Nadine Labaki: “Não vejo a nomeação para o Óscar como uma vitória por ser mulher”

Nadine Labaki é libanesa e é a primeira mulher árabe a ser nomeada para um Óscar. Conhecemo-la pelo aclamado ‘Caramel’, a sua primeira longa-metragem, que nos trouxe um ambiente mais cosmopolita de Beirute, através da leveza das aventuras de um grupo de mulheres, amigas, de Beirute. Mas é com o seu terceiro filme, ‘Cafarnaum’ – com estreia nas salas de cinema nacionais marcada para o próximo dia 7 – que conquista o júri da Academia e obtém a nomeação para Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, depois de ter ganho o prémio do Júri do Festival de Cannes.

A história de ‘Cafarnaum’ revela um lado mais sombrio da capital libanesa, o dos bairros de lata onde a extrema pobreza, o trabalho infantil e a imigração ilegal dividem o espaço insalubre que sobra para os “invisíveis”, como diz em entrevista ao Delas.pt, a realizadora e atriz. Ao telefone, a partir de Beirute, Nadine explica que este filme é “uma necessidade”, a de ver esta realidade e a de fazer alguma coisa. Estar nomeada para um Óscar pode ajudar a fazer chegar isso a cada vez mais pessoas. “É isto que espero alcançar, uma nova maneira de olhar para este problema, porque temos de ter conhecimento dele e temos de saber que há milhões de crianças em todo o mundo que vivem em situações de extrema privação”.

Para isso, recrutou para o elenco atores não profissionais, pessoas que vivem as suas próprias vidas, ou quase, à frente da sua câmara, como é o caso do protagonista, Zain um menino a sair da idade da infância que nunca teve.

‘Cafarnaum’ diverge bastante do registo dos seus filmes anteriores, ‘Caramel’ e ‘Where Do We Go Now?’. Por que quis seguir um caminho tão diferente? Trazer uma história como esta para o grande ecrã?
Começa sempre como uma obsessão ou algo que está no pensamento o tempo o todo, uma necessidade de dizer algo. É isto que sinto quando quero fazer um filme. Sinto-o como uma necessidade e desta vez senti também que era um dever, senti que nem sequer tinha escolha senão falar disto. Quando se vive no Líbano todos os dias se está exposto a essa realidade, a ver crianças a trabalhar, a ver trabalhadores imigrantes e domésticos a serem desprovidos dos seus direitos básicos, tentando sobreviver e lutando diariamente, vê-se pessoas que estão legalizadas a estar nas margens da sociedade, completamente invisíveis para o sistema. Isto é algo que se vê todos os dias no Líbano. E acho que a maneira de falar disso é através do cinema. Eu acredito verdadeiramente no poder do cinema e acredito que através dos filme podemos realmente mudar alguma coisa.

Foi difícil fazer este filme, considerando, como disse, que está a retratar pessoas que estão à margem, que são “invisíveis”?
Sim, foi difícil. Começámos por filmar em cenários e locais reais com pessoas reais que vivem essa mesma realidade, até porque muitos deles não são atores [profissionais] e vivem nessa privação, com essa frustração e injustiça. Por isso, quando estávamos a trabalhar com eles, nessas circunstâncias, eles tornam-se família e ficamos preocupados com todos os detalhes das suas vidas, queremos fazer alguma coisa. E isso muda-nos como seres humanos. Filmar naqueles bairros de lata, nos esgotos, quase, durante quase seis meses das nossas vidas… Em bairros sem água potável, poluídos, ambientes insalubres e saber que eles vivem isto todos os dias e que depois nós vamos para casa e dormimos na nossa cama confortável, acho que é muito duro, do ponto de vista psicológico, viver com isso. O que dá força é sentirmos que estamos a tentar, de certa maneira, fazer alguma coisa. Não estamos, simplesmente, a observar e a ficar frustrados e zangados, e é isso que nos faz seguir.

Nadine Labaki e Zain, o protagonista do filme, quando receberam o Prémio do Júri em Cannes [Reuters]
É a primeira mulher árabe a ser nomeada para um Óscar e, este ano, é também a única mulher entre os realizadores nomeados. Como se sente com esta espécie de dupla singularidade?
Fico surpreendida com o facto de não haver mais mulheres nomeadas [na realização] porque tenho a certeza que há muitas mulheres que fizeram filmes incríveis. Não sei qual é a razão, continua a ser uma grande incógnita para mim, mas, ao mesmo tempo, espero estar a representá-las todas essas mulheres da melhor maneira possível, dar esperança a muitas realizadoras, especialmente no meu país e no mundo árabe. Acho que isto traz muita esperança. Por outro lado, não vejo esta nomeação para o Óscar como uma vitória por ser mulher, nunca o senti dessa forma, talvez porque nunca senti dificuldades no meu trabalho por ser mulher. É difícil fazer filmes no Líbano, de qualquer maneira, porque não há indústria cinematográfica, por isso cada um de nós aventura-se pelo seu próprio caminho, trava as suas próprias lutas. É uma batalha de cada vez que se quer fazer um filme. Mas nunca senti dificuldades por ser mulher.

 

Além dos temas da extrema pobreza, do trabalho infantil e da imigração e dos refugiados, ‘Cafarnaum’ acaba, também, por mostrar as disparidades entre a realidade das mulheres do país – do casamento infantil ao desempenho das mais altas profissões. Considerando isso, que retrato é possível fazer da condição feminina no Líbano?
Acho que não podemos generalizar. O Líbano é um país muito contraditório, é um melting pot de diferentes religiões, diferentes origens, educações, experiências. Uma mulher pode ter uma experiência de vida completamente diferente, dependendo do lugar onde nasceu, cresceu, do seu tipo de educação, da sua família e comunidade. Não podemos generalizar, embora ainda haja muito a fazer no que respeita aos direitos das mulheres – estamos longe de ter direitos iguais, em tudo. As mulheres podem expressar-se livremente, mas mais uma vez, isso também depende de onde vêm e do seu background. É muito difícil encontrar uma resposta única.

Que tipo de reação gostaria de provocar nas pessoas com este filme?
Na última cena do filme, quando o Zain está a olhar diretamente para a câmara, e cria uma ligação com o espectador, olha diretamente nos nossos olhos e sorri. Para mim, nesse momento é como se o Zain estivesse a dizer: ‘Sabem, vocês têm de olhar para mim, aqui’. Porque ele está a derrubar o muro e já não é o Zain ator, mas a pessoa real a dizer que não é invisível, que não podemos continuar a ignorar as condições difíceis em que vive. É isto que espero alcançar, uma nova maneira de olhar para este problema, porque temos de ter conhecimento dele e temos de saber que há milhões de crianças em todo o mundo que vivem em situações de extrema privação. E temos de fazer alguma coisa, porque essas crianças quando crescem acabam por repetir esse círculo vicioso e se não o rompermos, acho que ele vai explodir na nossa cara.

Foi por isso que quis ter um elenco de atores não profissionais, de pessoas reais?
Sim, exatamente. Porque as pessoas envolvem-se de maneira diferente quando ficam a saber de que se trata de pessoas que não são atores e que se debatem com as mesmas dificuldades na sua própria vida. Ao vê-las sentimos isso, sentimos que elas não estão a representar, estão a mostrar-se a si próprias e a falar dos seus problemas e penso que nos identificamos de forma diferente.

Este filme foca também muito a temática da imigração, em particular da imigração ilegal. Por que quis tratar também esta questão?
Acho que está entrelaçado, não podemos olhar para um problema sem olhar para o outro. É certo que o Zain representa um rapaz que não tem documentos, não se sabe de onde vem. Mas, na sua vida, ele iria inevitavelmente cruzar-se e travar conhecimento com uma pessoa como a Maysoun [personagem que representa uma criança refugiada, que também trabalha nas ruas], tendo o mesmo tipo de conversa que é recriado no filme. Para mim, uma criança é uma criança, seja uma refugiada síria, uma criança libanesa sem documentos, uma criança indiana a trabalhar para alimentar a sua família ou uma criança mexicana a ser separada dos pais na fronteira com os Estados Unidos da América. Trata-se de falar de crianças, no geral, mas de todas estas comunidades de pessoas invisíveis.

Começou a rodar este filme pouco tempo depois de ter dado à luz pela segunda vez. Isso influenciou o resultado de ‘Cafarnaum’?
Acho que sim, que influenciou bastante. Comecei a escrever o guião antes de engravidar da minha filha, mas certamente que o facto de estar a amamentar, durante as filmagens, e a minha filha tem quase a mesma idade do bebé Yonas, do filme…Todos esses momentos com aquele bebé e da relação com a mãe e o facto de eu estar a passar pelo mesmo foram como uma espécie de espelho, senti-me muito próxima dessa história. Há detalhes sobre os quais provavelmente nunca teria pensado, nem escrito se eu não estivesse a passar pela mesma experiência. Criou-se um elo muito especial e muito forte.

 

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