Testemunho: parto imprevisto em casa após ida à MAC e com instruções pelo telefone

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[Fotografia: Amina Filkins/Pexels]

Grávida de 40 semanas e já com contrações, Filipa Murraças, 41 anos, antropóloga de formação, foi enviada pela Maternidade Alfredo da Costa para casa e esperar por uma hora mais próxima do parto. Menos de três horas depois, nem o INEM chegou a tempo.

A antropóloga acabou por ter o filho no banho, com a ajuda do marido, João, de 48 anos, e com a filha de cinco anos do outro lado da porta da casa de banho. “Foi uma alegria imensa, mas poderia ter sido uma grande tragédia”, testemunha ao Delas.pt.

Uma história com final feliz que teve lugar a 6 de junho, dois dias antes de uma mulher, encaminhada par cesariana de urgência, ter perdido o bebé. Nessa data, o Centro Hospitalar do Oeste teve constrangimentos no preenchimento da escala médica, o que determinou o encerramento da urgência ao CODU/INEM, obrigando a mulher a ser remcaminhada. O caso está a ser investigado pela Inpeção-Geral das Atividades em Saúde. Uma primeira tragédia que viria por a descoberto a falta de médicos em Ginecologia e Obstetrícia durante todo o verão, com encerramento de maternidades e reencaminhamento de grávidas para outras unidades hospitalares.

Leia em baixo o testemunho de Filipa Murraças:

“6 de Junho de 2022.

Pouco passava das sete da tarde.

Tinha já concluído as 40 semanas de gravidez e tinha-me sido marcada uma indução do parto para 8 de Junho.

As contrações que vinha a sentir espaçadamente desde o dia anterior, intensificavam-se agora em intervalos de um a dois minutos, ininterruptamente.

Estava a acontecer, mas eu não sabia, pensava que era o corpo a preparar-se, mas que ainda não era o momento. Rebentaram-se as águas e ligo ao meu marido para que corra para casa, porque afinal está a acontecer.

Decido entrar na cabine do duche para atenuar as dores, relaxar o corpo, preparar-me para ir para o hospital. O marido chega a casa para seguirmos para a maternidade, mas respondo-lhe que já não vai dar para ir até ao carro, já não consigo sair dali. Ele liga para o 112. Nenhum dos dois sabe o que fazer.

Seguem-se minutos que são um misto de agonia, incerteza e sobrevivência. Do outro lado da linha um sem número de questões, que não lembram nem ao diabo num momento de extrema urgência. Ouço o meu marido gritar que a situação está a acontecer agora, a pedir para agilizar, porque é necessário auxílio imediato, não sabemos o que fazer.

“Grito que o bebé vai nascer “agora”[…] Impetuosamente, o bebé cai-me nas mãos. Seguro-o nos braços, viro-o de costas e cabeça para baixo e dou-lhe uma palmada nas costas para que chore”

Sinto o corpo a rasgar-se e, por ser mãe de segunda viagem, percebo o que vai acontecer, que estou no duche e que o bebé vai nascer. Grito que o bebé vai nascer “agora” e de uma forma puramente instintiva ajoelho-me para o proteger, para poder segurá-lo e trazê-lo em segurança para o mundo exterior.

Impetuosamente, o bebé cai-me nas mãos. Seguro-o nos braços, viro-o de costas e cabeça para baixo e dou-lhe uma palmada nas costas para que chore. Ouço-o chorar. Num tom muito baixinho, mas ouvi o seu choro. Aparentemente está tudo bem.

Dá-se a altura de passar à fase seguinte e tomar as rédeas à situação, tentar minimizar riscos, saber o que fazer.

Falo com o senhor do 112 em alta voz e peço-lhe instruções. O bebé não pode perder calor e é necessário estancar o sangue do cordão umbilical, que ainda nos mantem fisicamente ligados. Uns atacadores de ténis lavados servem para o momento e o pai aperta o cordão umbilical enquanto seguro o bebé no meu peito.

Eram cerca de 19h50 e o bebé já estava nos meus braços. Correu tudo bem. Foi uma alegria imensa, mas poderia ter sido uma grande tragédia se o universo não tivesse funcionado a nosso favor. Poderia ter sido planeado e preparado, mas não foi. Foi uma situação inesperada e sem qualquer base ou formação para esta situação. E foi totalmente inesperado porque – por mais incrível que pareça – tinha saído da Maternidade Alfredo da Costa menos de 3 horas antes.

[Fotografia: Filipa Murraças]
Tinha sido seguida no Hospital da Luz e a obstetra marcou-me uma indução do parto para 9 de junho. Não estando a sentir que aquela era a coisa certa, decidi ir pedir uma segunda opinião e fui para a Maternidade Alfredo da Costa (MAC). Aqui, fiz um CTG pelas 15 horas.

Informei a obstetra das minhas contrações já a decorrer desde o dia anterior (que esta presenciou várias vezes durante a consulta) e também disse que me havia saído, pela manhã, o chamado “rolhão”. A médica fez-me “o toque”, concluindo que ainda assim, com todas estas condições, o melhor seria eu ir para casa, fazer uma longa caminhada, indicando que não previa que o parto fosse acontecer pelo menos nas próximas 24 a 48 horas. Marcou-me a indução do parto para 8 de Junho.

Saí da maternidade já depois das 16 horas. E lá fui eu fazer uma curta caminhada, porque não conseguia andar na rua naquelas condições. Pouco depois, o bebé nascia no duche, em casa.

Foi uma situação feliz, mas poderia ter corrido muito mal, caso o bebé tivesse nascido durante a longa caminhada, caso a sua posição de saída não fosse favorável a um parto natural, caso o cordão umbilical estivesse à volta do pescoço e mais um sem número de hipóteses que poderiam ter inviabilizado este parto nas condições em que aconteceu.

“Correu tudo muito bem porque o universo e a natureza assim o permitiram, afinal se dependesse das decisões médicas dos profissionais de saúde do nosso país, poderia ter sido muito distinto”

Correu tudo muito bem porque o universo e a natureza assim o permitiram, afinal se dependesse das decisões médicas dos profissionais de saúde do nosso país, poderia ter sido muito distinto.

Até porque, numa sociedade como a nossa, ínfimas são as pessoas comuns que estão preparadas e formadas para assumir o controlo destas situações, estando a grande maioria completamente dependente de procedimentos e intervenções médicas.

Em sociedades mais primitivas esta prática é um acontecimento natural e as mulheres reúnem-se em entreajuda para o ritual do nascimento. Mas na nossa sociedade extinguiu-se e aniquilou-se esse autoconhecimento e sabedoria popular.

Aquilo que temos como ideia assente numa evolução, é simultaneamente uma regressão, um retrocesso. Depositamos toda a nossa confiança e crenças numa classe que supostamente existe para resolver as questões de saúde e relacionadas com o nosso corpo. Acreditamos cegamente na ciência e na medicina, ou pelo menos na ideia que foi implementada acerca delas, mas, como em qualquer outra área, também são falíveis e muito mais questionáveis do que estamos dispostos a aceitar.

[Fotografia: Filipa Murraças]
Até porque aceitar isso é ter também que assumir a responsabilidade de sermos mais dependentes de nós próprios do que dos outros, e essa é uma grande desconstrução de nós próprios e implica dedicação.

O que aprendi com isto é que paralelamente à mente, o nosso corpo é fabuloso e que o ser humano tem em si uma capacidade imensa para se superar quando deixa de racionalizar e passa a sentir e a reagir em função do instinto. A palavra que define a minha experiência: O Máximo, em todos os sentidos da palavra.”