O medo é encarado como um dos fatores que mais leva mulheres a não conseguirem sair das relações. No entanto, será que é mesmo esta a razão do adiar de um fim desejado ou são justificações apresentadas na tentativa de silenciar problemas internos mais profundos?
O psicólogo e presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses, Miguel Ricou, e a terapeuta especializada em codependência e crescimento pós-traumático, Cristina Leal, revelaram ao Delas.pt as explicações que desencadeiam aquela ideia e ainda soluções para a reverter.
“É difícil fazer uma generalização clara, mas diria que o medo é uma justificação, mais do que uma razão real. É uma razão que as pessoas apontam e que tornam real. O que inibe a quebra da relação é, logo à partida, a resistência que temos à mudança, porque é difícil mudar. Este é o primeiro ponto”, começa por explicar Miguel Ricou.
“Mais difícil é mudar se a relação não for boa por muito paradoxal que possa parecer. Nessas relações, as pessoas vão, de alguma forma, encontrando justificações que lhes ensinem os comportamentos privativos do outro. Consoante o contexto, há coisas para se refletir, porque é como se as pessoas se sentissem mais incapazes de encontrar alternativas e formas de ser mais felizes. Portanto, na dúvida, preferem ficar na infelicidade certa do que numa possível infelicidade maior”, continua o psicólogo.
De acordo com o especialista, está cientificamente provado que o medo da solidão não se relaciona com géneros nem com faixas etárias, mas com traços de personalidade. “Está relacionado com algumas questões emocionais como a ansiedade, a depressão e problemas de substâncias. São questões associadas a mantermos más relações, contudo é importante termos a noção de que as pessoas divorciadas e que vivem sozinhas apresentam solidão e um mal-estar maior”, declara.
No entender do psicólogo, pessoas que apresentem o que designa de “mecanismos de resolução de problemas” como “otimismo, extroversão, capacidade de sociabilidade, altruísmo, cooperação, modéstia, controlo dos impulsos e resiliência estão mais aptas a criar relações positivas“.
Quem tiver uma personalidade mais passiva sente mais dificuldade em sair de uma relação patológica (termo que utiliza para se referir a relações abusivas). Aponta como um dos preditores negativos para estas relações fatores stressantes. “Quando as pessoas passam momentos muito negativos em conjunto, não é um fator positivo, porque vivem emoções muito negativas”, exemplifica.
“Quanto menos dinheiro as pessoas tiverem, menos capazes se sentem de dar alguns passos”
No que diz respeito aos tempos de crise, considera que afetam sobretudo pessoas divorciadas e sem recursos económicos, afirmando: “Costumo dizer a brincar e também a sério que o motivo racional para termos uma relação hoje em dia é económico. A crise pode ter um impacto, na medida em que, quanto menos dinheiro as pessoas tiverem, menos capazes se sentem de dar alguns passos porque precisam de dele para isso. Muitas têm que viver sozinhas, têm que voltar para casa dos pais e ter de tomar uma decisão desse género não é fácil de assumir. Portanto, eu diria só aí.”
Para superar o medo de ficar numa relação onde já não se está bem, Miguel Ricou realça que é importante as pessoas perceberem que, “quando temos uma relação, o grande objetivo é sentirmos que somos pessoas melhores quando estamos com outros do que quando estamos sozinhos”.
E acrescenta: “Nunca podemos aceitar que alguém nos faça sentir piores que o que somos no sentido de, sem querer, nos manipular para nos fazer sentir que precisamos um do outro. Isto é central. Portanto, quando as pessoas sentem que a relação que têm não as faz sentir pessoas melhores, mais confiantes, mais capazes, significa que alguma coisa está errada. Quando isso acontece, tem de se acabar imediatamente com a relação. É fundamental colocar as coisas em perspetiva para perceber o que é importante fazer.”
Em jeito de conclusão, refere que “quanto mais andamos em relações que nos põe mal mais sentimos que não somos atrativos para os outros. Nessas circunstâncias, as pessoas devem pedir ajuda. É fundamental e pode ser determinante.”
Falta de amor-próprio como agente do medo
Por sua vez, Cristina Leal também considera que não é possível generalizar. “Na minha experiência profissional e pessoal, o que mantém as pessoas em relações abusivas podem ser inúmeros fatores. Um deles é a falta de amor-próprio. Recuámos a determinados padrões que nos levaram a acreditar que sem o outro, não existimos. Mesmo que o outro seja abusivo, na maioria das vezes acaba a ser uma representação daquilo que também vivemos no passado, por isso temos tendência a normalizar.”
Para explicar situações de desenvolvimento que levam as pessoas a padronizar comportamentos tóxicos, a terapeuta recorre ao exemplo das crianças “Imagine, os pais de uma criança a discutirem. É parte de uma criança antes dos seis anos acreditar que a culpa é dela, portanto há uma vergonha escondida nela. Vai achar que tem culpa e que não presta.”
Refere também que “a um nível mais superficial, ninguém nos ensina a ter amor-próprio”. “Ele é confundido com egoísmo e egocentrismo, o que faz com que se tolere esses comportamentos”, alerta.
Como exemplo invoca um caso familiar resultante desta constatação. “Quando as pessoas fazem escolhas saudáveis, mesmo na família, ao não quererem lidar com uma pessoa em específico, porque é tóxica para elas, são logo acusadas de serem egoístas”, exemplifica.
Relata que muitas das mulheres a quem dá consultas estão convencidas que não deixam a relação porque amam a pessoa. “Isto é uma armadilha. A pessoa diz aquilo em que acredita, mas se começarmos a colocar as coisas em perspetiva, começamos a perceber “eu posso amar uma pessoa que me magoa, mas poderei eu continuar a permitir que esta pessoa me magoe? Que relação é que eu tenho comigo mesma?”, alerta.
“É a relação comigo mesma que está distorcida”, conclui. Na visão de Cristina Leal, estes factos são originados por crenças limitadoras que as pessoas apresentam como, por exemplo, não acreditarem nelas próprias e se sentirem incapazes de estar com elas mesmas e mesmo com outras pessoas.
“Mulheres necessitam de um maior período de recuperação”
Em termos da incidência, as mulheres são maioritariamente mais afetadas do que os homens. “Basta ver os índices de violência doméstica”, esclarece.
Acrescenta ainda que os homens – ao contrário do que acontece com as mulheres – têm mais facilidade em partir para outra relação. Explica que passam por um processo de superação mais rápido e que costumam usar a rede social do Tinder, por exemplo, como uma das formas para embarcarem numa nova relação.
Já as mulheres necessitam de um maior período de recuperação, dado que além de muitas demorem a recuperar a sua autoestima – sentindo-se incapazes de se relacionar novamente – passam a ter uma maior dificuldade em voltar a confiar noutras pessoas.
Por essa razão, a autora de Porque amamos pessoas que nos magoam? defende que todos deveriam fazer terapia. “Devia ser algo que devíamos fazer desde a escola primária. É uma boa solução para trazer mais consciência e compaixão aos nossos problemas”, conclui.