Anabela Moreira: “Venho de uma família que me ensinou que para sair de casa deveria casar”

Anabela Moreira
Anabela Moreira Anabela Moreira, fotografada nos escritórios da Elite Lisbon, no Chiado (Pedro Rocha / Global Imagens )

Anabela Moreira, 40 anos, estreia-se na realização de ficção com a curta-metragem O Dia do Meu Casamento. O filme é exibido no festival Curtas Vila do Conde, no próximo fim de semana e retrata a manhã de um dia de casamento, na perspetiva da noiva. Esta é interpretada pela atriz, que, dessa forma tem na ficção o que não viveu na vida real, apesar do peso da tradição familiar. Fascinada pelos rituais e pelas pessoas comuns, Anabela Moreira esteve envolvida nos últimos anos em diferentes projetos que a levaram a passar uma temporada em Trás-os-Montes, tanto à frente como atrás das câmaras. Um desses projetos é o próximo filme de João Canijo, Fátima, sobre um grupo de mulheres que faz a peregrinação de Bragança a Fátima. Para a atriz essa foi uma das experiências-limite mais dolorosas que teve na vida.

De que fala a sua primeira curta-metragem de ficção?
O Dia do Meu Casamento trata o dia em que uma filha deixa a casa dos pais e passa a ser uma mulher independente, apesar da pressão que sente e de percebermos que não está bem, nessa manhã, a vida continua, toda a gente está preparada para a festa e ninguém repara. É um filme muito simples, quase um exercício. Pretendeu ser um objeto divertido, mas sempre me fascinou este ritual com alguns traços medievais. Se nos conseguirmos colocar como estrangeiros a esta cultura, o próprio vestido da nova é um vestido estranho, uma coisa antiga. Fascinou-me esse lado excessivamente cultural quando duas pessoas começam uma vida. Nunca me casei e venho de uma família que me ensinou que para sair de casa deveria casar. Como não casei na vida real…

E foi isso que a fez avançar com este projeto?
O João Canijo é que provocou isto tudo. Ele lançou-me o desafio talvez há três anos e disse: “Escreve um argumento, vais concorrer ao ICA para fazeres a tua primeira curta-metragem. Eu estou ao teu lado mas o filme é teu”. Na altura, não dei muita importância à questão do concurso. O meu primeiro desafio foi tentar escrever um guião, qualquer coisa que fosse leve. A ideia do tema surgiu porque sempre fui a muitos casamentos, alguns de pessoas que até não conhecia. Estive presente em cerimónias em que era uma estranha a testemunhar um ato tão íntimo. Não sei, acho que o casamento é a coisa mais divertida do mundo e, se pudesse, tinha feito uma longa-metragem em que acompanhava a noiva, desde que ela acorda até que o dia acaba.

Anabela Moreira (Pedro Rocha / Global Imagens)

Acha que ainda existem muitos casos de mulheres que só saem de casa quando casam?
Bom, eu venho de uma família que acreditava que uma filha só sai quando casa. E eu saí de casa, vivo sozinha e ainda há pouco tempo a minha mãe dizia-me: “No meu tempo uma mulher só saía de casa quando casasse”.

Mas e a nova geração?
Acho que não, mas só posso falar por mim. Apesar de ter sentido essa pressão, não cedi a ela. Tenho algumas amigas que cederam e outras que não. Talvez eu venha de uma família demasiado tradicional. A minha mãe de vez em quando deixa escapar que “os animais é que se juntam”. E ela diz-me isto com imenso carinho, nem sequer é uma crítica, porque não consegue conceber essa ideia. Acho que ainda somos um País de costumes muito rígidos e nós não somos só Lisboa nem as grandes cidades. Temos uma variedade de realidades distintas e, portanto, essa ideia também há de estar presente noutras famílias.

Quem são os protagonistas da sua curta?
A protagonista é uma menina, a quem dei o nome de Belinha, porque é, sem dúvida, o meu alter ego. Porque, no fundo, durante essa manhã está presente na noiva uma certa luta pela sobrevivência da criança que todos nós deixamos de ser um dia, a luta para não obedecer a regras, não aceitar as normas. E quando se sai de casa abandona-se essa criança.

Quem faz de noiva é a Anabela.
Sim [risos]. A atriz sou eu. A minha irmã gémea e a minha mãe também entram.

Portanto, proporcionou um casamento à sua família, ainda que apenas na ficção?
Sim, não quis trabalhar só com atores. Desde o início meti na cabeça que queria ter a minha família. Só não me atrevi a pedir ao meu pai para fazer dele próprio. A personagem do pai existe, mas é uma figura que nunca vemos realmente no filme. O filme tem pequenos códigos e pormenores que são só meus. E às vezes tenho medo que seja uma coisa tão pessoal que os outros não a consigam perceber, mas acredito que quanto mais partirmos da nossa pequena verdade, mais justos vamos ser. Por isso, o filme é só a manhã de um casamento, que é a parte mais significativa para mim. Há um processo de transformação da noiva, que naquele momento ainda é solteira mas está prestes a sair de casa dos pais. E é uma saída cheia de preceitos específicos: a maquilhagem, os cabelos, o vestido. Fascinou-me retratar tudo isso.

Nos últimos três anos tem trabalhado em vários projetos com o realizador João Canijo, do documentário Portugal – Um dia de cada vez ao filme Fátima sobre a peregrinação de um grupo de mulheres a Fátima. Que balanço faz desta experiência?
Eu sou verdadeiramente feliz nos estágios [do João Canijo]. A mim não me custa nada estar isolada. Sou feliz quando sou desenraizada e me colocam noutro local e fico fascinada por conhecer outras realidades. Estive em Vinhais, participei na matança do porco e ajudei a preparar as tripas para depois fazer os enchidos e as pessoas às vezes brincavam e diziam: “tu nasceste cá de certeza”.

A longa parceria que tem com o João Canijo influenciou-a a querer passar para trás das câmaras? Porque já o tinha feito no Portugal – Um dia de cada vez.
Ele na altura estava muito ocupado com o projeto de Fátima e disse-me : “Vais a Trás-os-Montes e vais entrevistar pessoas para descobrires que grupos é que existem lá que façam o percurso para Fátima a pé”. Estive lá umas semanas e regressei com material que à partida seria só exploratório. Mas ele ficou fascinado com uma coisa que está fora do meu controlo e que foi o facto de as pessoas em abrirem as portas de casa e com a aproximação que eu consegui ter com as pessoas, mesmo levando uma câmara. Então achou que devia fazer um documentário e ser eu a filmá-lo.

Anabela Moreira (Pedro Rocha/Global Imagens)

As pessoas têm mais facilidade em se expor a uma mulher com uma câmara do que a um homem nas mesmas circunstâncias?
Eu senti isso. Acho que para algumas pessoas é mais complicado abrirem a porta de casa a um homem e pô-lo dentro de casa. Eu também nem sempre me sentia muito segura quando me aproximava das pessoas, mas comecei a perceber que na cabeça delas era como se eu fosse ainda uma menina. A minha aproximação nunca foi nem muito profissional, nem muito adulta. Guiava-me muito pelo instinto do primeiro contacto com as pessoas e acho que algumas acabaram por perder a noção de que estavam a ser filmadas porque se esqueciam que eu era uma estranha.

O João Canijo dá a entender que lhe é mais fácil trabalhar com mulheres do com homens. Como definiria a relação de trabalho do realizador com os elencos femininos?
Ele acredita que existe uma condicionante genética na mulher que a torna mais recetiva do que o homem. Eu não acredito nisso, porque já trabalhei com homens que também eram muito recetivos. Mas ele, de facto, tem um fascínio por atrizes e acha que são mais completas. Às vezes tento refletir um pouco sobre o que ele diz sobre isso e realmente os homens, na nossa sociedade são educados para quase se desligarem do que são. E às vezes, quando estou a ver algumas imagens de homens a desabafarem sobre determinadas coisas é impressionante como sempre que estão próximos de ter contacto com o choro bloqueiam de uma maneira quase aflitiva.

O olhar feminino é diferente do masculino, quando se está atrás das câmaras?
Acho que sim. Normalmente, quando estou a ver um filme consigo perceber se foi filmado por uma mulher.

E o que é que a faz perceber?
Num caso específico, que me aconteceu há pouco tempo ao ver uma série, foram uns momentos contemplativos, de pormenores que instintivamente me diziam: “isto teve de vir da cabeça de uma mulher”. Mas também pode ter sido por a mulher em causa fazer opções muito próximas daquelas que faço.

O que é que procura captar quando está a filmar?
Tinha uma tendência que foi sendo domesticada, neste caso pelo João, porque estava a filmar para ele, e que era fechar muito os planos no rosto, nos olhos, nas mãos, como se quisesse entrar na cabeça das pessoas. Adoro os pormenores. Mas se tivesse só isso eu não tinha a pessoa em relação com nada, portanto tinha de ter o espaço, outras personagens e algumas das coisas mais bonitas que fiz em Portugal – Um dia de cada vez aconteceram quando fiz planos abertos. Portanto, apesar de ser fascinada por pormenores consegui controlar isso nesta curta-metragem. Fui evoluindo um pouco em relação ao que me era instintivo.

Depois deste filme, vai parar ou dedicar-se a outros projetos?
Existem algumas ideias de projetos, mas vim muito cansada do filme do João Canijo. Tive de recusar algumas coisas. Até porque a curta-metragem foi feita entretanto em tempo recorde. Ainda não consegui descansar, por isso agora a única coisa em que consigo pensar é dar espaço ao meu corpo. Os últimos dois anos foram fisicamente muito, muito violentos. A peregrinação de Bragança a Fátima foi das coisas mais dolorosas que fiz na vida. Nessa experiência descobri coisas sobre mim que não descobriria de outra maneira, porque somos colocados em situações limite. E depois reproduzir esse sofrimento na rodagem do filme… Agora vou fazer massagens, acupuntura, espreguiçar-me e passar tempo junto ao mar. Tenho mesmo de recuperar.

Imagens de Pedro Rocha / Global Imagens