“Neste julgamento, discutiu-se tudo menos o respeito pela vítima”

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[Fotografia: EVELYN HOCKSTEIN / POOL / AFP]

Os atores Amber Heard e Johnny Depp protagonizaram um julgamento sobre difamação em violência doméstica e sexual em direto – nos Estados Unidos foi permitido –, tendo chegado ao público relatos e detalhes de uma relação tóxica.

Testemunhos que duraram semanas acabaram na condenação da atriz por difamação e ao pagamento de 15 milhões de dólares (13,9 milhões de euros) por danos punitivos e compensatórios. Um julgamento em que o ator venceu, tendo, porém, de pagar dois milhões de dólares (1,9 milhões de euros) a Amber Heard por difamação.

Para a atriz, o veredicto “é um retrocesso, faz recuar o relógio numa altura em que uma mulher – que acaba por se defender e falar abertamente – possa hoje ser publicamente envergonhada e e humilhada”. “Isto acaba fazer recuar a ideia de que a violência contra as mulheres tem de ser levada a sério”, afirmou após a leitura da sentença. Deep congratulou-se por ter a sua vida de volta.

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[Fotografia: Steve Helber / POOL / AFP]

Mas o que significa tudo isto – do espetáculo à sentença – para uma vítima de violência doméstica? Daniel Cotrim, psicólogo e responsável na Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) fica a sensação de que “as mulheres vítimas de violência doméstica não são para levar a sério em lado nenhum”. “Não estando aqui a ver se foi bem ou mal adequada a decisão do tribunal [de Fairfax, na Virgínia], fica claro que a violência doméstica é uma questão transversal, diz respeito a todas as pessoas, acontece em todos os países, os casos podem vir de qualquer lado, e o que é exigido é o respeito pelas vítimas. Neste caso, discutiu-se tudo menos o respeito pela vítima, alegada ou não”, salvaguarda o responsável.

“Sabemos pouquíssimos detalhes e, com o que ficou em cima da mesa, há um longo do trabalho para fazer pela respeitabilidade das vítimas, ficou evidente aquela velha ideia do síndroma de a vítima se sentir culpada e e duplamente estigmatizada”, acrescenta Cotrim.

Mas vale, então, a pena lutar? Daniel Cotrim nega a pergunta até porque baixar os braços jamais será solução. “Fica a sensação de que ir à luta vale sempre a pena, não desistir também quer dizer fazer-se ouvir”, esclarece. E prossegue: “Muitas vezes, a grande questão das vítimas de violência doméstica é que estas sentem-se sempre muito isoladas e acham que o seu caso é único. Perceber que existem noutros sítios do mundo e com visibilidade, tal faz as vítimas sentirem-se acompanhadas.”

“Os profissionais podem e devem usar todos os recursos para motivar as pessoas a denunciarem estas situações de violência. Uma andorinha não faz a primavera. Infelizmente temos muitas andorinhas, felizmente vamos tendo algumas. E ontem tivemos uma, em Portugal [a condenação do ex-marido de Luciana Abreu a mais de dois anos de pena suspensa e ao pagamento de três mil euros em indemnização].

“Estes casos que envolvem pessoas mediáticas são sempre fundamentais para entender a transversalidade da violência doméstica. Não é coisa de homens e mulheres pobres, não envolve apenas desconhecidos, é universal, é uma matéria de direitos humanos, e estes casos mais mediáticos devem levar anónimos e anónimas a denunciar”, pede Daniel Cotrim.