Leia o primeiro capítulo do novo romance de Margarida Rebelo Pinto, “Antes que seja tarde”

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À venda a partir de 15 de novembro, “Antes que seja tarde” é o 25º livro da escritora portuguesa Margarida Rebelo Pinto. Um romance que apresenta histórias de vida de várias mulheres de três gerações diferentes, onde o amor, a traição e o erotismo se cruzam. Pode ler o primeiro capítulo do livro em baixo, ficando a conhecer Maria do Amparo, uma das mulheres apaixonadas neste livro.

Maria do Amparo

Não vemos o mundo como ele é, mas como nós somos. A frase não é minha, é da Anaïs Nin, que, sozinha, fez mais pelo feminismo do que todas as outras escritoras, estadistas e contestatárias juntas. Para as mulheres e para a posteridade, foi uma libertadora. E, no entanto, a sua vida foi atravessada pelo caos amoroso. Entregou-se a amores tórridos, sofridos e impossíveis. Também ela se transformou na sombra do amante Henry Miller.

Para perceber como cheguei aqui, talvez seja melhor tentar entender o que me aconteceu antes. Só então posso ensaiar uma estratégia de saída. Estou há demasiado tempo parada diante de uma parede. Pensei que estavas atrás do Muro de Berlim, que demorou 36 anos a cair. Enganei-me. Tu és a minha Muralha da China, erguida há mais de dois mil anos. Tem mais de 20 mil quilómetros, é quase impossível de subir e ainda mais impossível de rodear. Deve ter sido nela que os guionistas da Guerra dos Tronos se inspiraram para criar a muralha. Na série, é o que separa o Reino do Norte não apenas de todos os outros reinos, mas do exército mais letal de todos os tempos, o dos Mortos-Vivos. Como tantos milhões, segui a série com paixão e quando estava chateada contigo, dizia-te, you know nothing, Jon Snow.

Às vezes, ficava tão irritada com os teus silêncios que me imaginava de arco e flecha, como a namoradinha temerária e rústica que o atingiu deliberadamente, movida pela vingança da rejeição, quando ele a feriu com a sua partida.

Agora já ninguém se lembra dela. Jon Snow morreu e ressuscitou porque se tornou uma personagem demasiado popular para desaparecer da narrativa, foi feito Rei e apaixonou-se pela Rainha Daenerys Targaryen, mãe de todos os dragões. Seja como for, o Inverno chegou há três anos e nunca mais me saiu do coração.

Não passei, pelo menos aparentemente, por nenhum trauma de infância com força suficiente para me boicotar a existência e me atrasar a vida. É verdade que sofri de uma doença prolongada que me impediu de correr e de brincar durante três anos, e então? Não foi o fim do mundo.

Descobriram-me uma deficiência congénita no coração quando tinha 9 anos e fui operada aos 12. Vai ficar tudo bem, disse o cirurgião à minha mãe, que, durante as três horas que demorou a operação, desenvolveu repentinamente uma mecha de cabelos brancos na sua bela franja ondulada. Tudo bem é como quem diz: não podes correr no recreio, não te podes cansar, nada de saltos da prancha da piscina do hotel onde passávamos férias com os meus avós, esta menina é frágil, esta menina é um vidrinho, cuidado, cuidado. E foi assim que me habituei a viver numa redoma, com uma cicatriz no externo que fui disfarçando ao longo dos anos com a aplicação sistemática de cremes regeneradores.

Não é um problema. Assuntos graves são outros: tsunamis, terramotos, guerras, epidemias, fogos, atentados e doenças incuráveis. Não se trata de uma doença, tão-só de uma condição. E é com ela que tenho aprendido a viver. Afinal, quantas coisas não controlamos na nossa vida? O dia em que nascemos, quem são os nossos pais e irmãos, quem vão ser os nossos filhos, o nosso ADN, o dia em que morrem os nossos parentes mais queridos, e ainda o tempo, o clima, as fases da Lua e o movimento das marés, a rotação da Terra e o movimento dos planetas, quantos anos brilha uma estrela e onde vai chover amanhã. Chega, ou querem mais?

Outra coisa que descobri quando era ainda criança tem que ver com a relatividade do tempo. O tempo não é linear, é cíclico, e por vezes sobreposto. Um dia pediram a Einstein que explicasse de forma simplificada a teoria da relatividade e ele disse: se falar uma hora com uma mulher bonita, vão parecer dez minutos; se puser a mão em cima de brasas durante um segundo, vai parecer uma eternidade. Era o que sentia durante a aula de Ginástica, enquanto esperava que a turma saltasse o cavalo de arção e treinasse rodas e flic-flacs. Foi nesses momentos repetidos de solidão que aprendi a cultivar a imaginação e a paciência. O meu coração estava a salvo, ordeiro e sem sobressaltos, conseguia ouvi-lo e ver o resultado do movimento sincopado que fazia dilatar a pele entre as costelas, isso era o mais importante.

Cresci como todas as crianças, pernas e braços ao mesmo tempo e do mesmo tamanho, peito e rabo como compete a todas as meninas. Peito e rabo bastante mais tarde do que era suposto, era alta e magra de estrutura, reza a psicologia que os leptossómicos demoram mais anos a ganhar peso e curvas. Fui uma criança feliz, festiva e endiabrada e não me lembro de me sentir triste durante a doença. Sozinha sim, mas triste, acho que não. Cantava baixinho, lia e sonhava muito, imaginava-me numa outra vida. Aprendi a viver o futuro por antecipação. Quando puder brincar, vou descer todos os escorregas do mundo e mergulhar em todas as piscinas do planeta. Quando ficar mais forte, serei mais livre. Irei viajar, divertir-me e agarrar o mundo. Eram estes os pensamentos que me acompanhavam todos os dias. A imaginação tornou-se a minha melhor amiga.

O facto de ser filha única acentuou a sensação de permanente solidão. Não se tratava de uma solidão imposta por terceiros, mas decorrente da vida como ela é, e, portanto, nem sequer era um problema. Era assim. Aprendes desde criança a fazer tudo sozinha: brincar, estudar, adormecer, acordar, comer, chorar, rir, sentir, pensar, sonhar. E quem vier a mais é sempre um bónus.

O tempo passou e recuperei forças. Aprendi a nadar, voltei a correr pelo recreio do colégio, a brincar à apanhada, a andar de baloiço e a descer pelo escorrega. O meu pai ofereceu-me uns patins de quatro rodas com duas tiras de couro e fivelas, uma por cima dos dedos e a outra junto aos tornozelos, e, aos 15 anos, com as minhas economias comprei um skate azul com rodas amarelas.

Tive uma adolescência normalíssima, com paixonetas parvas, amores platónicos, experiências sexuais atabalhoadas, festas de garagem e duas bebedeiras grandes, daquelas de vomitar na rua e de ficar de molho em casa até ao dia seguinte. A primeira foi no Verão em que fiz 16 anos, na discoteca mais próxima de São Martinho do Porto, o Green Hill. Bebi quatro cubas libres, e quando dei por mim estava a tourear os carros que saíam do parque de estacionamento com um casaco encarnado e a gritar olé, olé. A segunda foi na inauguração de uma discoteca em Lisboa, nas Avenidas Novas, o Spring Fellows, que depois se transformou numa casa de strip muito famosa que entretanto fechou. Devia ter 18 ou 19 anos, no máximo. Foi nessa época que conheci a Cristina. Andávamos juntas no ténis, ela com um jeitão para aquilo, e eu com pouca força e alguma técnica. Ainda joga, nunca perdeu a mão: eu abandonei pouco depois de ter começado, mas a nossa amizade nunca se perdeu.

Nunca caí de moto nem tive nenhum acidente de carro, os meus amigos eram ajuizados e eu também. Saía muito à noite, como era comum nos anos 80 e 90, para lugares onde havia sempre gente conhecida. Coleccionei viagens e namorados, vivi sozinha vários anos, durante os quais tive um amor secreto, até decidir que estava na hora de mudar de vida.

Um dia, quis ser mãe e fui, quis trabalhar naquilo que mais gostava e trabalhei, quis organizar a minha vida e organizei. Poucos anos depois, separei-me e as coisas começaram a correr cada vez melhor. Quando dei por mim, os meus filhos tinham 20 anos e estavam na universidade. A Luísa foi viver sozinha com a mesma idade em que eu fui, não tinha como negar-lhe esse sonho. Em breve o Rodrigo regressa a Londres e talvez não volte tão cedo. É um músico talentoso; se vencer por lá, viverá a ilusão de conquistar o mundo com a sua arte. Tem 22 anos, eu era igual na idade dele, sonhava que tudo era possível, está no seu direito.

Ter começado a fazer tudo muito cedo deu-me muito tempo para viver. A trabalhar desde os 19, formada aos 22, mãe aos 26 e 28, quando cheguei aos 30 tinha a vida organizada, pelo menos aparentemente. Para muitos foi assim, o modelo clássico de sucesso da Geração X, filhos dos ordeiros e exemplares baby boomers.

Pertenço a uma geração muito focada. Portugal estava em expansão e nós a surfar a onda. Assim que me formei, fui a entrevistas de emprego. Só precisei de ir a duas para ser imediatamente contratada. Comecei a trabalhar numa companhia de seguros. Não gostava do que fazia porque sempre tive uma paixão por acessórios de moda: carteiras, lenços, cintos, colares, chapéus. Quando era miúda, vendia cestas de praia e chapéus de palha decorados com flores e frutos. Gostava de os fazer e de os vender. A sensação de ganhar dinheiro sempre me deu prazer, além da sensação de segurança.

Seis meses depois de ter sido contratada, fui dispensada. O director-geral, que nunca tinha ido com a minha cara, quis pôr outra pessoa no meu lugar. Chorei meia hora e, quando limpei as lágrimas, a Cristina deu-me a ideia de fazer o impensável: criar a minha empresa, a minha marca. Tens tanto jeito e imaginação, ninguém faz cestas e chapéus tão giros como os teus, disse. Até me deu o nome. Capuchinho Vermelho.

Arrisquei. Fui ao banco e pedi um pequeno empréstimo. A minha formação em gestão serviu para fazer sempre bem as contas e nunca dar um passo maior do que a perna, mas a minha paixão eram o marketing e a imagem.

Quando comecei a brincadeira das cestas decoradas, também acreditei que ia conquistar o mundo. Quem faz um cesto, faz um cento, fazer cestas cansava muito menos do que treinar durante horas grand pliés e allongés.

Os médicos tinham dito não se pode cansar, o que era sinónimo de não pode dançar. Troquei uma carreira sofrida de bailarina pela de inventora de cestos. Comprava e decorava: flores, frutos, berloques, fitas, laços, franjas, o que me apetecia, sem pensar que um dia as minhas brincadeiras enfeitadas me levariam longe. Fui organizada e ambiciosa, investi na imagem da marca, ofereci as minhas meninas a actrizes e apresentadoras de televisão, e quando dei por mim era a Maria das Cestas, toda a gente queria ter uma cesta minha para levar à praia ou a um cocktail.

Foi uma loucura. Quantas mais cestas fazia, mais vendia. Num ano dupliquei o preço e tripliquei as vendas. Vivia sozinha, a contragosto da minha mãe, que se sentia muito sozinha em Campo de Ourique e passou a ficar cada vez mais tempo em Santarém, na casa de família dos meus avós. Tinha uma vida óptima, fazia o que queria, a empresa crescia, viajava muito por causa da marca, namoriscava rapazes mais para fugir ao tédio do que por qualquer outra razão, porque o meu foco já era o trabalho. E, depois, conheci o Joaquim.

O Joaquim mudou a minha vida. Ficou sentado ao meu lado no avião na viagem a Milão, onde fui a uma feira expor as cestas e divulgar a marca. Meteu conversa comigo, eu tinha 24 anos e ele 44. Era um homem bem-parecido, já com o cabelo grisalho, de olhos azuis, barba bem aparada e um sorriso capaz de acender pelo menos meia dúzia de estrelas no céu. Também ia à feira em busca de negócios para investir.

Simpatizei imediatamente com ele. Ele encantou-se comigo logo no voo. Fez-me companhia durante a estada, estava sempre disponível para me levar a passear e a almoçar pela cidade, apresentou-me a várias pessoas, foi uma espécie de anjo protector. Soube ganhar a minha confiança e o meu carinho. Eu sentia uma grande atracção por ele, mas, aos 24 anos, nem me passava pela cabeça envolver-me com um homem com mais 20 anos, casado e pai de dois adolescentes. Estava convencida de que tinha arranjado um amigo para a vida. E tinha mesmo. O que eu não sabia é que um mês mais tarde já estaria completamente envolvida com ele.

Não sei se cheguei a apaixonar-me. A ideia parecia-me absurda. Não imaginava o meu futuro com ele, isso nunca me passou pela cabeça. Mas adorava-o. Ele dava-me um bem-estar incrível. Talvez nunca mais tenha sentido o mesmo bem-estar com outro homem depois dele. E apesar de ter sido há mais de 20 anos, ainda tenho saudades dessa sensação de protecção.

O Joaquim foi o melhor namorado que tive. Não digo amante, porque nunca o vi como tal, nem nunca me tratou dessa forma. Não tínhamos uma relação de amantes, aquilo era mesmo um namoro. Telefonava-me todos os dias, almoçávamos duas ou três vezes por semana, jantávamos todas as quartas-feiras, vinha ter comigo ao sábado ou ao domingo de manhã e fazíamos três ou quatro viagens por ano. Tinha um apartamento pequeno em Caxias, só para a sua vida privada, onde nos encontrávamos quando nos apetecia. O sexo era óptimo, a conversa ainda era melhor, eu fazia ovos mexidos com baked beans, ele abria uma garrafa de branco e éramos felizes. Cuidava de mim, protegia-me e aconselhava-me.

Foi graças a ele que o meu negócio ganhou asas fora de Portugal. Quando, depois de uma viagem juntos a Nova Iorque, consegui pôr as cestas à venda no Begdorf & Goodman e saíram na Vogue americana, a marca deu um salto gigantesco. Nessa época já tinha criado um nome internacional, RedHat. Na Primavera seguinte, as cestas e os chapéus apareceram na Vogue francesa e na italiana e eu vi os meus sonhos realizarem-se. O sonho comanda a vida e sempre que uma mulher sonha, o mundo também pula e avança.

O meu caso feliz aguentou mais ou menos dois anos e depois acabei com tudo. O Joaquim ficou triste, mas aceitou. Aceitou sempre tudo em mim, acho que me entendia como ninguém, e o facto de me adorar fazia com que tivesse uma empatia profunda pelos meus sonhos.

Eu queria o que a maioria das miúdas antes dos 30 queria nos anos 90 em Portugal: casar-me e ter filhos, começar tudo do zero, uma família perfeita com um rapaz da minha idade. Queria alguém que encaixasse no cenário que criei para mim. Como a ocasião faz o ladrão, casei-me com o primeiro simpático disponível que me apareceu à frente depois do Joaquim. Calhou ser o Rodrigo. Tudo muito rápido, tão rápido que só podia dar asneira.

Carrego uma história de sucessos, mas também de insucessos. Tive um casamento horrível. Apesar de todos os esforços, não consegui aguentar a pressão em casa: o temperamento imprevisível, os ataques de ciúmes e as mudanças de humor do meu marido tornavam o nosso dia-a-dia insuportável. Ele tinha problemas que mais ninguém tinha, como se um complicómetro gigante e invisível dominasse todos os seus sentimentos e acções.

Tentei entender-me com ele durante cinco anos, mas a minha vida só piorava. Quando acordava, olhava para a cara no espelho e dizia, welcome to the fucking nightmare. À medida que o tempo passava, reconhecia cada vez menos a expressão de desalento na imagem que via reflectida ao sair do duche. Não era só aquela imagem que estava embaciada, também eu estava embaciada por dentro e por fora: cabeça, corpo e coração. Ainda hoje, quando vejo fotografias desses anos, sinto uma angústia miudinha e uma estranheza que volta sempre. Aquela pessoa já não era eu, apenas uma sombra. Um dia, não aguentei mais e desisti. Desisti para não me habituar à infelicidade, para esquecer a minha teimosia, para continuar a minha vida e vivê-la o melhor que soubesse. Desisti dele porque não podia desistir de mim.

Vinte anos depois, estou só. Mais vale só do que mal acompanhada, ou, pior ainda, desacompanhada. Prefiro mil vezes dormir sozinha do que partilhar a minha cama com alguém de quem não gosto.

Fiz quase tudo bem. Nunca embarquei em segundas escolhas. Fui cometendo erros de casting ao longo da vida, mas quem nunca se enganou que atire a primeira pedra. O amor é uma coisa espectacular quando corre bem. O pior é depois, porque, como é cego e muito estúpido, pode fazer de nós pessoas com essas mesmas incapacidades. Não tenho a certeza se ser estúpido é ou não uma incapacidade, mas sempre que me sentia estúpida, também sentia uma diminuição notória nas minhas capacidades cognitivas, e isso deixava-me revoltada.

Agora decidi parar e vou ficar quieta o tempo que for preciso. Não tenho nenhum comboio para apanhar e Deus lá sabe o que tem guardado para mim. Depois de uma série de trapalhadas, quero acreditar que aprendi alguma coisa. É melhor ficar sossegada do que repetir erros, sobretudo quando um erro começa como um sonho e acaba numa desilusão que te rouba o sono, o apetite, a alegria de viver e alguns anos de vida.

O último erro foste tu. Mais tarde escreverei o teu nome. Por enquanto, ficas sem designação definitiva. Não sei onde te arrumar, que é o mesmo que dizer que não sei como te vou guardar. Talvez escolha uma das alcunhas que inventei para ti ao longo dos anos, ao sabor do momento, daquilo que sentia, da forma como te via e como te amei. Foram tantas!

Alguma servirá para a posteridade.

[Primeiro capítulo “Antes que seja tarde”, de Margarida Rebelo Pinto, 2017

[Fotografia: Filipa Bernardo / Global Imagens]