Assédio, gravações e tribunal. E se os telemóveis e as redes sociais mudarem a lei?

iStock-1167582845(1)

O assédio sexual de uma menor de 14 anos, por parte de um motorista de autocarro, em Coimbra, inequívoca. A gravação de telemóvel e partilhada nas redes sociais não deixa margem para dúvida. O caso já motivou queixa formal e a suspensão do motorista.

Mas e, olhando par o Direito Penal português, se o tribunal recusar como prova no processo as imagens que toda a gente viu e condenou? Advogada Rita Garcia Pereira explica o que pode acontecer e como fazer para que uma gravação não consentida venha a ser aceite pelo ordenamento jurídico penal português. E possivelmente pela primeira vez na História.

Rita Garcia Pereira [Fotografia: Gustavo Bom/Global Imagens]

De novo: Uma menor que, estando sozinha, apanhava o autocarro é assediada sexualmente pelo motorista, consegue, sob esta pressão e violação, filmar e as imagens são divulgadas na internet. A única prova de que houve crime está num conjunto de imagens que, lembra a advogada Rita Garcia Pereira, especialista em Direito laboral e com histórico em processos de assédio, “o ordenamento penal ignora por serem gravações não autorizadas”.

 

Ver esta publicação no Instagram

 

Uma publicação partilhada por Anhassoi (@anhassoi)

Porém, mesmo que isso venha a suceder, podem os telemóveis e as redes sociais vir a ser os grandes aliados das mulheres nas denúncias de assédio?Salvação total e absoluta não porque depende-se sempre da própria pessoa, mas que se tornam num instrumento sério para ajudar a vítima, não tenho dúvida nenhuma”, responde Rita Garcia Pereira ao Delas.pt.

No Direito Penal, explica a advogada, “as regras de prova são forenses, vigora o princípio da presunção de inocência e não se aceitam gravações não consentidas como meios de prova”. Porém, vinca: “O próprio testemunho das mulheres, desta menor, vale. Ela presta declarações, ela é também testemunha no processo criminal e ela e o motorista não estão em igualdade de circunstâncias num processo-crime. É vítima, mas presta declarações”. Mas isso bastará? “Depende do juiz”, responde a causídica.

Como pode um processo ignorar imagens que toda a gente viu e compreendeu? “Se não me admitissem a gravação, punha a depor testemunhas que identificassem o senhor em causa, mesmo não estando diretamente ligadas ao processo. Seria preciso alguém que dissesse que aquele senhor é quem é para que o video fosse validado como prova”, reage Rita Garcia Pereira. Ou seja, não as imagens, mas o sujeito presente naquelas imagens como agressor.

Em todo o caso, a advogada lembra que o caso de motorista de Coimbra tem um detalhe que pode vir a revolucionar, em parte, esta questão processual. “Tem uma componente que os outros não têm: não ocorreu em propriedade privada. Não há expectativa privada daquele condutor ter um encontro privado”, explica a advogada. Daí que o desfecho possa vir a ser diferente.

“Uma coisa é gravar uma pessoa num sítio privado, outra num local público como é um transporte. Portanto, aí não estamos perante uma conversa privada, num local privado em que o senhor motorista pudesse ter a expectativa de ter condições de privacidade. Torna-se então discutível se esta gravação, apesar não consentida, ser ou não ilícita”, clarifica.

No entanto, para a advogada, agressões como estas vêm levantar a necessidade de ser legislar aceitação de gravações recolhidas de forma não consentida em crimes desta natureza, ainda que “seja um terreno complexo”. “É-o porque mexe com direitos fundamentais, o direito à privacidade e imagem, mas em determinados crimes, os de cariz sexual, é uma grande oportunidade para se legislar sobre a admissibilidade de recolha de imagens e ou voz não expressamente consentidas e sempre que estejam em causa violações desta natureza”, alerta Rita Garcia Pereira.

Direito do Trabalho já aceitou uma gravação não consentidas

Se o Penal não aceita gravações não consentidas, o Direito Cível e o Laboral começam a ganhar regras ligeiramente distintas. “No contexto laboral, já foi admitida uma gravação no caso em que a trabalhadora foi assediada sexualmente numa reunião em que estava sozinha. Ela gravou o som, não a imagem e foi admitida, pelo Tribunal de Primeira Instância e confirmada pelo da Relação”, sublinha Rita Garcia Pereira. Que prossegue: “Tendo em conta que estava sozinha, era o único meio de prova e, com isso, criou-se jurisprudência sobre estes casos, em Portugal.”

Ora, tal aceitação “significa que já não é absolutamente linear que as vítimas, estando em reuniões e nas quais estão sozinhas com o agressor, não possam lançar mão de gravações”.

Porém, alerta a causídica, “significa também, por outro lado, que para pedir eventuais danos morais em Cível, não se sabe que essa gravação é ou não aceite. Não havendo jurisprudência neste caso”.