Uma peça para não ficarem em casa

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‘Um libreto para ficarem em casa seus anormais‘, assim, sem vírgula, é a primeira encenação de Albano Jerónimo e entrou ontem na sua última semana em cena, no Teatro D. Maria II, em Lisboa. Depois do verão, a peça há de regressar aos palcos portugueses – a Casa das Artes em Famalicão e o Teatro do Campo Alegre já têm exibições agendadas.

As razões para o público lisboeta não ficar em casa esta semana são várias. Em primeiro lugar porque é a estreia de Albano Jerónimo na encenação e é muito interessante o trabalho experimental de misturar vários registos. O libreto, propriamente dito, foi escrito para constituir o texto de uma ópera contemporânea pelo argentino Rodrigo García e todas as partes cantadas, em “lírico-punk”, desta peça agora em cena são desse texto original. A crítica à sociedade burguesa, que prioriza o dinheiro em vez de buscar a felicidade, que menoriza a individualidade face à paz podre estabelecida nos grupos e até nas famílias, percorre esse texto.

Sobre o texto original, há um novo texto, sempre falado, que põe em confronto a pretensa superioridade intelectual do protagonista em relação às restantes personagens: é um encenador alemão que vem civilizar aquele grupo de atores que tem muita sorte por ter trabalho, por fazer teatro, por poder trabalhar o texto superior de Rodrigo García. Ele é também corrupto, adúltero e mau, chegando a exercer violência sobre os atores.

Os contrastes continuam. O público é convidado a ver uma peça de teatro que se apresenta na fase inicial como um ensaio. O canto erudito é acompanhado por guitarras elétricas, mas também pelo trompete de Nuno Reis. Às legendas da ópera, juntam-se noutro ecrã os diálogos escritos do cinema mudo, porque as personagens, além da protagonista e do seu assistente-tradutor, não têm o direito de falar alto. No meio de toda a opressão e violência que o espetador sente e que em alguns momentos chega a incomodar fisicamente, surgem piadas, alguns momentos de candura e até uma espécie de piedade pelo protagonista Fitzcarraldo.

Sim, Fitzcarraldo, o mesmo sobre o qual escreveu Werner Herzog e que quer levar a ópera edificante e civilizadora à Amazónia e que é recuperado nesta peça de Albano Jerónimo com texto adaptado por Mikael de Oliveira.

Nesta última semana de exibição o protagonista é interpretado por Anabela Moreira. Foi com a atriz no papel principal que o Delas.pt assistiu à peça e é muito impressionante como a questão do género deixa de ser significativa, depois de cinco minutos de espetáculo, e como se torna evidente que a personagem é odiosa, apesar da figura lindíssima de Anabela Moreira.

As cantoras são sem dúvida de se tirar o chapéu. Enquanto Ana Celeste Ferreira segura a peça inteira com uma força vocal extraordinária a harpista Leonor Devlin emociona por ter uma voz tão suave e límpida quanto o instrumento que toca.

A peça ‘Um libreto para ficarem em casa seus anormais’ está em cena no Teatro D. Maria II até 2 de julho.