O que leva um canal em dificuldades, como a SIC, a roubar a maior estrela à concorrência, a líder TVI, num contrato milionário? E porque é que a maior estrela da informação do grupo Balsemão, Miguel Sousa Tavares, faz o caminho inverso? O mercado dos canais abertos, cada vez mais magro, alarga o cinto dos milhões para tentar espevitar o negócio – pelo menos no curto prazo
Os canais generalistas estão, há anos, a perder influência, os canais de Cabo e as novas plataformas de conteúdos como a Netflix e os usos diversificados do aparelho de TV multiplicam-se. Promete-se, aliás, a chegada de mais distribuidores de conteúdos pagos para breve, numa espiral que denuncia que a televisão está a mudar à velocidade da luz.
Num universo que parece quase paralelo e distante desta realidade de dispersão dos públicos, SIC e TVI, com audiências em queda – como, aliás, toda a televisão em sinal aberto – estão num verdadeiro verão quente, que acaba de aquecer ainda mais com a época de transferências televisivas: umas bem mais milionárias que outras.
Cristina Ferreira, que está em processo de rescisão jurídica de contrato com a TVI, prepara-se para mudar de equipa, assumindo as manhãs da SIC, em janeiro, por um astronómico valor que a andará, segundo a imprensa e as muitas fontes revelaram ao nosso site, pelos 80 mil euros por mês. Montante não confirmado oficialmente pela Impresa ou por Cristina, futura consultora de Entretenimento na estação. Será, contudo, um salário que deverá contemplar uma margem variável condicionada pelos resultados, para outros conteúdos que apresente e promoções.
“Não se leva o público das redes sociais a ver televisão linear, o movimento é precisamente o oposto”
Noutros campeonatos, Miguel Sousa Tavares já está a caminho de Queluz de Baixo, com a promessa de, garante fonte oficial, “começar a trabalhar já na rentrée, em setembro, em formato oficial a designar”. Há ainda nomes no desporto: os comentadores de Trio d’Ataque, da RTP3, Miguel Guedes e João Gobern podem vir a mudar de equipa para a TVI. Uma decisão que deverá ficar fechada ainda este fim-de-semana. Mexidas que obrigam responsáveis de emissoras, RTP incluída, a terem já marcado reuniões de emergência com alguns dos seus principais rostos, não vá a dança das cadeiras continuar.
Mas o que se passa com os canais privados nacionais que, num mês como o de agosto, abrem os cordões à bolsa desta maneira? Isto numa altura em que os resultados indicam que o número de portugueses que vê Cabo e outros canais já suplanta o somatório das quatro estações generalistas: RTP1, RTP2, SIC e TVI.
“Vejo mais a perda da TVI do que o ganho da SIC”
“Investimento não é um custo”, reage Luís Marques. Antigo diretor-geral da SIC e ex-administrador da Impresa considera que o dinheiro de que se fala poderá “trazer retorno”, bastando, para tal, que a estação “saiba tirar proveito das redes e de uma pessoa com tamanha influência, e saiba como encontrar um novo modelo de negócio à volta da Cristina”, refere. Afinal, acrescenta, “isto está para lá da TV, é preciso pensar todo o universo de media e incluir todos os componentes”. Até porque os fãs que Cristina tem nas redes sociais – 752 mil seguidores no Instagram e 1,7 milhões de fãs no Facebook – não se traduzem imediatamente em negócio para o canal em que a “influenciadora” aparece.
“A contratação de Cristina é uma aposta de risco – o que não quer dizer que seja um disparate – porque estamos numa altura em que o fenómeno da televisão está a transformar-se, temos plataformas como o Netflix, falamos de uma possível vinda da HBO e, vemos que os jovens não veem televisão”, diz Luís Oliveira Martins. Economista na área dos Media e professor na Universidade Nova olha para esta estratégia com “perplexidade” porque “a TV como a conhecemos está, ela própria, em transformação e crise”.
“A contratação de Cristina é uma aposta de risco”
Por isso, o caminho escolhido pelo grupo de Balsemão, que viu as ações em bolsa a subir no dia seguinte ao anúncio da contratação do momento, é entendida por este analista e investigador como “um movimento estratégico em que a Impresa passa a ser um grupo de TV e outros meios e cada vez menos uma empresa de media tradicional, tendo já alienado, recentemente, grande parte dos títulos de imprensa”. Entretenimento em vez de informação – algo que está de acordo com os passos recentes de venda de grande parte os títulos de imprensa – como a venda das revistas Visão e outras à Trust in News.
Portanto, “vejo mais seguramente a perda da TVI do que o ganho da SIC, resta saber como é que esta vai conseguir rentabilizar economicamente esta contratação” milionária, perspetiva o economista.
Audiência a prazo
No currículo, Marques conta com ‘o roubo’ de Júlia Pinheiro à TVI, em 2011, por 50 mil euros mensais, e com a promessa de que a estação recuperaria a liderança com o regresso da “filha pródiga”. Aliás, esse seria na altura um dos objetivos contratuais de Pinheiro – tal como sucede agora com Cristina Ferreira, segundo várias fontes contactadas.
Apesar de não querer falar agora sobre Júlia Pinheiro, Luís Marques diz apenas que “não há situações iguais”. Já sobre Cristina Ferreira, dona e senhora nas redes sociais e dos negócios, o responsável considera que “uma pessoa sozinha não salva, mas pode ajudar” e “ela tem um público próprio, quase duas vidas em paralelo, vai impulsionar a SIC”.
Mais de sete anos volvidos, a promessa do êxito em torno de Júlia não se cumpriu. Bem pelo contrário e a liderança nas manhãs continuou a ser de Goucha e Cristina. Aliás, quando 2019 arrancar, o novo rosto matutino da SIC deixa uma herança de 368 mil pessoas sintonizadas na TVI (até à data) para suplantar a sós e recebe de Júlia, que por essa altura há de ir para as tardes da estação de Carnaxide, um espaço que congrega, em média, 207 mil espectadores. Já Manuel Luís Goucha, nas manhãs da TVI, deverá passar a travar esta batalha com a antiga companheira também a solo. “Para já, não se prevê que ele venha a ter uma nova colega”, diz fonte de Queluz de Baixo.
“As televisões são sempre um pouco como o futebol, nem sempre a mudança destas estrelas arrasta a mudança de público”
Um auditório cujo comportamento Luís Marques conhece bem, embora distinga as épocas. “As televisões são sempre um pouco como o futebol, nem sempre a mudança destas estrelas arrasta a mudança de público”, diz. Mas irá Cristina ser o rosto de uma traição e de um abandono, e por esse motivo penalizada? “Apesar dessa realidade ter existido com outras estrelas, acho que neste caso concreto ela tem um público próprio e isso não vai acontecer”, analisa o ex-administrador da Impresa.
Sérgio Gonçalves não duvida. O especialista em publicidade digital, marketing e comunicação e responsável pela empresa Live Content desvaloriza a dispersão dos públicos pelos múltiplos canais, diz que o talento da Cristina a distinguirá das travessias do deserto de, entre outros, Júlia Pinheiro e Goucha e coloca-a no patamar de Ronaldo.
Cristina Ferreira: “Pior do que ir e voltar é não ir e nunca saber onde se podia chegar”
“O Cristiano vai para a Juventus e faz uma transferência de fãs, ela não, vai continuar a ter as pessoas que gostam e a seguem, gerando rendimentos através das redes sociais para o canal onde está”. Ou seja, “se a Juventus faz dinheiro com as camisolas, a SIC vai fazer dinheiro com a publicidade que ela traz”. Mas, atenção, alguma coisa vai ter de mudar: “A SIC terá de ter uma equipa comercial bastante agressiva, mas primeiro vamos ver se se conseguem as audiências que se esperam”.
“Não vai haver um copy-paste da audiência”
“A não ser que a estratégia de Carnaxide se diversifique para, a par deste investimento, tentar captar novas audiências no digital, esta será sempre uma estratégia a prazo”, preconiza Ana Marques. A diretora-executiva da empresa digital Milenar lembra que “não se leva o público das redes sociais a ver televisão linear, o movimento é precisamente o oposto”. E o problema das televisões em sinal aberto – recorda ainda Ana Marques – prende-se com o público mais idoso, que “tendencialmente irá manter-se fiel aos hábitos de consumo”. Uma audiência a prazo até porque esse grupo “vai acabando”.
Da Malveira para o mundo: a evolução de estilo de Cristina, a rainha da TV
“Zero. Zero fator de traição”, responde Sérgio Gonçalves. “Ela não está a trair o público, no máximo estaria a trair uma empresa”, “ela fez isto tudo muito bem, com o nome dela e sem referir as estações, ela parte com uma combustão de fatores que a tornam única, como o recorde absoluto de seguidores”, diz o especialista em comunicação digital.
Luís Oliveira admite “o risco da travessia no deserto” até porque “não vai haver um copy paste da audiência”, embora considere que “não se pode menosprezar o efeito que a chegada dela pode ter”.
O responsável pelo rasto digital milionário da “saloia da Malveira” feita nova ‘senhora Televisão’, Tiago Froufe Costa, não arrisca futurologia, nem presta declarações. Quanto ao resto da equipa de Cristina Ferreira, a própria e todos os responsáveis da estação que a contratou mantêm-se no absoluto silêncio até confirmação oficial. Um momento que pode chegar a 10 de setembro, dia de apresentação das grandes apostas do novo diretor-Geral de Entretenimento da SIC, Daniel Oliveira.
Porém, enquanto faltam as palavras e sobram as omissões, resta imaginar o poder do novo rosto de Carnaxide: dona de “uma capacidade de mobilização social apreciável” que leva Sérgio Gonçalves a contar a piada de um amigo: “O Marcelo popularizou a política de tal maneira que ainda podemos ter a Cristina como presidente”.
Imagem de destaque: Rui Valido
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