com a aposta de uma eventual ideologia de direita e extrema-direita em imagens.

Vídeos de promoção e divulgação de formatos que ganham agora nova força e perspetiva numa altura em que as manhãs da TVI estão no centro da polémica por terem convidado Mário Machado, condenado por crimes de ódio racial e líder da organização da extrema-direita Nova Ordem, para debater o tema “Precisamos de um novo Salazar?”. Flunser Pimentel reage: “Esta é a história de um convite a um fascista cujo percurso é conhecido e que vai contra a Constituição Portuguesa, coloca uma pessoa em cena a fazer propaganda pela violência, pela homofobia”, reitera.

“O maior perigo é estarem a copiar o pouco que sabem de história e mal”, diz Irene Flunser Pimentel

Mesmo quando o entrevistador e anfitrião do programa vive um casamento homossexual que é do conhecimento público? “Estamos a caminhar para uma tendência segundo a qual se faz apenas o que é mais simples, sem pensar, sem contextualizar, olhar para o que é bom e mau à luz de cada coisa, para o maniqueísmo, e isto só reforça o preconceito. Tudo isto é feito como se fosse um espetáculo”, refere a historiadora.

E pode bem ser, se olharmos apenas para os números que a TVI registou na manhã de 3 de janeiro. Para lá de continuar a ser o programa líder das manhãs, tendo fechado a emissão com mais de 480 mil espetadores de média, a presença de Mário Machado no Você na TV redundou num aumento de audiência.

O tema “Precisamos de um novo Salazar?” arrancou por volta das 11.28 horas com 386 mil pessoas sintonizadas na TVI e terminou às 11.54 com perto de meio milhão de espetadores, mais precisamente 496 mil indivíduos segundo os dados da Markdata. “Por isso é que é tão necessária a informação e a contextualização. E todas estas imagens e estas iniciativas estão a empurrar para um obscurantismo”, reitera Flunser Pimentel.

Um antigo diretor de Programas televisivo preferiu não comentar até por não conhecer os casos ao detalhe: quer o do convite a Mario Machado (que já motivou várias queixas na Entidade Reguladora para a Comunicação Social), quer das novas promoções do Programa da Cristina, que estreia na SIC a 7 de Janeiro, e quer da imagem transparecida com o formato o Monte do Manel, na TVI, exibido de 17 a 31 de dezembro.

Antes, o mesmo ex-responsável de programação lembrou: “As pessoas não escolhem regimes apenas porque podem ser empurradas pela televisão. Por trás disso, há sempre uma realidade do país, a corrupção, a falta de condições, fatores que podem ser muito mais relevantes na hora de uma decisão, colocando a televisão como caixa de ressonância”, vinca.

Ressonância sim, mas, em abono da verdade, bem sonora! É que do outro lado dos talk shows de day time estão, na maioria das vezes, mulheres, com menos formação e rendimentos ou mesmo desempregadas e pessoas mais velhas.

Desta forma, como terão visto os espectadores as declarações do líder da Extrema-Direita ou como têm vindo a acompanhar a batalha de iconografia entre Manuel Luís Goucha e Cristina Ferreira? É que enquanto o apresentador estava no seu monte alentejano, em Monforte, com o marido, Rui Oliveira, a apresentar o Você na TV – Monte do Manel no meio do campo, entre as ovelhas e a moto4, entre as mantas e a imagem de mulheres de lenço à cabeça, estava o novo rosto da SIC a repetir até à exaustão a importância da sua nova casa (com bidé e tudo!).

“Hoje, o busto da República estaria completamente em perigo”. Será?

Cristina Ferreira a abrir as portas de um cenário (que ainda ninguém conhece) e a fazer uma antestreia do seu programa de roupão, pantufas, rolos na cabeça e secador na mão. Uma aparição que não teve lugar sem antes ter comparecido no icónico Páteo Alfacinha (que recria em ponto pequeno o imaginário de uma Lisboa típica, do século XX), filmar e falar à imprensa entre figurantes femininas mais novas e de meia-idade, mas todas de avental. E entre homens com bonés e batas de trabalho, como vimos muitas vezes nos filmes de época portugueses.

Irene Flunser Pimentel ri-se nervosamente e reage: “Bem, no caso das mulheres nem sequer se fala… o Código Civil dizia, na época de Salazar, que ela tinha de obedecer ao marido, ele é que decidia tudo no lar conjugal, ela era a submissa que cuidava do lar, é a tal nostalgia do passado.” Para a historiadora “o maior perigo é estarem a copiar o pouco que sabem de história e mal”. Uma realidade “terrível” porque é como, refere a professora e escritora, “a História não servisse para nada”.

“Claro que as ideias de Mário Machado são terríveis”

Foi com esta frase acima citada que Manuel Luís Goucha falou e se justificou, ao lado da colega Maria Cerqueira Gomes, ao seu público na manhã seguinte à polémica que envolveu o convite a Mário Machado e a pergunta sobre Salazar, esta sexta-feira, 4 de janeiro.

O apresentador reiterou ao auditório de Você na TV! que, “num estado verdadeiramente democrático, todo o tipo de ideias deve ser debatido em televisão” e que, no caso em concreto, os apresentadores “assumiram o contraditório”.

Goucha assumiu que fez o inquérito nas suas redes sociais sobre se Portugal precisa de um Salazar porque já fez outros que, com as devidas distâncias, “eram fraturantes, como os das touradas”. O rosto das manhãs de Queluz de Baixo diz que “não quer um Salazar, nem um ditador de Direita ou de Esquerda” e lembrou que o silêncio televisivo não pode ser o caminho.

“Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil sem ter dado uma única entrevista na televisão, só pelo que se falou nas redes sociais e as fake news”, exemplificou o rosto das manhãs, entendendo que “é mais eficaz e útil o debate na televisão do que a instigação do ódio e ideias perigosas pelas redes sociais”.

As reações da sociedade continuaram a fazer-se pelo segundo dia consecutivo e partiram mesmo de elementos do governo. João Cravinho, ministro da Defesa, considerou que a decisão da TVI de ter feito o convite e levantado esta questão “não é muito ºdiferente de quem ateia incêndios pelo prazer de ver as labaredas”.

Ao fim da tarde desta sexta-feira, a TVI reagiu em comunicado, justificando: “O debate entre diferentes correntes de opinião, por mais criticáveis que as mesmas sejam, faz parte de uma sociedade democrática, plural e tolerante, comprometida com o respeito pelas liberdades individuais”.

No caso em concreto, a estação sustenta que “as opiniões e a visão histórica expressas por Mário Machado nos referidos programas foram enquadradas por visões alternativas às por si sustentadas”, que “as contradições entre a sua vida pretérita e os valores por si ora defendidos foram assinaladas”. A estação reiterou ainda que “foram igualmente abordados o seu histórico criminal, o contexto e os contornos do seu projeto político, tendo os riscos do extremismo político sido devidamente assinalados“.

Na mesma nota conjunta, as “direções de Programas [liderada por Bruno Santos] e de Informação [Sérgio Figueiredo] (…) reafirmam simultaneamente a importância da liberdade de expressão para o projeto editorial da TVI e o compromisso editorial desta com o respeito pela dignidade da pessoa humana e com a condenação do racismo e da xenofobia”.

Talk shows e extrema-direita: um método que preocupa a Europa

Roberto Saviano, autor da obra Gomorra e que retrata a máfia napolitana, de Itália, afirmou recentemente ao jornal francês Le Monde que “a política populista (em Itália), longe de ser real, é feita nos talk shows e nas redes sociais”, falando aos “cidadãos furiosos”.

E até já há um método reconhecido. O jornalista alemão e professor de Estudos Jornalísticos de Bordéus, em França, Karsten Kurowski, fala em framing, uma técnica que, segundo revela a revista francesa Les Inrockuptibles, consiste em fazer as perguntas de maneira segmentada (como os frames) e com uma formulação subjetiva, parcial. E até dá um exemplo de uma pergunta possível de um talk show: “Criminalidade: É possível integrar os migrantes?”

Práticas que têm lugar ao abrigo de uma outra deontologia, refere Kurowski, que nunca conta com a participação dos autores das mais polémicas frases que relativizam os desastres da história, muito menos os confronta diretamente. O Les InRock deixa até um exemplo:a frase em que Jean-Marie Le Pen, antigo líder da Frente Nacional francesa, dizia que “as câmaras de gás (durante o Holocausto) mais não eram do que um detalhe na História”.

Para este jornalista e investigador, os talk shows servem de “zona de troca comercial” da extrema direita na sua forma atual, facilitando-lhes o acesso ao pódio e exposição. Somando tempo, preconceitos e questões de atualidade, nasce assim o falatório, que logo é esquecido, passando ao próximo fenómeno. Mas a ideia já ficou algures na memória de muitos.

Imagem de destaque: Istock

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