Leia o perfil de Geraldine Chácon, ativista pelos direitos humanos, natural da Venezuela, pela Amnistia Internacional Portugal, no âmbito da Maratona de Cartas 2018 – Campanha global de direitos humanos da Amnistia Internacional.
Há um misto de louvor e de temor nas palavras com que a mãe de Geraldine Chácon, Natividad, explica a determinação com que esta ativista de direitos humanos abraça o trabalho de educar os jovens a defenderem os seus direitos, em especial os jovens em risco nas zonas mais pobres da Venezuela: ela “luta contra todas as injustiças que vê”. É assim agora, aos 24 anos, era assim aos nove anos quando decidiu que queria ser advogada. Sempre o foi.
Por essa razão – e por muito absurdo que pareça – o Governo venezuelano sinalizou-a como suspeita de “dissidência violenta”, enfiou-a numa prisão durante quatro meses e abriu contra ela um processo criminal assente em alegações infundadas de ligações a grupos violentos. Há familiares da jovem que, passado já o tormento da prisão, lhe perguntam “por que não ser antes contabilista?”, brinca Geraldine Chácon. Mas a ativista, com raízes portuguesas (o avô era do Funchal), não acredita em recuos na defesa dos direitos humanos.
“Tenho medo sim, não tanto por mim, mas pela minha família, pelo sofrimento que passaram e que não quero que voltem a passar. É uma decisão difícil, mas já fiz a minha escolha. É aquilo em que acredito. Continuo a trabalhar ativamente com a Amnistia Internacional e a motivar os jovens para continuarem a ser ativistas de direitos humanos e a compreenderem a importância e o valor humano de o fazerem. Não quero que se sintam intimidados com o que me aconteceu. Quero que se sintam investidos de poder – é assim que eu me sinto”, prossegue Geraldine Chácon.
A organização não-governamental venezuelana de que era vice-diretora antes de ser detida, a Fundación Embajadores Comunitarios (FEC), está atualmente sem funcionar. A perseguição de que a ONG foi alvo por parte das autoridades levou todo o corpo diretorial a sair do país e os voluntários pararam de trabalhar. “O que não significa que não voltemos jamais a fazê-lo”, avisa.
A FEC tinha mais de 200 voluntários envolvidos em programas em redor de Caracas, inspirados no Modelo da Organização das Nações Unidas, para ensinar a jovens em situações de exclusão social capacidades de liderança, técnicas de resolução de conflitos e educação para os direitos humanos. Desde 2008, a ONG treinou 900 adolescentes – 50 obtiveram bolsas de estudo universitárias – e recebeu mais de 150 prémios no país e internacionais.
“Habitualmente estas aprendizagens chegam apenas a elites. Na FEC levámo-las a comunidades empobrecidas para ajudar a criar líderes. Os jovens e as famílias estavam conscientes das injustiças que sofrem e expressavam muita raiva, mas também estavam do nosso lado, com uma resposta humana de grande apoio. Em instituições com que trabalhámos, algumas escolas públicas por exemplo, de repente havia medo do Governo e temiam o contacto connosco. Era um trabalho difícil, mas também muito importante”, explica Geraldine Chácon.
A ativista venezuelana, com raízes portuguesas (o avô era do Funchal), não acredita em recuos na defesa dos direitos humanos
A Venezuela vive uma das piores crises a que a região das Américas já assistiu em décadas, afetando o acesso dos cidadãos até a bens e serviços essenciais, desde cuidados de saúde à alimentação – recentemente a agência das Nações Unidas FAO alertou que 3,7 milhões de venezuelanos estão a passar fome. A isto acresce que todos os dias são cometidas violações de direitos humanos por agentes do Estado, incluindo medidas repressivas com recurso a métodos militares que estão a matar os jovens, em particular os que vivem em pobreza.
O propósito das autoridades em perseguir a FEC e Geraldine Chácon é transparente: estas organizações, que ensinam direitos humanos, estão, em última análise, a apoiar grupos anti-Governo, foi declarado por um responsável governamental de topo num programa de televisão a 17 de janeiro, duas semanas antes de a ativista ser detida em casa, em Caracas, por sete agentes armados do Servicio Bolivariano de Inteligencia Nacional (SEBIN, a agência venezuelana de serviços secretos e de informações).
Naquela madrugada de 1 de fevereiro, os agentes informaram-na que tinha de os acompanhar para prestar declarações no quartel-general do SEBIN, sem especificarem razões nem lhe apresentarem mandado. Garantiram-lhe que estaria de volta a casa em duas horas. Esteve, porém, encarcerada até 2 de maio no centro de detenção de El Helicoide – em violação até da ordem de tribunal que lhe atribuíra o direito a liberdade condicional a 2 de abril.
“Naqueles primeiros dias, nas primeiras semanas, pensei sempre que iria logo ser liberta. Era um engano, ou a lentidão da burocracia, eu não tinha feito nada de errado e dali a pouco ia voltar para casa e estar com a minha família. Seria nessa tarde, seria no dia seguinte, dali a horas. Perguntei [aos agentes do SEBIN] o que queriam, que informações lhes podia dar sobre o que estavam a investigar, mas não me diziam nada, não me explicavam nada. Cada hora que passava era mais frustrante: estava sozinha, isolada… a ansiedade entra em crescendo, o desespero instala-se”, recorda.
Ao fim de um mês teve um “momento de clarificação”. “Percebi finalmente que era a mim que queriam, era de mim que estavam atrás, por causa do meu trabalho em direitos humanos, por ajudar os jovens a sentirem que têm valor e poder”, explica. Podia ter quebrado aí, deixar-se invadir pelo desespero.
Mas aconteceu justamente o contrário: “A ansiedade desapareceu e comecei a pensar em como lidar com aquilo de cabeça fria, com controlo das minhas emoções, porque não quis tornar-me num monstro vingativo cheio de ódio. Continuei a sentir medo e preocupava-me, mas manter esse controlo foi o que me ajudou, foi o que me permitiu sobreviver intacta àquela situação. Muito simplesmente, não quebrei”.
E tudo foi feito pelas autoridades para que quebrasse. Continua, aliás, a ser feito. Geraldine está em liberdade condicional, mas impedida de viajar para fora da Venezuela, tem de se apresentar a cada 30 dias no tribunal e o processo criminal contra ela continua aberto, apesar de os procuradores não terem formulado nenhumas acusações concretas. Pode voltar a ser detida a qualquer momento.
Natividad até hoje não consegue compreender por que razão uma jovem tão empenhada no bem-estar da comunidade como a sua filha é detida e enfiada numa cela sem razão. Geraldine também não. A jovem ativista sabe com clareza, porém, como isso a mudou: “Fiquei ainda mais consciente da importância do ativismo de direitos humanos. Era empenhadíssima antes, mas não compreendia a importância e o valor humano desse trabalho. Agora estou do outro lado da história, agora eu sou vítima de perseguição, e ter percebido o valor de receber o apoio de outras pessoas mudou-me. Sei agora na pele como o trabalho de direitos humanos e o ativismo em defesa das outras pessoas é importante”.
“Na prisão”, evoca ainda Geraldine, “o maior medo que nos assola é o de ser esquecida e ficar a apodrecer numa cela”. “Por isso, quando me chegavam cartas da família e de amigos, o meu dia mudava, eu sabia que não ia ser esquecida, que havia quem estava do meu lado, que não iria permitir nunca que eu fosse esquecida”, expressa com gratidão.
Todas as cinco petições da Maratona de Cartas 2018