De Minas Gerais para Cabo Verde: conheça a mulher que leva a literatura às crianças

Marilene Pereira, 53 anos, é brasileira e é autora de literatura infantil cabo verdiana. Esta manhã esteve na Escola Básica de Ponta d’Água, a contar uma história com tapete. Não lê. Conta a história às crianças do 3º ano naquela escola da periferia da cidade da Praia, numa iniciativa do calendário do Festival Morabeza – Festa do Livro que decorre na capital de Cabo Verde de 30 de outubro a 5 de novembro.

Marilene estende o tapete no chão do pátio da escola, um tapete que é mágico de onde saltam personagens palpáveis, em tecido, para contar a história do Bolimundo, o boi precioso que o rei da ilha queria muito e que acaba por se transformar em príncipe quase no final da história. “É importante que as crianças vejam as personagens e lhes possam tocar.” O tapete foi feito por medida: mais do que as dimensões, foi importante adaptar as paisagem e o tom da pele das personagens ao público. “As ilustrações estrangeiras até são muito bonitas mas se as crianças não se conseguem relacionar com as personagens acabam por perder o interesse. Aqui nesta escola não vemos crianças brancas.”

Contar histórias, recuperando a tradição oral que se vai perdendo é uma parte do trabalho de Marilene Pereira, que faz parte da direção do Centro Cultural Brasileiro da Praia, “o único centro cultural da ilha que funciona”. Recuperar é uma palavra-chave. Marilene conta uma história tradicional da ilha de Santo Antão que diz que ninguém conhece. A professora Ludomilde Semedo, que ensina as primeiras letras e o português a estas crianças do 3º ano, confirma esse cenário: “Quando eu era pequena sim, os mais velhos contavam-nos histórias, à tarde. Agora não. Os miúdos estão muito tempo à frente da televisão.”

Em frente a Marilene Pereira, as meninas e os meninos confirmam esta teoria. Quando a contadora lhes pergunta onde é que há histórias depois dos livros, vem a televisão e só muito tempo depois se lembram que também há histórias que vêm da cabeça. Diante dela esta roda de batas azuis – a farda obrigatória do sistema escolar público de Cabo Verde – está cada vez mais atenta, cada vez mais participativa.

Marilene fala crioulo com eles, depois passa para o português de sotaque mineiro, num postulado igual ao da escola onde a língua oficial é esta que nos une. Marilene reforça essa ideia às crianças. “Vêm à escola para aprender a falar uma língua em que nos entendemos todos.” A história do boi Bolimundo decorre com os sobressaltos habituais de um conto infantil, com as repetições necessárias, com as canções. Marilene mete o crioulo cabo-verdiano na história, sempre que ele faz falta, para dar mais verdade à história, para puxar as crianças para dentro do conto.

Uma mala literária para as ilhas

A ação do Centro Cultural do Brasil em Cabo Verde não se cinge à Ilha de Santiago. Marilene faz parte de um projeto de contar contar contos no arquipélago. “Chama-se Mala Literária. A gente vai e faz cotche cotche, como se diz em crioulo. Fazemos cócegas aos alunos e depois oferecemos o livro.” O projeto de incenttivo à leitura quer suprir a falta de razões emocionais para ler: “A criança cabo-verdiana gosta sim de livros, gosta de ler, não tem quem os motive e não basta por os livros nas escolas” A professora Ludomilde Semedo vai mais longe. Diz que “falta o apoio em casa para que as crianças ganhem o gosto pela leitura.”

Professora primária de formação inicial, depois jornalista, Marilene mudou-se para Cabo Verde há 30 anos. Veio por amor “e o amor é a coisa melhor da vida da gente”. Casou com um cabo-verdiano e, nessa época, esta mineira percebeu que não havia produção literária infantil cabo-verdiana. “Tirando os contos tradicionais não havia histórias com a cara da criança cabo-verdiana, com a realidade cabo-verdiana. A minha preocupação sempre foi fazer um história que retratasse a realidade e que a ilustração refletisse a criança cabo-verdiana. Nos meus livros todos há trancinhas, os penteados todos.”

A grande aventura de Marilene foi, recentemente, a escrita de um livro juvenil. ‘O Mistério da Cidade Velha’ é descrito pela autora como “uma aventura no estilo Harry Potter só que com a História de Cabo Verde.” O livro está para já publicado apenas no país de acolhimento, pela editora Rosa de Porcelana, mas a escritora afirma que teria muito interesse em publicar nos países de língua portuguesa. “Seria uma forma de conhecer a História de Cabo Verde que é uma história riquíssima e que pouca gente fora de Cabo Verde conhece.”

A internacionalização da literatura produzida no país é uma das intenções deste Morabeza, o primeiro festival literário da Cidade da Praia. A outra é desenvolver a produção de literatura nas ilhas. A brasileira Marilene Pereira está bem alinhada com essas duas vontades que se unem na valorizarização o Património literário cabo-verdiano no mundo, já o põe na prática na sua escrita. No final desta Festa do Livro, saberemos se são feitos negócios com esta obra da literatura infanto-juvenil cabo-verdiana ou com as demais.

Texto de Carla Macedo e Fotografia de João Viegas Guerreiro em Cabo Verde