O desejo feminino foi, durante séculos, terra incógnita, melhor cartografada por Flaubert ou Tolstoi do que por Freud. Esse é o terreno áspero em que se move a realizadora (e actriz) francesa, Nicole Garcia, no seu filme ontem estreado em Portugal, Um Instante de Amor (curioso título para o original, Mal de Pierres). Marion Cotillard, notável uma vez mais, interpreta o papel de uma jovem que, vivendo na França rural dos anos 50 (que é como quem diz, anterior a Brigitte Bardot, a Serge Gainsbourg e ao Maio de 68) desnorteia todos à sua volta com uma demanda erótica que, na Idade Média, lhe teria valido arder na fogueira, não do desejo, mas em chama viva, ateada por quem a acusasse de feitiçaria.
Em pleno século XX, a família, sem saber como classificar o “desmando”, obriga-a a escolher entre duas “gavetas”: O hospício (de onde, nessa época, raramente se voltava) ou o casamento forçado com um dos imigrantes espanhóis que trabalham sazonalmente na propriedade da família. Gabrielle, assim se chama a excessiva, opta pela segunda via sem qualquer expectativa, e, ainda assim, perpetuamente relutante, no modo se relaciona com o marido imposto.
Mas Um Instante do Amor não é apenas um filme sobre o modo como esta sociedade temia e reprimia, frequentemente com violência, a expressão daquilo a que chamavam os “furores uterinos” destas mulheres. Assombrado pelo fantasma de Emma Bovary (ou mesmo de Anna Karenina) é sobretudo uma obra sobre o modo como as fantasias amorosas podem ser construídas, com grande riqueza de pormenores, na cabeça de quem procura o absoluto no amor. Que relação estabelece Gabrielle com o amante que parece levá-la ao ambicionado êxtase (Louis Garrell)? A chave para esta questão ser-nos-á revelada quase no final do filme, num punch tão subtil como inteligente. Ao contrário de Flaubert, porém, Nicole Garcia compadecer-se-á da sua protagonista: em vez de veneno, estender-lhe-á a revelação do verdadeiro amor.
Imagem de destaque: Fotografia promocional do filme Um Instante de Amor
