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Alunos transgénero: Escolha de WC deve ser acompanhada de formação para evitar bullying

Fotografias: Shutterstock

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Desde que entrou em vigor, a 17 de agosto, que o despacho sobre a aplicação da lei da identidade do género nas escolas, voltou a reacender a polémica, tendo sido lançada uma petição online pela suspensão do diploma, já com mais de 21 mil assinaturas.

Entre os pontos que tem gerado mais controvérsia está a alínea três do artigo cinco, segundo a qual as escolas “devem garantir que a criança ou jovem, no exercício dos seus direitos, aceda às casas de banho e balneários, tendo sempre em consideração a sua vontade expressa e assegurando a sua intimidade e singularidade”.

Se por um lado, representantes dos pais e encarregados de educação apoiam as novas medidas, defendendo que permite às escolas dar respostas adequadas a uma realidade que já existe – a de alunos em transições sociais de género – e prevenir situações de marginalização e discriminação, também há quem se oponha, contestando a sua eficácia e os limites do papel da escola. O PSD e o CDS consideram que o governo está a tentar impor aquilo que designam de “ideologia de género”, no currículo escolar, e por isso apresentaram ao Tribunal Constitucional um pedido de fiscalização sucessiva da lei da identidade de género. Já a Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap) diz existir “um alarmismo por desconhecimento do diploma”

Uma das questões mais sensíveis é o equilíbrio entre liberdade e autodeterminação das crianças e jovens e a segurança e respeito pela liberdade do outro. O PSD considera que parte do despacho poderá potenciar “fenómenos de ‘bullying’ e violência escolar” – o que governo e pais acreditam que o despacho vai ajudar a evitar.

Raquel Martins Ferreira, psicóloga clínica, que trabalha com jovens, defende que há aspetos fundamentais a ter em conta para que aplicação das medidas constantes no diploma, nomeadamente, a possibilidade de alunos transgénero escolherem a casa de banho a que querem ir, ou nome pelo qual querem ser tratados, independentemente do sexo com que nasceram. Para a especialista, é fundamental que a medida não seja aplicada avulso e que seja acompanhada do enquadramento necessário junto da comunidade escolar.

“Dar, por si só, liberdade à criança de escolher um espaço ou outro, conforme se sente melhor, não me parece ser suficiente, nem que vá ser benéfico. No entanto, se for feito um acompanhamento, dada formação, se os próprios professores, auxiliares, se toda a componente escolar estiver a par da situação, formada para o efeito, e se isto começar a ser falado, conversado desde cedo com as crianças e for visto como uma coisa normal, aceitável. Se não houver esta explicação e fundamentação, então pode levar a situações de bullying.”

A psicóloga lembra que sem essa formação de base nos mais novos, as situações de potenciais humilhações de colegas transgénero podem acontecer mais facilmente. “Uma criança só brinca, só goza ou só faz bullying quando não lhe é explicado que aquilo com que goza é uma coisa normal”, começa por explicar. Raquel Martins Ferreira acrescenta que o desafio está em definir para a criança a realidade de um colega transgénero, à luz do que lhe é ensinado como sendo normal e aceitável.

” A criança que normalmente faz bullying a outra tende a identificar uma fragilidade ou lacuna que a outra tem, para poder fazer disso um motivo de risota. Se houver comunicação, um acompanhamento em casa, e da parte dos professores, podemos ir, aos poucos, mudando algumas mentalidades”, defende.

Formação de base que ultrapassa a escola

Essa formação de base começa ainda antes do percurso escolar e continua para lá dele. Ensinar a aceitar a diferença começa em casa, onde se aprendem as primeiras referências em relação à identificação dos géneros.

“A criança percebe se é menino ou menina, por formas de vestir, por determinados comportamentos, de estar, que ainda são diferentes. Isso é ensinado. Nós enquanto agentes de educação, pais ou professores, ensinamos às crianças como é que as coisas se fazem e como se devem fazer enquanto elas crescem. Se lhes for explicado que nem toda a gente nasce com o sexo que quer ou que lhe é mais confortável, se isso for falado de uma forma livre e disponível, respondendo às perguntas que elas fazem no início, acaba por não ser um tabu”.

Responder a essas perguntas pode passar, simplesmente, por, da mesma forma que se ensina as crianças “a atravessar a estrada, a comer, a dizer obrigado ou se faz favor”, ensinar também “que somos todos livres, que cada um tem o seu espaço e que não faz mal gostar-se de pessoas do mesmo sexo, e que também pode acontecer não nos sentirmos bem no corpo em que nascemos”, considera.

A psicóloga lembra que “formamos a nossa entidade sexual, relativamente ao nosso corpo, a partir dos 2, 3 anos e isso acontece não apenas com base em fatores biológicos, mas também em fatores externos, como os sociais”. “O que acontece é que se isto não é visto como normal, estamos logo desde cedo a castigar crianças que não se sentem realmente confortáveis no seu próprio corpo e isso faz com que, primeiro, não se possam expressar livremente e que criem medos e inseguranças e até barreiras, tentando ser aquilo que não são para agradar aos outros, os pares. Isso não é saudável e depois traz-nos problemas no futuro”, avisa a psicóloga.

A conversa com as crianças sobre estas diferenças que sentem ou que vão observando nos seus pares deve começar cedo, adaptando-a e adequando-a à idade. “Não faz mal nenhum falar com as crianças de uma forma empática e ir respondendo ao que elas vão perguntando, quando elas veem, por exemplo, um rapaz vestido de rapariga e perguntarem porque é que isso acontece, explicar-lhes que não faz mal”, defende a especialista, acrescentando que é preciso “largar aquela ideia de que o cor-de-rosa é para meninas e o azul é para rapazes, largar esse tipo de preconceitos que depois não nos ajudam, efetivamente, a ter ou manifestar uma opinião diferente, ou uma escolha ou vontade diferentes.”

No fundo, diz, os pais devem “ir criando um espaço de comunicação com as crianças e ir explicando e respondendo, sem preconceitos”, às suas perguntas sobre as questões de dúvidas de género com que se vão deparando.

“Não se pega”

Mas se a identidade de género se constrói também no reflexo dos pares, pode uma criança que veja outra, num corpo de menino e que se veste como uma menina, ou vice-versa, ficar confusa em relação à sua própria identidade de género e sexual?

“Se houver uma relação de comunicação e partilha [entre pais e filhos], não”, responde Raquel Martins Ferreira, acrescentando que “a criança percebe e entende”.

“Eu acho que não há aqui um problema, e ainda há muita confusão, até mesmo em relação à homossexualidade. Isto não se pega. Não é nada de dramático. Tem de haver aceitação, embora efetivamente haja a liberdade de cada um, que acaba e termina onde começa a do outro, mas há espaço para todos e tem de haver integração e empatia”. Ou seja, “não é por haver um colega na escola que não se sente bem na sua pele ou que tem uma preferência ou um gosto diferente que a outra criança fica confusa em relação a isso e que se vai sentir da mesma forma”, assegura a psicóloga, lembrando que é normal, durante o seu crescimento as crianças passarem por fases de interrogação e indefinição, na construção da sua identidade de género e sexual.

“Todas as crianças e adolescentes equacionam, porque estamos a falar em alturas em que há confusão de sentimentos, em que se sentem atraídas pela melhor amiga ou pelo melhor amigo, ou pelo rapaz mais popular. Isso acontece, é natural. Depois a criança vai crescendo e tendo mais espaço para se definir enquanto pessoa, de acordo com o seu género ou a sua identidade”.

Para a psicóloga, tão importante como formar é desdramatizar situações, que, lembra a CONFAP, são uma realidade que existe e que já estão identificadas e tratadas em muitas escolas.

“Ainda temos essa ideia de que as coisas “se pegam” e não é verdade. E as crianças têm muito maior poder de encaixe e lidam muito melhor com este tipo de situações muitas vezes do que nós adultos”, conclui Raquel Martins Ferreira.

 

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