“Arrependo-me sobretudo de não ter chamado a polícia nesse dia”

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Ana tinha 31 anos quando conheceu João, 10 anos mais novo (nomes fictícios). De início a relação era puramente profissional. A empresária sempre esteve habituada a trabalhar com homens e este novo colega era apenas mais um na equipa. Mal sabia o que a esperava quando o acolheu com gentileza – tal como fazia com todos os outros.

“Dei-lhe tempo para me ir estudando e perceber aquilo de que gostava e apreciava nas pessoas”, recorda. “Moldou-se ao que pensava que eu procurava num homem e acabou por me conquistar”. Fazia-se passar por bom conversador, aparentemente trabalhador, sempre gentil e grande ouvinte. Ana acabou por ceder ao charme de João, um sedutor nato.

“Já no início da relação havia alguns indícios que eu não soube ler”, conta, “como por exemplo, ele tentar controlar as minhas amizades e aparecer várias vezes alcoolizado, sobretudo ao fim de semana. Mas como em casa não bebia, achei que tinha apenas dificuldade em recusar os convites dos amigos”.

Algumas irresponsabilidades – como não a ter apoiado quando esteve doente e sair para ir beber um copo – e atitudes um tanto possessivas, a empresária atribuiu-as à idade. “Afinal, ele na altura tinha apenas 20 e poucos anos, mas o tempo passou e tudo aquilo que já não considerava muito saudável numa relação só se foi agravando com o tempo. Devia ter seguido os meus instintos. No fundo, sabia que algo não batia certo”, admite.

O que não sabia é que, no namoro, os primeiros sinais de excesso de proteção e ciúme, entre outros, predizem muito do que o futuro pode de trazer.

“Não é raro, por exemplo, que os comportamentos de controlo obsessivo sejam interpretados como evidências do amor. Há crenças e ideais sobre o amor romântico, por exemplo a ideia de que o ‘verdadeiro amor resiste a tudo’ ou de que ‘o amor implica uma entrega total, que aumentam a vulnerabilidade, a tolerância e a legitimação de comportamentos violentos”, revela Eliana Madeira, coordenadora de projetos de intervenção social do Movimento Internacional de Mulheres, Graal.

Quando não se foge aos primeiros sinais….

Mas porque é que uma mulher bem-sucedida profissionalmente, com uma vida social intensa e uma família que a adora se deixa abusar durante sete anos? Ainda hoje Ana não consegue responder. “Talvez este tipo de pessoas, independentemente dos consumos, tenham um certo lado psicopata ou sociopata que os leva a controlar-nos de uma forma tão subtil que, quando damos conta estamos enredadas numa teia da qual não conseguimos sair, até porque já estamos psicológica e fisicamente fragilizadas. Ou então não tinha a autoestima que pensava ter e sem dúvida que sou por natureza demasiadamente tolerante. Por outro lado, o meu anterior namorado tinha falecido há alguns anos e eu podia estar muito carente sem dar conta”. Uma coisa é certa: o pesadelo estava ainda por acontecer.

Estratégias fatais

Após cerca de cinco meses de namoro, João apareceu à porta da casa de Ana de mala e bagagens, alegando que tinha sido posto fora de casa. “Devia ter questionado a razão de tal expulsão; ele podia não ser a pessoa que aparentava para os próprios pais se quererem livrar dele… Ainda pensei nisso, mas não dei muita importância ao caso”, conta.

Logo que começaram a viver juntos, ele pediu-lhe para comprarem casa em conjunto. “Admito que estranhei tanta pressa e agora percebo porquê: enquanto eu estivesse a viver na minha casa e pagasse as minhas contas, o poder dele sobre mim não seria suficiente”. Adquiriram um apartamento, João deixou de representar o papel de namorado dedicado, a máscara caiu e a história de terror teve início.

“Logo na primeira semana empurrou-me contra a parede, encostou a testa contra a minha e atirou-me facas da cozinha”, recorda. “Nunca cheguei a perceber porquê, eu estava apenas a fazer o jantar e nem lhe liguei a pedir para vir para casa ou o provoquei”. Assustada, pegou nas chaves e fugiu para casa de uma amiga, Joana, a mesma que a seguiu de perto e apoiou ao longo dos últimos anos.

A partir daquele dia, João ganhou o hábito – ao qual juntou um antigo, o consumo excessivo de álcool – de insultar a companheira recorrentemente e humilhá-la publicamente, acusando-a de ser alcoólica, criticando-a pela sua forma ser, ou seja, projetando nela as suas próprias fraquezas. O objetivo era apenas um: destruir-lhe a autoestima. Gastava fortunas em noitadas e chegava a casa cada vez mais tarde, era agressivo e recorria linguagem grosseira. “Deixei de conseguir dormir descansada”, recorda Ana, “estava sempre cansada e sem capacidade para resistir”.

Até que uma madrugada acordou com o barulho e levantou-se. “Pela primeira vez confrontei-o com o seu aspeto físico: é que o evidente desleixo também punha em causa a nossa empresa e ele não podia ser visto pelos sócios naquele estado deplorável, principalmente num dia de semana!”. Foi a gota de água para que se desse uma perseguição pela casa que acabou com a Ana a ser socada e ameaçada de morte já encurralada no quarto.

Chamou os pais dele, que só acreditaram no que estava a acontecer quando receberam por telemóvel as imagens das marcas das agressões. Chegaram num ápice.

“Hoje sei que não foi para me protegerem mas para se assegurarem que o João não faria mais nada que o pudesse prejudicar. Vim a descobrir que já conheciam o seu historial de agressividade com os amigos e com o próprio pai, mas que sempre lhe tinham amparado os golpes”.

Quanto aos vizinhos, nunca se manifestaram. E os pais de Ana, que tinham sofrido de cancro recentemente, foram poupados durante anos pela filha que não os queria preocupar. “Ainda hoje as mentiras que lhes contei me corroem”.

Chamar a polícia é essencial

“Arrependo-me sobretudo de não ter chamado a polícia nesse dia e ter acabado tudo por ali, mas tinha medo e vergonha, o que me impediu de raciocinar corretamente”, lamenta Ana.

Teria sido o ideal. Todos os casos estudados pela Associação de Apoio à Vítima (APAV), que a partir da primeira agressão se desenvolve um ciclo de arrependimento em que há choro, pedidos de perdão e prendas compensatórias por parte do agressor. Assim foi. Só que a empresária não caiu no esquema por muito tempo. Aliás, a partir daí foram muitas as noites que ficou em casa da amiga Joana e chegava de madrugada, “quando ele dormia profundamente com a bebedeira”.

Também aprendeu a enfrentá-lo: “Quanto mais medo demonstramos, mais facilmente nos tornamos vítimas”, diz. No entanto, vivia numa neblina em que o futuro não apresentava quaisquer contornos de esperança e felicidade. Foi parar ao hospital com problemas vários devido à má alimentação e falta de sono. Quase não falava e isolou-se completamente, criando a ilusão de que estava sozinha naquela luta, quando afinal tinha uma rede de apoio que mais tarde se veio a revelar. “Fiquei um caco, anulei-me e deixei-me degradar”, recorda. “Sempre fui otimista mas ainda hoje não sei se vou voltar ao que era, embora sinta que estou cada vez mais forte”.

Respeito: palavra desconhecida

Ao contrário da companheira, João não estava sozinho. Tinha como cúmplices os pais, amigos e amigas que levava para casa, algumas com as quais mantinha relacionamentos amorosos. “Às tantas deixei de arrumar a casa para que eles deixassem de a frequentar”, conta Ana. Resultou, mas a mãe dele fotografou o caos, não fosse mais tarde necessário provar em tribunal que a nora “era louca e negligente”.

Durante anos a empresária ameaçou deixar João que continuava a intimidá-la fisicamente caso o facto acontecesse o que, dado o seu porte atlético a assustava. Até que chegou o dia “H”: aquele em que descobriu e tinha como provar um caso extraconjugal que ele mantinha.

Encostado contra a parede, João tornou-se ainda mais violento e, durante três meses, Ana andou foragida entre a sua casa e a de Joana. “Até que achei que, de uma forma ou de outra, a situação ir-me-ia matar e decidi sair definitivamente da relação”.

Tentou uma separação amigável mas o companheiro recusou-se a aceitar a decisão, não deixando, no entanto, de lhe roubar alguns pertences. Entre tachos e peças de ouro, tudo desapareceu num dia em que Ana foi visitar os pais.

Quando chegou, furiosa, começou a retirar o que lhe restava de uma mesa-de-cabeceira e cometeu um grande erro: ficar de costas para o agressor. Ele arrastou-a para a cama, atirou-a como a uma boneca de trapos pelo ar, contra a parede e o chão. Embora atordoada, fez-lhe frente e fugiu o mais rápido que pôde para junto da paragem de um autocarro, onde estaria muita gente, muitas testemunhas. Sabia que, estando ele sóbrio e tão violento, a partir dali correria risco de vida. Mais tarde João negou as agressões, alegando que ela tinha tropeçado num sapato. Nunca o conseguiu provar.

Entretanto, Joana chegou mais uma vez em socorro da amiga, levou-a ao emprego onde, aconselhada por uma colega e encorajada pelo patrão, decidiu dirigir-se à APAV e à polícia, que a receberam e aconselharam com a naturalidade e compreensão de quem está habituado a receber centenas de vítimas de violência doméstica.

Os agressores nunca desistem

João fez contra-queixa por violência psicológica, acusando Ana de ter casos com outras pessoas com o intuito de arrastar o processo – o que não conseguiu mais uma vez provar, até porque ela tinha registadas mensagens em que ele lhe implorava o regresso ao lar. Fá-lo-ia no caso de tais infidelidades? Seria pouco provável.

Depois da separação deu-se ao trabalho de conduzir quilómetros para denegrir a sua imagem junto dos pais e até alegou tê-los na mão. Mais uma das suas muitas mentiras que não convenceu ninguém. Mais: quando percebeu que a causa estava perdida, encontrou nova companheira à velocidade da luz. “Provavelmente outro saco de pancada”, pensa Ana.

Ela ainda mora com a amiga, encontra-se a lutar pela posse do apartamento, a tentar sarar as feridas e ultrapassar os pesadelos que já a assaltaram diariamente.

Recusa-se a admitir que o que a prendeu tenha sido amor, “porque esse sentimento não pode ser nada de tão trágico, não pode dar origem a uma relação assim tóxica, em que chegamos a perder a nossa própria identidade”, mas recusa guardar ressentimentos e nem sente ódio por João. “Sinto pena, porque ele é infeliz e por onde passar só deixará um rasto de violência e destruição”.

Ela, pelo contrário, com ajuda mensal de uma psicóloga, foi-se libertando do ambiente que a intoxicava e paralisava. E, acima de tudo, espera, um dia, ainda poder conhecer o verdadeiro amor.