Vitória na Eurovisão: “É muito difícil, temos de ser sinceras”

Isaura foi convidada para compor uma música para o Festival da Canção e quis provar que, apesar de ter o seu trabalho musical todo em inglês, também sabe escrever na língua-mãe. Inspirou-se na avó, que tanta importância teve na sua educação, e no jardim que a idosa regava, carinhosamente, todos os dias. Quando a terminou, não quis que outra pessoa a cantasse, mas mudou de ideias quando viu um vídeo de Cláudia Pascoal.

Não se conheciam, mas depois de ouvir a jovem de Gondomar a cantar durante 15 segundos, Isaura não teve dúvidas. Tinha de ser Cláudia Pascoal a dar voz àquela canção. Entregou-lhe ‘O Jardim’ e fez apenas os back vocals. Juntas, venceram o Festival da Canção e vão representar Portugal na Eurovisão.

Nesta entrevista falam de como se conheceram, da importância que o festival e a Eurovisão está a ter nas suas carreiras e do que pretendem vir a fazer no futuro.

O facto de Portugal ter vencido a Eurovisão no ano passado mudou a forma como os portugueses olharam para o Festival da Canção este ano?

Cláudia Pascoal: As pessoas passaram a olhar para o festival com uma maior atenção. O Salvador fez a música que nós fazemos aqui dentro. Levou lá para fora algo realmente verdadeiro e isso tem-se notado até nas composições que os outros países levaram, já se nota qualquer coisa de diferente, uma maior autenticidade.

Que feedback têm recebido nas redes sociais?

Cláudia Pascoal: Infelizmente ainda não tive tempo para ver metade das mensagens, mas todas as que tenho recebido são de força, de pessoas que gostaram muito da música. As que mais me tocam são daquelas pessoas que dizem que identificam a história delas na música. ‘O Jardim’ faz com que se lembrem de alguém que já não está cá, a avó, a mãe, o irmão ou o filho, e isso comove-me. Todos ouvem aquela música e sentem o mesmo.

Isaura: Além de receber imensas mensagens a partilhar a história tenho sentido que mesmo os que não tinham ‘O Jardim’ como a sua música favorita nos apoiam. Noto que as pessoas estão muito entusiasmadas porque o festival é cá e isso é mesmo bonito de se ver.

“‘O Jardim’ faz com que se lembrem de alguém que já não está cá, a avó, a mãe, o irmão ou o filho, e isso comove-me”

Não têm sentido aquele lado negativo das redes sociais, de que tanto se fala?

Isaura: Não posso dizer que não leio comentários menos bons, porque leio. Há sempre, mas seria injusto ficar focada nesses. Mandam-nos tantas mensagens de apoio boas que se, entre 100, ficarmos focados num comentário apenas estamos a ser injustos com quem nos quer bem. Acima de tudo, as pessoas estão contentes com o facto de o festival ser cá. Sentem que vamos lá e que vamos dar o nosso melhor. Tenho sentido que as pessoas estão tranquilas.

Acham que Portugal pode ganhar duas vezes seguidas a Eurovisão?

Isaura: É muito difícil, temos de ser sinceras e realistas. A Luísa e o Salvador conseguiram alinhar o cosmos, foi algo fora de série, mas sei que temos potencial para uma boa classificação e vamos dar o nosso melhor. A Europa inteira viu o que o Salvador fez e também se preparam.

Esperam que esta vitória no Festival da Canção vos dê mais visibilidade e impulsione a vossa carreira?

Cláudia Pascoal: No que toca à Isaura não sei, mas na minha já está a fazer toda a diferença. Ir ao The Voice (RTP1) foi interessante, mas não me mostrou como cantora. Um talent show é um programa de entretenimento, nem sempre as pessoas que lá vão querem fazer disto vida. O Festival da Canção mostrou que é isto que quero fazer e que quero levar esta carreira na música muito a sério. Nesse sentido, é claro que me ajudou.

Isaura: Tive a oportunidade de mostrar às pessoas que canto e tenho umas coisitas mas também sei compor, também escrevo e sei fazê-lo em português. Gostei de ter tido a oportunidade de mostrar às pessoas que faço o meu trabalho em inglês porque, neste momento, é a minha escolha. Não é porque não sei ou porque não gosto. Isso tranquilizou-me muito porque faziam-me essa pergunta muitas vezes. É óbvio que, tendo o meu álbum pronto, espero que as pessoas tenham curiosidade, queiram perceber mais sobre o meu trabalho e o ouçam.

Como lidam com este feedback que vem lá de fora, como por exemplo com as indicações das bolsas de apostas?

Cláudia Pascoal: Fico muito agradecida. Comove-me especialmente o facto de a música ser em português e de a maior parte da Europa não perceber a letra e, ainda assim, perceberem o sentimento que ela transmite.

Isaura: Fico contente, mas descarto logo isso. Não serve para muito e até tenho um bocadinho de medo porque constrói expectativas e é pouco lógico. Ainda por cima, venho de ciências, não sei qual é a base de amostra e podem ter sido só portugueses a votar. Gosto de estar focada. A Europa inteira vai estar, de certeza, a ver o que Portugal vai levar. Ganhámos no ano passado e este ano será cá. Isso para mim já me basta.

A acusação de plágio ao Diogo Piçarra foi um dos episódios que marcou este Festival da Canção.

Isaura: Na altura, até escrevi um texto na minha página porque me estava a incomodar o facto de as pessoas, de repente, estarem a martirizar o Diogo. Não é necessário. Existem órgãos que estão incumbidos de perceber se uma música é ou não plágio e eles é que têm de tomar uma atitude. Só se falava do assunto, e estava a fazer-me um bocadinho de impressão. Não nos podemos esquecer que o Diogo já tem um portfólio de coleções muito bonitas e mostrou bastante trabalho.

“A Europa inteira vai estar, de certeza, a ver o que Portugal vai levar. Ganhámos no ano passado e este ano será cá. Isso para mim já me basta”

Isaura, a Cláudia foi a primeira pessoa de que se lembrou para interpretar este ‘O Jardim’?

Isaura: A primeira pessoa em que pensei foi uma amiga, por causa da voz dela. Acabou por não fazer sentido porque não era só a questão da voz, era também o estilo e o facto de a pessoa ter de se sentir bem com esta canção. Essa minha amiga, ainda que tivesse uma voz muito bonita, nunca se iria sentir bem neste instrumental, mas foi muito importante falar com ela porque foi uma das pessoas que mais força me deu para ganhar coragem para mostrar ‘O Jardim’ à Cláudia, porque não tinha sido essa a primeira música que lhe tinha mostrado. Quando a fiz, terminei também outra exatamente no mesmo dia e pensei: “Não vou dar ‘O Jardim’ a ninguém.” Essa minha amiga deu-me muita força para ir com ‘O Jardim’ ao Festival. O tempo foi passando e eu não sabia quem convidar, não conhecia a Cláudia e não podia imaginar aquela música na voz dela. Como estava sempre a descrever a voz que procurava, a minha prima sabia isso exatamente e mostrou-me a Cláudia. Convidei-a instantaneamente. Ouvi 15 ou 30 segundos do vídeo dela e decidi logo. Só queria conhecê-la, ver que ela era uma boa menina, que se portava bem, tinha um bom coração e depois disso estava escolhido.

Cláudia, o que sentiu e pensou quando a Isaura lhe mostrou ‘O Jardim’?

Cláudia Pascoal: Fui ao estúdio da Isaura para gravar uma outra música e chegámos a gravá-la, mas ela não ficou descansada. Sem ouvir a música, percebi que ‘O Jardim’ era importante para a Isaura e ouvimos a canção pela voz dela. Disse-lhe que queria imenso aquela música e ela deixou-me cantá-la.

“Não nos podemos esquecer que o Diogo já tem um portfólio de coleções muito bonitas e mostrou bastante trabalho”

A Isaura também costuma escrever em inglês, mas para o Festival da Canção optou pelo português. Tenciona escrever mais em português daqui para a frente?

Isaura: O meu trabalho, o álbum, é em inglês, mas gosto muito de escrever em português e senti que esta era a oportunidade ideal. Sempre fez sentido fazer canções em português e não ponho de parte fazer canções na nossa língua, seja para mim ou para outros músicos.

Em Portugal, as músicas em português têm feito cada vez mais sucesso. Também sentem isso?

Isaura: Sim, completamente. Já disse à Cláudia que estou a sentir pela primeira vez as pessoas a relacionarem-se com uma canção que fiz em português. À segunda vez que ouvem, já sabem a letra. Isso é um fenómeno. O pessoal mais jovem usa o inglês como se fosse a língua mãe, mas esta relação é completamente diferente e é mesmo bonita. Não fico indiferente a isso.

Cláudia Pascoal: Concordo. Pessoalmente, sinto que nos últimos cinco anos a música em português ganhou uma nova força.

Isaura: Está melhor do que nunca, fazemos música ao nível do que se faz lá fora. Quando compomos em inglês estamos a competir com o que se faz lá fora, mas quando fazemos em português competimos só na nossa liga. É diferente.

“Sempre fez sentido fazer canções em português e não ponho de parte fazer canções na nossa língua, seja para mim ou para outros músicos”

Em que momento perceberam que a vossa carreira passava pela música?

Isaura: Esta resposta vai parecer um bocado foleira, mas é mesmo desde sempre. Lembro-me de ser miúda, com dois ou três anos, e de começar a cantar assim que aprendi a falar. Como presentes de Natal e aniversário pedia sempre instrumentos musicais, tive todos. Só pedia isso. Sempre tive essa ligação. Não sei o que encontrava na música nessa fase, mas os sons começaram por ser muito divertidos e bonitos. Também gostava de escrever, por isso foi natural começar a tentar ligar a música à escrita. Aos 11 anos já escrevia canções.

Cláudia Pascoal: O meu gosto pela música começou ainda na fase de gestação. Quando a minha mãe estava grávida de mim comprou uma guitarra, queria imenso tocar, mas após duas semanas de aulas acabou por desistir. Sempre que ela tocava eu dava pontapés e ela acabava por sofrer imenso. Entretanto, ela disse que me ia deixar a guitarra, e foi o que aconteceu. Comecei a tocar os primeiros acordes por volta dos 14/15 anos. Sempre gostei, toda a minha família está ligada à música. Não seguem o mesmo estilo musical que eu, mas as reuniões familiares são sempre à volta da música. Nas festas de final de ano na escola também era sempre eu a cantar. Sempre gostei de entreter as pessoas. Já passei pelo stand up comedy e pela apresentação.

Que instrumentos sabem tocar?

Isaura: O meu instrumento sempre foi a guitarra. Também toco um bocadinho de teclados, não de piano, mas dos sintetizadores. Esses dois instrumentos são o que uso para compor. O resto vou arranhando.

Que géneros musicais mais vos influenciaram na juventude?

Isaura: Ouvia de tudo e continuo a ser assim. Sou uma esponjinha, apesar de tentar traçar muito bem a minha identidade. Em miúda, ouvia o pop que todos ouviam, Spice Girls, Britney Spears e Blue. Tudo isso fez parte e continuo a ouvir tudo o que é pop e comercial, mas também ouço alternativa, que não é tão mainstream. Ouço muita música e isso é essencial. Sei que o que faço não é mainstream em Portugal, mas considero fundamental ouvir pop e aqueles refrões catchy, que ficam no ouvido, mesmo quando se faz música alternativa. Quando fazemos música, fazemo-la para os outros e é por isso que é importante ouvir como podemos chegar a mais pessoas.

Participaram as duas em concursos de talentos na televisão. Foi importante para impulsionar a vossa carreira?

Cláudia Pascoal: A participação num programa desses é sempre pertinente, faz parte, principalmente pela questão da experiência em televisão. Agora para o Festival da Canção deu jeito porque já estava habituada a estar à frente das câmaras e isso também ajuda, nem que seja no estado de espírito. Já sabíamos o que vinha dali. Gostei muito da experiência que tive no The Voice.

Isaura: Fui para a Operação Triunfo (RTP1) quando tinha 21 anos, estava a acabar a licenciatura. Precisei de ir a um programa desses porque não queria ficar fechada na minha formação sem a música, foi uma rebeldia minha. Acabei por ficar mais um semestre na faculdade para acabar o curso por causa desse programa. Mas precisava dessa experiência e a Operação Triunfo tinha uma coisa que me atraía muito: as aulas. Antes disso, andei numa escola de música a aprender guitarra, mas nunca foi formação a sério. A oportunidade de ter toda aquela quantidade de aulas que havia no programa, com aqueles professores, era super-aliciante, mais do que a televisão em si. Descobri que esses formatos são de entretenimento, e senti que não tinha lugar para a minha música ali. No entanto, ajudou-me a perceber aquilo de que realmente gosto e, acima de tudo, do que não gosto.

Em que área tirou a licenciatura?

Isaura: Em Biologia Celular e Molecular. Depois fiz Mestrado em Comunicação e, hoje em dia, trabalho em Marketing ligado à ciência. Participei no programa porque sabia que metade de mim só era feliz com a música, foi essa a minha constatação. Também deves ter sentido isso, Cláudia.

Cláudia Pascoal: Estive sempre a variar na minha carreira. Entrei em ourivesaria porque vivia em Gondomar e, para mim, aquele curso fazia sentido. Depois percebi que gostava imenso de pintar, ainda hoje pinto a óleo, e fui tirar licenciatura em Artes Plásticas. A minha participação no casting para o Curto Circuito, da SIC Radical, deixou-me muito curiosa com o mundo das câmaras, vídeos, aquilo que podiam transmitir e quis perceber como isso funcionava. Então tirei Mestrado em Produção e Realização Audiovisual, que não está relacionado diretamente com a televisão.

Ainda é muito difícil viver só da música em Portugal?

Isaura: Depende do que se quer. Para mim é muito difícil. Não me importo de ir para o meu trabalho em Marketing ligado à ciência e ter um dia menos bom, mas a música para mim é sagrada. Se não tivesse esta relação com a música podia ter uma visibilidade maior, mas como tenho uma ideia muito específica do que quero fazer e da forma como gosto de estar na música, isso é incompatível. Não quero colocar essa pressão. Se um dia vier a viver da música, é porque consigo assegurar que vivo da forma que entendo que ela deve ser feita.

O que podemos esperar do novo álbum que está a preparar?

Isaura: Estive um ano inteiro completamente dedicada a este álbum, pus lá o meu coração e a alma inteira. Estou mesmo orgulhosa do que está ali porque é genuíno, como tudo aquilo que tentei fazer. A nível de sonoridade é diferente do EP, em que tive muitas influências dos anos 80, e o instrumental era um bocadinho mais minimal. Agora, os anos 80 continuam a existir, mas fui buscar sintetizadores mais puros, que se fundem um bocadinho com o hip hop. Tentei encontrar-me outra vez. As pessoas vão encontrar a Isaura que, durante aquele período de tempo, tinha aquelas histórias para contar. Estão lá todas e com essa sonoridade que costumava ouvir naquela altura.

“Estive um ano inteiro completamente dedicada a este álbum, pus lá o meu coração e a alma inteira”

A Cláudia também já pensa em lançar um álbum?

Cláudia Pascoal: Claro que agora quero fazer carreira na música, mais do que nunca. Encontrei finalmente a área que quero seguir para o resto da minha vida. Quero lançar pelo menos um single este ano. Espero mesmo que os meus projetos musicais avancem. Neste momento, estou 100% focada na Eurovisão, nem temos tempo para nos concentrarmos em mais nada, mas faz parte dos meus planos lançar qualquer coisa este ano, em português.

Tencionam continuar a trabalhar juntas?

Isaura: Não sei, por acaso têm-nos perguntado muito isso. É algo em que não pensámos. A Cláudia ainda está muito à procura da identidade artística dela. Ela tem o trabalho dela em inglês mas, de repente, canta esta canção e apaixona-se pelo português. No entanto, esta música é uma sonoridade da Isaura que fica bem com a voz dela. Assim que a Cláudia souber qual é a identidade artística, eu estarei disponível para ajudar no que puder, de certeza que o vou fazer. Há várias formas de podermos trabalhar juntas. Cantarmos juntas é o mais óbvio, mas ainda nem o fizemos porque isto não é um dueto. É a Cláudia a cantar e eu a fazer as back vocals. Não havia outra forma de as fazer sem estar lá.

Esta música fala do jardim da sua avó. Esse jardim existe mesmo?

Isaura: Sim, existe mesmo. Isto não é só uma metáfora bonita, é literal. A minha avó tinha o jardim dela. Tratava e cuidava das flores com a maior gentileza e cuidava de nós, da família. Tinha muito cuidado até com as pessoas que não conhecia. Era muito generosa, estava sempre a oferecer coisas e para mim esta música representa um bocadinho disso, da minha avó. Espero que as pessoas sejam contagiadas. A minha avó era uma das pessoas mais bonitas do mundo. Era bom que mais pessoas fossem como ela.

O que iria ela sentir ao ouvir esta música?

Isaura: Tenho a certeza que ia estar muito contente. Ia dizer: “Oh Cláudia, tens de comer mais um bocadinho.” A minha avó estava sempre a dizer isso, queria dar comida a todos. Ia tratar da Cláudia como se fosse neta dela também, era assim que ela era.

Que importância teve a sua avó na Isaura que é hoje?

Isaura: Toda. A minha avó era a minha melhor amiga. A maioria das pessoas não vive na mesma casa que os avós, no meu caso não era assim. Houve uns anos em que trabalhou em França, mas quando eu tinha 5/6 anos, ela já estava cá. É uma segunda mãe, muito cúmplice. A minha avó tinha um amor por mim que ninguém mais tem, e é por isso que me faz tanta falta. Ela foi fundamental na transmissão dos valores que tenho hoje.

Imagem de destaque: Filipe Amorim/Global Imagens