“Vêm ter comigo para encontrarem óculos para os refugiados”

Patrícia Amaral, de 22 anos, terminou a faculdade há um ano e tornou-se numa daquelas “pessoas irritantes no Facebook, que estão sempre a partilhar a mesma coisa”. No seu caso, as partilhas estavam sempre relacionadas com a crise de refugiados que se fazia sentir, sobretudo, na Grécia. Cansada de que as suas partilhas não tivessem qualquer efeito positivo para aqueles milhares de pessoas, decidiu agir. Sem dizer nada aos pais e namorado decidiu marcar uma viagem para a Grécia. E lá foi ajudar. Ao início eram para ser apenas três semanas. Já lá está há oito meses.

Depois de perceber que a maioria das crianças com quem brincava tinha problemas de visão ou óculos num estado lastimável, decidiu falar com um oftalmologista e uma loja de óculos, dando origem ao projeto Eye See a Better World Now.

Este projeto, criado pela portuguesa, vive da solidariedade de cada um e oferece óculos a crianças e jovens refugiados com problemas de visão. A consulta, já com os óculos incluídos, custa 60 euros e são os padrinhos de cada criança que pagam.

Para apadrinhar uma delas só tem de ir até à página de Facebook do projeto Eye See a Better World Now, enviar uma mensagem que mostre o seu interesse em apadrinhar uma criança e aguardar que a jovem portuguesa lhe responda e explique tudo. Depois de lhe atribuir uma criança, Patrícia Amaral envia-lhe fotografias da sua afilhada e de como fica bem com os óculos no final de todo o processo. Mas nada melhor que a própria fundadora para lhe explicar tudo.

Como foi parar à Grécia?

Começou tudo em abril. Estava a tornar-me naquelas pessoas irritantes no Facebook, que estão sempre a partilhar a mesma coisa, coisas de refugiados e tragédias. Apercebi-me de que me estava a tornar super irritante mas não estava a fazer nada. Então decidi marcar a viagem logo, sem pensar muito. Foi uma coisa um bocado espontânea, ainda não tinha falado com ninguém, nem com os meus pais nem com o meu namorado na altura.

Qual foi a reação dos seus pais quando lhes disse que queria ir para a Grécia ajudar refugiados?

Apoiaram-me, mas têm sempre algum receio. Entretanto a minha mãe já me foi visitar, sabe que aquilo não tem nada de mal nem corro perigo nenhum. E o meu pai também não é desses pais muito preocupados, que é super paranóico. Os dois apoiam-me muito.

Antes de partir para lá estava a estudar?

Sim, acabei a faculdade há um ano. Tirei Cinema e Jornalismo.

E como nasceu a ideia de criar o projeto Eye See a Better World Now?

Eu tinha uma amiga de 8 anos, a Inês, que usava uns óculos só com um dos aros e estavam sempre a cair. Então sempre que nós brincávamos os óculos caiam-lhe e ela tinha de parar, apanhá-los e voltar a pôr. Além disso, como ela tem os olhos super claros, já nem conseguíamos ver os olhos dela com aqueles óculos. Um dia disse-lhe que íamos tratar daquilo e perguntei a um voluntário se ele sabia o que eu tinha de fazer e ele disse: “Até agora só houve um voluntário que tratou de óculos. Fala com ele.” Fui falar com ele e ele disse: “Demorei três meses a conseguir fazer um par de óculos. Por isso, não sei se te queres meter nisso.” Foi escandaloso. Na Grécia não é como em Portugal que tu podes ir a uma loja num centro comercial, tens uma consulta e depois mandam vir os óculos. Isso lá não existe. Temos de ir mesmo a um oftalmologista ou, no caso dos refugiados, a um hospital público. Entretanto descobri uma loja que me disse que fazia. Cheguei à loja e disseram-me que afinal não faziam porque a Inês precisava de uns óculos com uma graduação muito alta. Fiquei super chateada porque demorámos cerca de 40 minutos do campo de refugiados até Atenas, para ir buscar os óculos, e tinha levado a família toda, quatro crianças e a mãe. Entretanto a senhora disse-me que podia falar com um amigo que podia fazer um preço bom e deu-me o contacto. Liguei para o amigo, ele de facto fez-me um grande preço, voltei à loja para fazerem os óculos e foi assim que tudo começou. Perguntei ao médico se ele, por acaso, não queria começar este projeto comigo e depois também falei com a loja e eles conseguiram fazer um preço especial. Era suposto só tratar de uma criança, mas acabou por crescer e tornar-se neste projeto.

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Patrícia Amaral com a pequena Inês, já com os seus óculos novos

Quanto costumam chegar os óculos?

Custam sempre à volta dos 60 euros. Com a consulta incluída fica 15 euros para a consulta e 45 euros para os óculos.

Quem paga esse valor?

Somos nós. O projeto consiste em encontrar patrocinadores para as crianças, por isso é que isto se tornou um projeto muito maior do que estava à espera. Nunca pensei encontrar tantos patrocinadores. Inicialmente, quando fiz a página de Facebook, o objetivo era arranjar quatro ou cinco sponsors, para quatro ou cinco crianças diferentes. Entretanto, como tive muitos sponsors a quererem contribuir, alargámos tudo e agora já é mesmo um projeto em que os outros voluntários vêm ter comigo para encontrarem óculos para os refugiados. Já nem trabalhamos só com um campo de refugiados.

Quantos patrocinadores têm neste momento?

Diria que, no total, são uns 40.

E quanto tempo esperam agora as crianças para terem uns óculos?

Normalmente ou eles vão logo comigo à loja a seguir à consulta ou, se não existir essa possibilidade de ir comigo, eles dizem-me de que tipo de óculos gostam, eu mando a receita para a loja e demora três dias. Às vezes demora um pouco mais, dependendo de quantos óculos vão fazer e do tipo de graduação. No máximo demora uma semana.

Já ajudou quantas crianças?

Neste momento diria que à volta de 25. Não é um número exato porque temos crianças que precisam de cirurgias. Também gostava de proporcionar essa operação, mas os pais estão muito de pé atrás em relação a isso porque não estavam sequer à espera de conseguir óculos para as crianças e agora, de repente, sabem que eles precisam de uma cirurgia. É tudo muito rápido.

Para conseguirem dinheiro para as cirurgias também vão recorrer a este processo de apadrinhamento?

Claro. Nós ainda não fizemos nenhuma cirurgia porque até hoje só houve três crianças que precisavam e todos os pais disseram que não queriam fazer na Grécia, porque é só o país transitório. Uma das famílias que consegui convencer a fazer a cirurgia, por exemplo, vai para a Holanda.

Como é que alguém pode apadrinhar uma criança neste projeto?

Enviam-me uma mensagem para a página do projeto no Facebook, Eye See a Better World Now, a dizer que querem apadrinhar e, a partir daí, explico o processo todo. Atribuo uma criança, mando uma foto e alguma informação sobre a criança – quem ela é, o que gosta de fazer –, uma pequena introdução. Depois levo-a ao médico, tento enviar também uma foto da consulta e envio também uma foto dos óculos que eles escolheram. Normalmente tento enviar pelo menos três fotos aos padrinhos, mas às vezes é tudo a um ritmo tão louco que não dá para tanto. Por isso também tento não garantir mais fotos. Só há duas que envio mesmo sempre: a primeira, a explicar quem é a criança, e a última, da criança com os óculos.

Qual é a reação das crianças quando põem os óculos novos na cara?

As caravanas onde eles dormem têm beliches e uma das crianças foi ao beliche de cima, que era super alto para ela, e escondeu a caixinha dos óculos lá em cima, num cantinho, para que nem os irmãos nem ninguém tocasse ou lhe roubasse aquilo. Quando não a vi com os óculos fiquei um pouco triste porque pensei que ela não tinha gostado, depois é que me apercebi que não era isso, era por ser uma coisa valiosa para ela. Tive uma outra miúda, de 6 anos, que nunca tinha usado óculos e durante a consulta, quando o médico estava a testar as lentes e encontrou a certa, ela fica com um sorriso gigante na cara. Para mim foi o melhor momento até hoje.

O número de pedidos aumentou com o início do ano letivo?

Por acaso noto bastante. Até aqui foi muito difícil para mim porque sou a única no projeto e eu é que tinha de descobrir quem eram as crianças que precisavam de óculos, tinha de fazer uma espécie de rastreio sem, de facto, o fazer, tinha de escrever qualquer coisa num papel e afastar-me para ver se eles conseguiam ler, era tudo muito primitivo. Desde que as aulas começaram que tenho muitos voluntários a virem ter comigo, dizem-me que aquelas crianças não vêm muito bem e perguntam se consigo arranjar-lhes uma consulta. Em dois casos de crianças que precisavam para a escola já lhes conseguimos entregar os óculos e os voluntários dizem que se nota uma diferença enorme durante as aulas porque passam a participar muito mais.

Por quanto mais tempo é que pretende ficar na Grécia a fazer voluntariado?

O meu tempo na Grécia, infelizmente, está a aproximar-se cada vez mais do fim. Não é por vontade própria, mas a certa altura também temos de seguir com a nossa vida. Entretanto as coisas lá também já acalmaram um pouco, quando cheguei lá aquilo era louco, estava em estado de emergência. Agora sentimos que o nosso trabalho é substituível, há muitos voluntários, mas gostava que o meu projeto continuasse, é muito autossustentável. Tanto o médico como a loja confiam muito em mim. Quando venho a Portugal as crianças continuam a ir lá e eu pago quando regresso. Gosto muito desta relação e é algo que vai ajudar a que o projeto se mantenha. Vou sempre encontrar os sponsors e as crianças vão ser acompanhadas por outros voluntários mas poderão sempre contar comigo para fazer a marcação. Online consigo tratar das receitas e coordenar tudo. É um projeto que pode continuar apesar de eu não estar lá. O único receio que tenho é em termos de confiança, de que aquilo fique nas mãos de alguém que desvie dinheiro.

Tem noção de que o seu projeto já melhorou a vida de dezenas de crianças?

Sim, cada vez tenho mais noção disso. Quando estou lá não noto tanto isso por ser uma coisa mínima, tão pequenina, mas a verdade é que melhora imenso. A Inês de que lhe falei, por exemplo, era uma menina muito tímida, fechada, e depois de ter os óculos começou a sentir-se linda, adora, é vaidosa. Sinto que ela está mais confiante, mais aberta, brinca com as crianças todas. Não sei se tem a ver com os óculos ou não, mas gosto de pensar que sim. Só quem tem óculos é que sabe o quão útil são.

Como se sente com tudo isto?

Agora que sinto que o meu tempo na Grécia se está a aproximar cada vez mais do fim sinto-me muito triste e emocionada. Vou sempre voltar lá, mas as minhas famílias, as famílias que tenho ajudado, também vão sair, vão-se espalhando pela Europa, pode ser que até venham para Portugal. Isso deixa-me também mais feliz. Sei que eles estão a sair de lá por uma boa razão, para um local melhor. Como nunca pensei apaixonar-me de tal forma, não pensei que um dia tinha de haver um fim. Inicialmente só ia ficar três semanas, ia começar um estágio e tinha três semanas até lá. Entretanto fiquei lá até agora.