Um ano depois da Marcha das Mulheres, o que é que está a mudar?

Para assinalar o primeiro aniversário da Marcha das Mulheres, Gina Scaramella vai voltar às ruas de Boston este sábado, 20 de janeiro. Mas a diretora executiva do Boston Area Rape Crisis, uma organização que presta serviços gratuitos a vítimas de violência sexual, já sabe que a natureza do protesto será muito diferente.

O espírito inicial da marcha, que levou às ruas de várias cidades em todo o mundo um milhão de pessoas, transformou-se. Aquilo que pareceu a muitos uma união sem precedentes contra Donald Trump – e que podia, pensaram alguns, dar origem a um novo movimento político – deu lugar a divisões e a luta por diferentes agendas. Ao informar-se sobre a organização da segunda marcha em Boston, Gina Scaramella descobriu que esta estava a ser gerida por um grupo que defende o separatismo da região da Nova Inglaterra. “Elas querem separar-se dos Estados Unidos,” diz entre risos intensificados pela referência a uma república independente constituída por mulheres.

No primeiro ano da presidência do homem que disse que dizia que agarrava as mulheres pela vagina, muitos dos grupos que fizeram parte da marcha inicial quiseram aproveitar o momento desencadeado pela mobilização e as fraturas tornaram-se evidentes, levando a opinião pública norte-americana a questionar-se sobre a eficácia política de um movimento dividido. Esta semana, o New York Times dedicou um extenso artigo a esta divisão.

A transformação do movimento fez emergir diferentes táticas e prioridades entre as mulheres. Na véspera do primeiro aniversário, está a emergir um cisma entre dois grandes grupos,” escreve o influente jornal, notando que um dos grupos tem claros objetivos políticos, preparando já candidaturas eleitorais e que o outro se satisfaz com a organização de protestos e a continuação do ativismo. “A divisão entre os dois grupos está a levantar questões em torno de qual deles pode reclamar o nome da Marcha das Mulheres e em torno da concentração de financiamento e da atenção mediática,” continua a jornalista que assinou o artigo.

Mas de acordo com Jo Roger, socióloga e investigadora na Universidade de Oakland, as divisões estiveram presentes desde o momento inicial. “Vi diferentes grupos a levantar pelo menos 20 assuntos diferentes – desde violência sexual ao aquecimento global. É sempre assim com os movimentos sociais e a mobilização em massa – as pessoas juntam-se porque há uma crença que as une, mas depois têm diferentes objetivos e diferentes estratégias para atingir esses objetivos,” diz.

Gina Scaramella, diretora da BARC, diz que manifestação foi incrível.

Para Gina Scaramella, ativista de longa data, só quem estivesse estado pela primeira vez num protesto poderia achar que o curso dos acontecimentos seria diferente. “Para aqueles que estiveram pela primeira vez numa manifestação deve ter parecido incrível. E foi de facto incrível. Mas quando mergulhamos a fundo nos desafios que continuam, no terreno, apercebemo-nos das divisões que existem. No fim do dia, as pessoas investem o seu tempo e a sua energia nos assuntos que identificam que são os mais frágeis nas suas comunidades,” diz Gina Scaramella, referindo-se às críticas feitas na altura da primeira marcha por ativistas do Black Lives Matter (movimento ativista contra a violência direcionada às pessoas negras) de que as mulheres brancas que participaram nessa marcha não apareceram nas marchas dos ativistas afro-americanos que lutavam pelos mesmos princípios de igualdade e justiça.

Ainda assim, Gina Scaramella defende a importância da marcha das mulheres: “foi um momento importante para refletirmos coletivamente sobre como podemos melhorar a entreajuda e a defesa dos direitos uns dos outros.”

Para Jo Rogers, as divisões não têm de ser negativas, emergindo como respostas a questões práticas das comunidades de origem dos ativistas. “Uma das divisões surge do facto de alguns ativistas nos estados vermelhos (estados em que os eleitores tendem a votar preferencialmente no Partido Republicano, por oposição aos estados azuis, que escolhem geralmente o Partido Democrata) detetarem necessidades de abrir as comunidades a ideias mais democráticas, daí concorrerem a cargos políticos,” diz a investigadora.

Seja como for, Rogers, que tem estudado a história dos movimentos sociais, mais concretamente dos movimentos femininos, diz que estas uniões e divisões sucessivas são normais e que no momento necessário os diferentes grupos voltarão a unir-se.

A história do movimento sufragista foi feita disso – os ativistas unem-se, alcançam algo, alguns acham que conseguiram o que queriam e abandonam o movimento, outros continuam e começam a trabalhar em diferentes assuntos, há divisões e depois há uma nova união quando ela é necessária,” diz.

#Metoo ou a perceção de ser um agente político

Até ao manifesto assinado por mais de 100 mulheres francesas, incluindo a atriz Catherine Deneuve, a denúncia feita por vítimas de assédio sexual por detrás da hashtag #metoo tinha gerado uma relativa união entre mulheres.

Para Jo Rogers, a campanha #metoo foi uma consequência direta da Marcha das Mulheres de há um ano. “A maior parte destes ataques que as mulheres estão agora a tornar-se públicos ocorreram antes da tomada de posse de Trump, mas de certa forma foi a sua presidência que tornou possível a consciencialização de que o assédio sexual constitui um problema. O facto de as pessoas que se manifestaram há um ano considerarem que este presidente teve atitudes e fez comentários impróprios permitiu-lhes sair à rua e quando as pessoas saíram à rua sentiram-se agentes políticos, capazes de falar abertamente sobre aquilo que as incomoda, neste caso o assédio sexual,” diz.

Da mesma forma, a tomada de consciência levou mais pessoas a procurar ajuda ou a querer ajudar. No último ano, a equipa do Boston Area Rape Crisis assistiu a um aumento de 30% nos pedidos de ajuda e nas ofertas de apoio financeiro ou de voluntariado. Em outubro, no auge da polémica #metoo, houve um novo pico.

Primeiro o conselho de escola, depois D.C.

Será o movimento #metoo a única mudança a emergir da Marcha das Mulheres? Para Jo Rogers, há mudanças menos visíveis a ocorrer por debaixo da superfície.

“Só o facto de os manifestantes regressarem a casa com a sensação de que deixaram de ser meros observadores para se tornarem agentes políticos é uma grande mudança. Neste momento não há leis a mudar por causa da marcha, mas um grupo de gente que não era politicamente ativa passou a ser e isso produzirá os seus efeitos,” diz. A investigadora dá o exemplo do Emily’s List, um grupo de pressão norte-americano criado nos anos oitenta com o objetivo de eleger candidatas democratas pró-aborto para cargos políticos.

“Esse grupo continha o nome de 1000 mulheres e agora tem 25 mil. Será que isso vai notar-se já nas eleições intermédias (em novembro)? Não sei. Nada acontece do dia para a noite. Os conservadores não chegaram a Washington D.C. do dia para a noite, foram subindo os degraus do processo eleitoral. Primeiro concorreram ao conselho escolar e por aí fora. É isso que vai acontecer com as mulheres. Vamos ver muitas mulheres a assumir cargos políticos a partir de agora,” diz.

E dando conta desse tal movimento que está a acontecer ainda de forma silenciosa, Reger sorri e acrescenta: “Vejo algo a acontecer. Não sei ainda o quê, mas algo está para acontecer.”

Catarina Fernandes Martins

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