Violência sexual. “Não podemos continuar a por o ónus nas vítimas”

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[Fotografia: Kat Smith/Pexels]

Em 2021, foram noticiados 299 casos de violência sexual, mais de metade ocorridos dentro de casa da vítima ou do ofensor, indica o relatório Violência Sexual em Portugal:Os casos noticiados na imprensa nacional em 2021 da União das Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) divulgado esta segunda-feira, 12 de dezembro. “Dados preocupantes” que podem estar à quem da realidade no seu total.

Ao Delas.pt, a investigadora Ana Guerreiro reitera, tal como no documento, que recai ainda sobre as vítimas a culpa do crime de que foram alvo. “As notícias dizem muitas vezes que foi por ciúmes, que a vítima estava alcoolizada, ou que era o agressor, que a vítima usava determinadas roupas. Já ultrapassámos isto, não podemos continuar a por o ónus nas vítimas pela sua vitimação, ele tem de ser colocado nos agressores”, afirma a também diretora da Unidade de Investigação em Criminologia e Ciências do Comportamento.

Um caminho que tem de ser invertido e que passa pela ação em várias esferas. “É preciso fazer sensibilização nas escolas, na prevenção primária, mas também alargar o trabalho a uma ação mais holística, com formação junto de profissionais da saúde, da justiça, da comunicação social e para que se deixe constantemente de colocar o ónus na própria vítima face aquilo que é a vitimação. Não há qualquer tipo de justificação para se ser vítima”, enumera e afirma a especialista em criminologia.

Segundo o documento agora publicado, “em relação à narrativa das notícias, a análise de discurso demonstrou que, por vezes, são utilizadas formas de comunicação que parecem culpabilizar as vítimas – procurando justificações no comportamento da vítima para a ocorrência da violência sexual, sobretudo quando não se trata de situações de abuso sexual – e, em alguns casos, é também desvalorizada a responsabilidade dos/as agressores/as (e.g., “instintos libidinosos; consumo excessivo de álcool por parte da vítima; ciúmes excessivos; dependência de pornografia; impulsos sexuais e instintos lascivos”)”.

Criação de um Observatório da Violência Sexual

De entre as medidas elencadas, que vão desde a urgência da prevenção primária à reprodução dos contactos da linhas de apoio a vítimas, o documento sugere a criação de um Observatório para a Violência Sexual que monitorize e analise ao detalhe estes crimes.

“É preciso fazer um trabalho sistematizado, consistente e o lançamento destes dados [n.r: este é o primeiro relatório que pretende ter continuidade nos próximos anos] pode ser o início”, refere Ana Guerreiro, que pede “financiamento que torne o projeto mais sustentável e permita estudar esta realidade em profundidade, há dados que podem e devem ser aprofundados”, refere.

Nesta fase, trata-se de um trabalho voluntário, mas a investigadora da UMAR revela intenção de chegar ao executivo para encontrar fórmulas de apoio.

Tempo médio de vitimação superior a três anos

De acordo com o relatório, a UMAR contabilizou, em média, 25 casos de violência sexual noticiados por mês. Desses casos, 62,7% ocorreram na habitação da vítima ou do ofensor, 10,9% em espaço público, 8,8% em local ermo e 5,4% na escola.

O veículo do ofensor ou da vítima, via Internet, numa casa de banho pública, num consultório médico, bem como num hospital, hotel, garagem ou local de treino são outros dos locais onde ocorreram situações de violência de acordo com as notícias analisadas.

A vitimação continuada é o tipo mais presente nos casos noticiados (52%), sendo o tempo médio de vitimação superior a três anos. O relato dos casos confirma que na maioria das vezes os crimes são cometidos por pessoas conhecidas da vítima.

Só em 5,4% dos casos, a vítima e o ofensor não se conheciam.

“Destes dados destaca-se o facto de as pessoas serem conhecidas ou mesmo familiares. Isso demonstra mais uma vez que, tal como na violência doméstica, também a violência sexual tende a acontecer em espaços familiares e com pessoas conhecidas. A casa continua a ser um lugar inseguro para se viver”, analisou a presidente da UMAR, Liliana Rodrigues.

A violência sexual ocorreu em 87% os casos sobre o género feminino. A idade das vítimas varia, “no caso das raparigas e mulheres”, conforme se lê no relatório, entre os 1 e os 90 anos. No caso do género masculino, o intervalo de idades posiciona-se entre os 5 e os 62 anos.

Quanto aos ofensores, 95% são homens e a média de idades é 42 anos. “Tal como a violência doméstica, a violência sexual não é individual, é estrutural. É estrutural numa sociedade sexista e patriarcal. Temos de combater o estereótipo e as narrativas que tentam justificar a violência”, disse Liliana Rodrigues.

Quanto às penas aplicadas aos agressores, a UMAR só identificou informação para 31 dos casos noticiados, sendo o tempo médio de nove anos de pena de prisão. Lisboa, Porto e Braga são os distritos que apresentam maior número de casos.

Numa conferência de imprensa que decorreu na Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto, nesta segunda-feira, 12 de dezembro, a UMAR alertou ainda para as percentagens relacionadas com o tipo de crime. Das 192 notícias em que foi possível perceber a tipologia criminal, o abuso sexual assume mais de metade dos casos (50,5%), seguindo-se a violação (42,2%).

As investigadoras destacaram também a percentagem associada a casos de pornografia infantil (5,7%) e de importunação sexual (1,6%).

Ana Rodrigues lembrou, em jeito de alerta, que “possivelmente há mais casos de assédio sexual que não se traduzem em denúncias e queixas”.

E em resposta à pergunta sobre se é possível estimar, com base neste relatório que só reflete notícias da imprensa ‘online’, quantos casos existem, a investigadora apontou que “o que os estudos têm vindo a dizer sobre a diferença entre a criminalidade real e a criminalidade oculta, as chamadas cifras negras, é que a diferença é de pelo menos o triplo”. “Que o número real é maior temos a certeza que é”, completou Liliana Rodrigues.

A UMAR, associação já conhecida pela intervenção ligada à defesa das mulheres e que, periodicamente, tem tornado públicos apelos e números sobre o femicídio, realizou este relatório sobre violência sexual pela primeira vez e já está a preparar dados sobre este ano.

com Lusa